segunda-feira, 3 de maio de 2021

VACINAS, VACINAS, VACINAS

 

O esforço de Marcelo Queiroga em agradar o chefe transforma o quarto ministro da saúde em 14 meses de pandemia num personagem confuso. Ao tratar de vacinas durante a videoconferência da OMS, da qual participou como convidado especial, o esculápio soou como se desejasse fornecer material para os senadores que o interrogarão na CPI da Covid em sessão marcada para a próxima quinta-feira.

Num instante, Queiroga declarou: “Não há que falar em atraso de vacinação no Brasil. Nós começamos nossa vacinação assim que a lei assim nos permitiu.” Repetiu o lero-lero segundo o qual o país “dispõe de mais de 500 milhões de doses de vacinas contratadas” e reiterou a promessa de que até o final do ano “teremos nossa população inteiramente vacinada”. Noutro momento, o doutor pronunciou algo muito parecido com uma súplica: “...Reiteramos nosso apelo àqueles [países] que possuem doses extras de vacinas para que possam compartilhá-las com o Brasil o quanto antes, de modo a nos permitir lograr avançar em nossa ampla campanha de vacinação, de modo a conter a fase crítica da pandemia e evitar a proliferação de novas linhagens e variantes do vírus.

Juntando-se os pedaços da fala do ministro, chega-se à ambiguidade e à falta de nexo. No trecho em que nega o atraso e celebra o excesso de vacinas, o orador revela que a história do combate à pandemia no Brasil seria uma coisa maravilhosa, se fosse verdadeira. Na passagem em que fala como um mendigo de vacinas, Queiroga como que reconhece que a história da vacinação no Brasil é um pesadelo do qual o brasileiro terá dificuldade para acordar.

O demônio, como se sabe, sempre esteve nos detalhes. E não costuma perder. Na versão de Bolsonaro, incorporada por Queiroga, não há atraso na vacinação porque as primeiras doses foram aplicadas em janeiro, assim que a Anvisa liberou. Conversa mole.

A vacina Oxford-AstraZeneca, a preferida do capitão, foi corretamente adquirida pelo governo brasileiro, via Fiocruz, antes do aval da Anvisa. O erro foi não ter diversificado as compras. Em agosto de 2020, o Ministério da Saúde refugou oferta de 70 milhões de doses da Pfizer. Em outubro, Bolsonaro mandou rasgar um compromisso de compra de 46 milhões de doses da Coronavac. Foi às compras tardiamente.

Aplicando-se o filtro da Anvisa no cronograma oficial de vacinação do Ministério da Saúde, as mais de 500 mil doses que o governo diz ter contratado sofrem um processo de lipoaspiração, pois a conta inclui a russa Sputnik (10 milhões de doses) e a indiana Covaxin-Bharat Biotech (20 milhões) — dois imunizantes que ainda ralam para obter o referendo da Anvisa. Incluíram-se também entre as vacinas “contratadas” lotes de fármacos ainda sem contratos assinados: 110 milhões de doses da Oxford/AstraZeneca, a ser produzidas na Fiocruz; e mais 30 milhões de doses da Coronavac, a ser fornecidas pelo Butantan.

No universo bolsonarista, não há coisas certas ou erradas. Há coisas que são toleradas e outras que pegam mal. Enquanto o brasileiro morria de Covid, a aversão de Bolsonaro aos imunizantes foi negligenciada. No instante em que as pessoas começaram a morrer por falta de vacina, o governo foi intimado pelas circunstâncias e pelo STF a exibir um plano nacional de vacinação.

A despeito de toda a pregação de Bolsonaro contra a vacina, as pesquisas indicam que algo como oito em cada dez brasileiros desejam se vacinar. Daí o esforço do governo para reescrever a história do negacionismo do capitão.

Queiroga enalteceu na OMS a competência do sistema de saúde brasileiro, capaz de aplicar mais de 2 milhões de doses de vacinas por dia. Ele tem razão. O diabo é que não há vacinas. Para amansar o vírus, o Brasil precisaria vacinar entre 70% e 80% de sua população. Por ora, receberam a primeira dose 14,74% da população. Apenas 7,15% receberam a segunda dose de uma das vacinas disponíveis.

O painel Monitora Covid-19, da Fiocruz, estima que, mantido o ritmo atual, apenas em 2023 o país poderá festejar a vacinação de todos os brasileiros com mais de 18 anos. Queiroga dispõe desses dados, pois a Fiocruz pende do organograma do seu ministério. O doutor encosta o seu CRM na lenda de que a vacinação não está atrasada porque não quer que Bolsonaro apresse sua demissão. No momento, Queiroga corre atrás de vacinas. Se não vigiar as palavras, logo pode estar correndo da CPI

Com Josias de Souza