terça-feira, 29 de junho de 2021

À BEIRA DE UM (PERMANENTE) ATAQUE DE NERVOS

Discutir política com fanáticos é como jogar xadrez com pombos: eles derrubam as peças, cagam no tabuleiro e saem de peito estufado, roncando vitória.

Sensatez e discernimento não são predicados exclusivos das pessoas esclarecidas, mas certamente não combinam com o apedeutismo. Prova disso é récua de muares que integra o eleitorado tupiniquim, e a contraprova é a lista dos presidentes — trinta e cinco ou trinta e oito, conforme a fonte — que o Brasil amargou em 131 anos de história republicana. 

Aliás, essa divergência é mais uma comprovação de que o país do futuro que nunca chega tem um grande passado pela frente, já que até o passado é incerto em terra brasilis. Ainda sobre a inteligência — ou a falta dela —, o Nobel de literatura lusitano José Saramago dizia tratar-se de um problema de cegueira mental que “é um assunto particular entre as pessoas e os olhos com que nasceram; não há nada que se possa fazer a respeito” (palmas para ele).

Passando agora ao tema do dia, o comportamento (naturalmente errático) de Jair Bolsonaro demonstra claramente seu desespero. É um certo desperdício usar um pensamento de Isaac Deutscher para analisar a extrema direita, mas, como ele dizia, cada vez que a margem de manobra política se estreita as pessoas começam a fazer bobagens, independentemente do seu nível de inteligência. O presidente está numa sinuca de bico: não conseguiu atender às frustrações sociais que o levaram ao governo, tornou-se órfão de Trump e realizou uma política letal no campo sanitário — o país não só ultrapassou os 512 mil mortos como deve superar os Estados Unidos nessa contagem fúnebre.

Vendo sua margem de manobra se estreitar, Bolsonaro parece cada vez mais desequilibrado, chegando mesmo a agredir diuturnamente jornalistas no exercício de sua função. O avanço da CPI tem representado uma grande derrota para sua tese negacionista e aos poucos traz a lume algo que para a parcela pensante das pessoas já fora sobejamente demonstrado: a política deste governo contribuiu para muitas mortes no País.

O grupo que o apoia o chefe do Executivo no Congresso sabe explorar o espaço aberto pelo início das grandes manifestações populares — ainda não suficientes para derrubar o capetão, mas que já representam importante agregação de valor ao apoio fisiológico de Arthur Lira et caterva: quanto mais gente na rua, mais cara se torna a amizade com o Centrão.

O mundo que o bolsonarismo encontrou ao chegar ao poder não mudou para melhor. Ao contrário. As frustrações se aprofundaram e as chances de derrota são grandes. Algumas dessas frustrações já estavam latentes no grande movimento popular de 2013 — que pode ser interpretado de diversas maneiras, mas sempre deixa patente o descontentamento diante dos serviços públicos, muito aquém da expectativa dos pagadores de impostos.

Os protestos precisam atrair novas forças de oposição, ganhar uma cara de unidade nacional que transcenda o poder da esquerda. Mesmo que consigam, não farão a extrema-direita desaparecer, mas já estará de bom tamanho se ela for reduzia a uma força minoritária, ainda que ruidosa. Por outro lado, derrotar Bolsonaro nas urnas não resolverá o problema. Até porque o retorno do lulopetismo não é a solução; é preciso buscar uma meio-termo que agregue estabilidade, e isso não parece estar ao alcance de uma força política única.

Desde o advento da Nova República — refiro-me ao período pós-ditadura militar — que os presidentes que tinham partidos foram obrigados a promover coalizões que, se lhes garantiram votos, também arruinaram sua legitimidade perante a opinião pública. Assim como Collor no início dos anos 1990, Bolsonaro não tem partido (nem programa de governo, o que é pior).

Fernando Gabeira acha temerário supor que a vitória da oposição nos conduzirá de volta ao status quo ante, como se nada tivesse acontecido. Até porque a dicotomia desbragada pode pavimentar o caminho para o retorno do capetão — ou dar azo a alguma composição ainda pior, por mais absurda que essa hipótese possa parecer. Dora Kramer segue mais ou menos na mesma linha:

Acossado, Bolsonaro está com raiva. Da CPI que lhe arranha os calcanhares e imprime frio à nuca com os recentes indícios de corrupção na aquisição da vacina Covaxin; das manifestações que começam a tomar conta das ruas em ritmo crescente; da independência da imprensa profissional; raiva da possível derrota em 2022 que faria dele o primeiro presidente a não conseguir renovar o mandato desde o instituto da reeleição, há 24 anos.

A ira é das piores companhias que uma pessoa pode escolher como conselheira. Isso, na vida em geral. Na política tal aliança costuma ser mortal. Embora às vezes confira ao colérico uma aura de assertividade e dê a ele a chance de vestir o figurino da coragem, são atributos temporariamente emprestados. Ao longo do tempo a fúria retira-lhe a escada e o furioso, quando teimoso, acaba no chão.

O destempero conduziu Jânio Quadros ao erro de cálculo na renúncia à Presidência. A agressividade deu a Fernando Collor a oportunidade de mostrar-se combativo ao eleitorado, mas no poder o levou a confrontar um Congresso que cassou seu mandato sem choro nem vela. O temperamento irascível de Dilma Rousseff tampouco a ajudou no desgaste que resultou no impedimento.

O equilíbrio é um dos grandes (não o único) ativos de FHC. Até hoje rendem a ele homenagens, à direita e à esquerda, depois de quase vinte anos distante do poder. A moderação foi o que buscou Lula na campanha de 2002 para conseguir se eleger presidente depois de três derrotas vestido de ferrabrás. Comedimento é o que procura agora Ciro Gomes, ao enfrentar sua terceira disputa presidencial, tentando suavizar a imagem sob a batuta de João Santana, ex-parceiro de Duda Mendonça, inventor do “Lulinha paz e amor”.

Bolsonaro trilha o caminho contrário. Reforça a selvageria verbal e sobe a escala dos maus modos. Alguns interpretam essa atitude como estratégia para manter unida a sua tropa de apoiadores. Por esse raciocínio, o presidente estaria levando a termo um plano metódico a fim de minar resistências e intimidar adversários.

Na teoria, tal linha de pensamento até faz sentido, mas na prática não condiz com a realidade. E esta desenha um cerco que devagar se estreita no entorno do Planalto. A CPI está no centro desse movimento, e vai se configurando como o que de pior poderia ter acontecido a Bolsonaro. De potencial mais danoso que eventual exame do impeachment pelo Congresso — do qual ele poderia até escapar mediante a complacência/cumplicidade dos deputados. Mas dos efeitos da CPI não há hipótese de ele sair ileso. A comissão já comprovou a negligência das ações e omissões do governo federal na gestão da pandemia e agora abre a complicadíssima frente da investigação de caráter criminal, cujo desenrolar provoca apreensão no Palácio do Planalto e adjacências.

O presidente que manda jornalistas e auxiliares calar a boca e se expressa aos palavrões ante microfones não é exatamente alguém que esteja na posse da frieza necessária à execução de um projeto estratégico. É, antes, um governante atordoado, cujo abalo contamina seus aliados. É a percepção do perigo que faz, por exemplo, o deputado Arthur Lira sair da posição de presidente de uma Câmara partidária e ideologicamente plural para assumir a condição de líder do governo na Casa. Em recente entrevista, Lira reafirmou a decisão de manter na gaveta cerca de 130 pedidos de impeachment e profetizou: “A CPI não vai dar em nada”. Repetiu aí um então ministro de Fernando Collor em prognóstico que passou aos anais da política como indicativo de aflição.

O cerco não parte só do inquérito parlamentar que acaba de transformar de testemunhas em investigadas 14 pessoas ligadas ao presidente, entre as quais três ex-integrantes do primeiro escalão de sua equipe e o atual ministro da Saúde. Os sinais estão também nas multas aplicadas por infrações a medidas restritivas de prevenção a contaminações, na sanção da Justiça por propaganda eleitoral antecipada e na cobrança de prazo para que Bolsonaro apresente evidências da ocorrência de fraude nas eleições. Estreita-se, portanto, a vigilância que faz do presidente não um homem à beira, mas em pleno e permanente ataque de nervos.