Discutir política com fanáticos é como jogar xadrez com pombos: eles derrubam as peças, cagam no tabuleiro e saem de peito estufado, roncando vitória.
Sensatez e discernimento não são predicados exclusivos das pessoas esclarecidas, mas certamente não combinam com o apedeutismo. Prova disso é récua de muares que integra o eleitorado tupiniquim, e a contraprova é a lista dos presidentes — trinta e cinco ou trinta e oito, conforme a fonte — que o Brasil amargou em 131 anos de história republicana.
Aliás, essa divergência é mais uma comprovação de que o país do futuro que nunca chega tem um grande passado pela frente, já que até o passado é incerto em terra brasilis. Ainda sobre a inteligência — ou a falta dela —, o Nobel de literatura lusitano José Saramago dizia tratar-se de um problema de cegueira mental que “é um assunto particular entre as pessoas e os olhos com que nasceram; não há nada que se possa fazer a respeito” (palmas para ele).
Passando agora ao tema do dia, o comportamento (naturalmente
errático) de Jair Bolsonaro demonstra claramente seu desespero. É um
certo desperdício usar um pensamento de Isaac Deutscher
para analisar a extrema direita, mas, como ele dizia, cada vez que a margem de
manobra política se estreita as pessoas começam a fazer bobagens,
independentemente do seu nível de inteligência. O presidente está numa sinuca
de bico: não conseguiu atender às frustrações sociais que o levaram ao governo,
tornou-se órfão de Trump e realizou uma política letal no campo
sanitário — o país não só ultrapassou os 512 mil mortos como deve superar os
Estados Unidos nessa contagem fúnebre.
Vendo sua margem de manobra se estreitar, Bolsonaro
parece cada vez mais desequilibrado, chegando mesmo a agredir diuturnamente
jornalistas no exercício de sua função. O avanço da CPI tem representado
uma grande derrota para sua tese negacionista e aos poucos traz a lume algo que
para a parcela pensante das pessoas já fora sobejamente demonstrado: a política
deste governo contribuiu para muitas mortes no País.
O grupo que o apoia o chefe do Executivo no Congresso sabe
explorar o espaço aberto pelo início das grandes manifestações populares — ainda
não suficientes para derrubar o capetão, mas que já representam importante
agregação de valor ao apoio fisiológico de Arthur Lira et caterva:
quanto mais gente na rua, mais cara se torna a amizade com o Centrão.
O mundo que o bolsonarismo encontrou ao chegar ao poder não
mudou para melhor. Ao contrário. As frustrações se aprofundaram e as chances de
derrota são grandes. Algumas dessas frustrações já estavam latentes no grande
movimento popular de 2013 — que pode ser interpretado de diversas maneiras, mas
sempre deixa patente o descontentamento diante dos serviços públicos, muito
aquém da expectativa dos pagadores de impostos.
Os protestos precisam atrair novas forças de oposição,
ganhar uma cara de unidade nacional que transcenda o poder da esquerda. Mesmo
que consigam, não farão a extrema-direita desaparecer, mas já estará de bom
tamanho se ela for reduzia a uma força minoritária, ainda que ruidosa. Por
outro lado, derrotar Bolsonaro nas urnas não resolverá o problema. Até
porque o retorno do lulopetismo não é a solução; é preciso buscar uma meio-termo
que agregue estabilidade, e isso não parece estar ao alcance de uma força
política única.
Desde o advento da Nova República — refiro-me ao período
pós-ditadura militar — que os presidentes que tinham partidos foram
obrigados a promover coalizões que, se lhes garantiram votos, também arruinaram
sua legitimidade perante a opinião pública. Assim como Collor no início
dos anos 1990, Bolsonaro não tem partido (nem programa de governo, o que
é pior).
Fernando
Gabeira acha temerário supor que a vitória da oposição nos conduzirá de
volta ao status quo ante, como se nada tivesse acontecido. Até porque a
dicotomia desbragada pode pavimentar o caminho para o retorno do capetão — ou
dar azo a alguma composição ainda pior, por mais absurda que essa hipótese
possa parecer. Dora Kramer segue mais ou menos na mesma linha:
Acossado, Bolsonaro está com raiva. Da CPI que
lhe arranha os calcanhares e imprime frio à nuca com os recentes indícios de
corrupção na aquisição da vacina Covaxin; das manifestações que começam
a tomar conta das ruas em ritmo crescente; da independência da imprensa
profissional; raiva da possível derrota em 2022 que faria dele o primeiro
presidente a não conseguir renovar o mandato desde o instituto da reeleição, há
24 anos.
A ira é das piores companhias que uma pessoa pode escolher
como conselheira. Isso, na vida em geral. Na política tal aliança costuma ser
mortal. Embora às vezes confira ao colérico uma aura de assertividade e dê a
ele a chance de vestir o figurino da coragem, são atributos temporariamente
emprestados. Ao longo do tempo a fúria retira-lhe a escada e o furioso, quando
teimoso, acaba no chão.
O destempero conduziu Jânio Quadros ao erro de cálculo na
renúncia à Presidência. A agressividade deu a Fernando Collor a oportunidade de
mostrar-se combativo ao eleitorado, mas no poder o levou a confrontar um
Congresso que cassou seu mandato sem choro nem vela. O temperamento irascível
de Dilma Rousseff tampouco a ajudou no desgaste que resultou no
impedimento.
O equilíbrio é um dos grandes (não o único) ativos de FHC.
Até hoje rendem a ele homenagens, à direita e à esquerda, depois de quase vinte
anos distante do poder. A moderação foi o que buscou Lula na campanha de
2002 para conseguir se eleger presidente depois de três derrotas vestido de
ferrabrás. Comedimento é o que procura agora Ciro Gomes, ao enfrentar
sua terceira disputa presidencial, tentando suavizar a imagem sob a batuta de João
Santana, ex-parceiro de Duda Mendonça, inventor do “Lulinha paz e
amor”.
Bolsonaro trilha o caminho contrário. Reforça a
selvageria verbal e sobe a escala dos maus modos. Alguns interpretam essa
atitude como estratégia para manter unida a sua tropa de apoiadores. Por esse
raciocínio, o presidente estaria levando a termo um plano metódico a fim de
minar resistências e intimidar adversários.
Na teoria, tal linha de pensamento até faz sentido, mas na
prática não condiz com a realidade. E esta desenha um cerco que devagar se
estreita no entorno do Planalto. A CPI está no centro desse movimento, e
vai se configurando como o que de pior poderia ter acontecido a Bolsonaro.
De potencial mais danoso que eventual exame do impeachment pelo Congresso — do
qual ele poderia até escapar mediante a complacência/cumplicidade dos
deputados. Mas dos efeitos da CPI não há hipótese de ele sair ileso. A comissão
já comprovou a negligência das ações e omissões do governo federal na gestão da
pandemia e agora abre a complicadíssima frente da investigação de caráter
criminal, cujo desenrolar provoca apreensão no Palácio do Planalto e
adjacências.
O presidente que manda jornalistas e auxiliares calar a boca
e se expressa aos palavrões ante microfones não é exatamente alguém que esteja
na posse da frieza necessária à execução de um projeto estratégico. É, antes,
um governante atordoado, cujo abalo contamina seus aliados. É a percepção do
perigo que faz, por exemplo, o deputado Arthur Lira sair da posição de
presidente de uma Câmara partidária e ideologicamente plural para assumir a
condição de líder do governo na Casa. Em recente entrevista, Lira
reafirmou a decisão de manter na gaveta cerca de 130 pedidos de impeachment e
profetizou: “A CPI não vai dar em nada”. Repetiu aí um então ministro de
Fernando Collor em prognóstico que passou aos anais da política como
indicativo de aflição.
O cerco não parte só do inquérito parlamentar que acaba de transformar de testemunhas em investigadas 14 pessoas ligadas ao presidente, entre as quais três ex-integrantes do primeiro escalão de sua equipe e o atual ministro da Saúde. Os sinais estão também nas multas aplicadas por infrações a medidas restritivas de prevenção a contaminações, na sanção da Justiça por propaganda eleitoral antecipada e na cobrança de prazo para que Bolsonaro apresente evidências da ocorrência de fraude nas eleições. Estreita-se, portanto, a vigilância que faz do presidente não um homem à beira, mas em pleno e permanente ataque de nervos.