O Brasil atingiu no último sábado a marca macabra de meio milhão de vítimas da Covid. Os presidentes da Câmara, Senado, Supremo e STJ publicaram notas lamentando o fato, mas o chefe do Executivo preferiu ironizar os protestos contra o governo, registrados em 25 capitais e no Distrito Federal ao longo do dia, segundo levantamento da Agência CNN.
Quantas dessas mortes poderiam ter sido evitadas? Segundo
especialistas, três de cada quatro óbitos não teriam ocorrido se o governo
federal tivesse adquirido vacinas antes e adotado mais medidas de combate à
pandemia. Uma abordagem
simples, mas fundamentada, foi apresentada pelo epidemiologista Pedro
Hallal, autor do primeiro estudo brasileiro a avaliar a magnitude da
pandemia do coronavírus no país e ex-reitor da Universidade Federal de
Pelotas.
No cálculo, Hallal leva em consideração que 2,7% da
população mundial vive no Brasil, e projeta quantas mortes por Covid
teriam ocorrido no país se ele tivesse tido um desempenho na média mundial. A
diferença entre esse número e o número real de mortes ocorridas é atribuída por
ele ao mau desempenho do governo no combate à pandemia. Em outras
palavras, 396 mil vidas teriam sido poupadas. Eduardo Massad,
professor emérito da faculdade de medicina da USP e professor de
matemática aplicada da FGV, afirma
que o cálculo está “perfeitamente correto”, e que, apesar da
simplicidade, leva em conta “tudo o que o Brasil fez de errado” no combate
à pandemia.
O silêncio de Bolsonaro diz tudo sobre as culpas do
governo. Mas a Casa Civil da Presidência da República achou que seria uma boa
ideia expressar com palavras a inexpressividade mental do presidente. Divulgou
uma nota oficial com o seguinte título: “900
dias: nos trilhos da preservação de vidas e da retomada da economia”.
Todos os brasileiros gostariam de viver no Brasil descrito
no documento distribuído pela pasta do general Luiz Eduardo Ramos. Um
país onde sobram vacinas e cilindros de oxigênio. Entretanto, o que se vê sobre
os trilhos é um país com aparência de trem fantasma. Nele, um maquinista de
miolo mole tornou previsível a dura realidade marcada por mais de 500 mil almas
penadas.
Nos últimos dias, Bolsonaro dedicou-se a
desqualificar as vacinas. Disse que são “experimentais”. Insinuou que “a eficácia
da cloroquina é maior”. Na quinta-feira, em transmissão ao vivo pelas redes
sociais, o presidente difundiu a lorota segundo a qual aqueles que já foram
infectados pelo vírus, como ele, estão mais imunizados do que os que tomaram
vacina.
Numa evidência de que o governo fez uma opção preferencial
pelo cinismo, a Casa Civil bate bumbo pelas vacinas como se o Brasil fosse
presidido pelo Zé Gotinha. “Mais de 110 milhões de doses de vacinas
contra a doença já foram enviadas a todos os estados brasileiros, o que coloca
o país em quarto lugar no ranking mundial de países que mais aplicam vacinas
contra a Covid”, anota o documento.
A ilusão de que o Brasil é o quarto país que mais vacina no
mundo leva em consideração os números absolutos. Algo tão eficaz para a
avaliação do Programa Nacional de Imunização quanto o uso da cloroquina
no tratamento da Covid. Quando a conta é feita com base no percentual da
população que já foi vacinada, o Brasil ocupa uma constrangedora 78ª
posição no ranking mundial da vacinação.
Para atingir a imunidade coletiva, o Brasil precisa vacinar
algo como 70% de sua população. Por ora, pouco
mais de 11% dos brasileiros receberam duas doses de vacina. O ritmo de
lesma desautoriza celebrações. É evidente que Bolsonaro não criou o vírus,
mas é notável sua contribuição para a proliferação do contágio e das mortes.
Alheio à aliança do capitão com o vírus, a Casa Civil
injetou no Brasil alternativo esboçado no seu documento uma preocupação extremada
do governo com o socorro aos doentes levados à UTI com falta de ar.
Ninguém notou, mas há
na praça um plano chamado “Oxigênio Brasil”. “Somente neste ano,
foram distribuídos aproximadamente 500 mil metros cúbicos de oxigênio para
estados e municípios”, jactou-se a Casa Civil.
Para os familiares das centenas de pessoas mortas por falta
desse insumo em Manaus, a expressão “Oxigênio Brasil” é a mais perfeita
tradução de conversa fiada (uso este termo para evitar outros, mais
adequados, mas menos educados). Se o texto da Casa Civil serviu para alguma
coisa foi para desobrigar todo mundo de fazer sentido no Brasil.
A realidade não deixa de existir só porque a Casa Civil e Bolsonaro
a ignoram. A indignação social já existe. E não tem nada a ver com urnas
eletrônicas. O Datafolha revelou que 54%
dos brasileiros desaprovam o desempenho de Bolsonaro na pandemia e 43%
avaliam que o presidente é o maior culpado pelo avanço da Covid.
No tempo em que as palavras ainda tinham significado, um
país que executa um plano de vacinação sem vacinas, coleciona mais de 500 mil
mortos e não consegue socorrer a tempo todos os que necessitam de oxigênio...
Um país assim não pode estar “nos trilhos da preservação de vidas”.
Descarrilou faz tempo.
O problema do Brasil não é sanitário nem moral. É dramático.
Bolsonaro transforma sua Presidência num comício. Cai a máscara do
candidato. Dá expediente na campanha full time. Provoca a reação da turma do “Fora,
Bolsonaro”. E o país assiste a um balé macabro. Uma espécie de “A Morte do
Cisne”, só que estrelada por elefantes.
O asfalto virou palco de um pas
de deux da morte. De um lado, o aglomerador heavy, bolsonarista. Sem
máscara. Do outro, o aglomerador light, antibolsonaro. Com máscara. E banhado
em álcool gel. A ausência na plateia de meio milhão de mortos revela que o
vírus não perde por esperar. Ganha. Além de gotículas de saliva contaminada, há
na atmosfera um quê de descontrole.
Bolsonaro foge ao controle do centrão. Lula e
o PT vão a reboque dos movimentos sociais. A terceira via, atônita, se
engarrafa em reuniões fechadas sem se dar conta de que 2022 trafega pelas redes
sociais, de onde partem as convocações que escorrem pelo meio-fio. Motociatas
da cloroquina para a direita. Passeatas da vacina para a esquerda. O bom senso
para as alturas. É como se o brasileiro, com a pandemia a pino, informasse ao
mundo que decidiu encarar com naturalidade a anormalidade de sua vida normal.
Conhecido como o mais antigo país do futuro (que nunca
chega), o Brasil finalmente assume um papel de destaque. Faz o pior na pandemia
da melhor maneira que pode. Bolsonaro e seus devotos aglomeram-se para
desacatar os cientistas. Antibolsonaristas aglomeram-se para exigir respeito à
ciência. E o balé de elefantes vai ganhando uma aparência de ficção científica.
A única morte que Bolsonaro parece realmente
interessado em evitar é a do seu projeto de reeleição. Tomado pelo que disse na
live de quinta-feira, o capitão já não parece tão confiante. Ameaçou contestar
o resultado das urnas eletrônicas de 2022 se o voto impresso não for aprovado
e insinuou que uma eventual vitória de Lula mergulharia o Brasil numa “convulsão
social”.
Pela Constituição, Bolsonaro tem mandato até 31 de
dezembro de 2022. O ideal seria que utilizasse o tempo de que dispõe para
presidir a crise. Por ora, é presidido pelo vírus.
O capitão deveria se familiarizar com a célebre metáfora de Hegel,
a “Coruja
de Minerva”, que só voa quando o crepúsculo chega. Significa dizer que
certas pessoas só entenderão o tempo em que vivem quando ele já tiver se
esgotado. A compreensão só virá quando for tarde demais.
No caso de Bolsonaro, que não consegue sequer
expressar adequadamente o luto pelas mortes que deveria ter evitado, a ficha
cairá com um atraso de milhares de cadáveres.
Com Josias de Souza