sexta-feira, 4 de junho de 2021

DESGRAÇA POUCA É BOBAGEM


Na última segunda-feira, quando os protestos contrários ao governo ocorridos no sábado anterior eram o assunto mais comentado nas redes sociais, Bolsonaro mudou o foco dos internautas anunciando a decisão de sediar a Copa América. Nesta quinta, feriado de Corpus Christi, driblou jornalistas na porta do Alvorada e foi passear de moto em Formosa (cidade goiana que fica a 80 quilômetros de Brasília), onde assistiu a uma missa e conversou com apoiadores locais.

Bolsonaro faz bem em rezar. O menosprezo pelas vítimas da pandemia, a inoperância administrativa, a falta de um plano econômico, as revelações trazidas à luz pela CPI do Genocídio, o Tratoraço e os escândalos no Ministério do Meio Ambiente estão cobrando seu preço. Levantamento feito pelo instituto Paraná Pesquisas mostra que 52,7% dos fluminenses desaprovam o governo e 45,9% consideram seu desempenho ruim ou péssimo — lembrando que o Rio de Janeiro é o reduto eleitoral do presidente. 

Mais de 460 mil pessoas já perderam a vida para a Covid no Brasil. Maio se tornou o terceiro mês com maior número de óbitos (59.010), atrás apenas de abril (82.266) e março (66.673). Na avaliação do epidemiologista Pedro Hallal, o negacionismo foi responsável por mais de 300 mil mortes. Para piorar, o ritmo da imunização segue lento — até a última terça-feira, apenas 10,6% dos brasileiros haviam recebido as duas doses da vacina. E depois a jornalista Daniela Lima, da CNN, que é quadrúpede.

O passeio desta quinta-feira não constava da agenda oficial do chefe do Executivo e ocorreu um dia depois de seu pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão — durante o qual um panelaço com direito a gritos de “Fora, genocida!” se fez ouvir em São Paulo, Rio e NiteróiRecifeBelo Horizonte, Florianópolis, Vitória, FortalezaPorto AlegreSalvadorBelém e várias regiões do Distrito Federal.

Em sua fala, além de enaltecer a própria gestão e divulgar números distorcidos sobre os avanços da vacinação, Bolsonaro afirmou que todos os brasileiros que assim o desejarem serão vacinados ainda este ano. Curiosamente, o governador João Doria havia anunciado horas antes que toda a população adulta do Estado de São Paulo estará vacinada até o final de outubro.

Na CPI da Pandemia, o senador Otto Alencar fez picadinho do conhecimento científico da Dra. Nise Yamaguchi, defensora de quatro costados do uso da hidroxicloroquina no combate à Covid. Médico como a depoente, o parlamentar fez uma série de perguntas — entre elas a diferença entre um protozoário e um vírus — que sua colega não soube responder, embora seja uma das principais integrantes do gabinete paralelo que dá sustentação pseudo científica às teses estapafúrdias do Executivo.

Já a infectologista Luana Araújo deu uma verdadeira aula aos membros da CPI — e aos milhões de brasileiros que assistiram à transmissão do circo parlamentar. Sobre tratamento precoce, kit-covid, cloroquina e assemelhados, as respostas da médica foram de uma precisão cirúrgica (se me desculpam o trocadilho). A certa altura, ela classificou a discussão de delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente: Nós ainda estamos discutindo uma coisa que não tem cabimento, como se a gente estivesse escolhendo de que borda da ‘Terra plana’ vai pular”.

Sobre sua rápida passagem pelo Ministério da Saúde — interrompida antes da nomeação oficial para o cargo de secretária extraordinária de Enfrentamento à Covid —, a médica disse que o ministro lhe havia garantido autonomia para agir na secretaria, mas que, dez dias depois, ele próprio comunicou “com pesar” que sua nomeação “não iria passar”. 

Em depoimento anterior à CPI, Marcelo Queiroga reconheceu que a confirmação de Luana no cargo dependia de “validação política”. Pelo visto, nem o próprio ministro tem autonomia para gerir a pasta que supostamente comanda.

A médica não deixou pergunta sem resposta. Esclareceu por que o modelo de testagem escolhido pelo governo está errado e não pode funcionar, explicou com clareza por que as medidas de isolamento e uso de máscara são absolutamente necessárias e mostrou que a ideia de “imunidade de rebanho natural” não faz sentido. 

Luana também deixou claro que todo profissional de saúde é favorável a tratamento precoce — desde que tal tratamento exista — e mostrou a diferença entre a autonomia pessoal do médico para, com a anuência do paciente, prescrever o que quiser, e a política pública de saúde, que tem a obrigação de seguir parâmetros científicos e recomendar medicamentos com eficácia comprovada. Diante da insistência do senador governista Marcos Rogério sobre o tratamento precoce, a resposta da doutora foi didática: “Se eu pegar essa cultura viral [da Covid] e botar no micro-ondas, os vírus vão morrer, mas não é por isso que vou pedir ao paciente que entre no forno duas vezes por dia.” 

Seu depoimento calou a tropa de choque e revelou um segredo de polichinelo: os ministros do capitão não têm poder de decisão, somente executam a política determinada pelo chefe.

Ao recepcionar no Brasil uma Copa América que a Argentina e a Colômbia se recusaram a sediar, escreveu Josias de Souza em sua coluna, Bolsonaro inaugurou uma nova fase da pandemia: a etapa do circo. 

Faz todo sentido, porque a inépcia fez com que a administração da crise ficasse muito parecida com o futebol. A diferença é que o campo não é demarcado, canelada é liberada e gol contra conta a favor. Mal comparando, a pandemia é uma avalanche. Infectadas, as pedras deslizam por um penhasco de incertezas e contágios. Esse movimento, quando foge ao controle, soterra o sistema de saúde, provocando mortes.

Quem enxerga nesse ambiente fúnebre razões para autorizar competições esportivas e promover aglomerações potencializa um desastre que abarrota os hospitais, tira o sono dos profissionais da saúde, sobrecarrega os coveiros e dilacera a alma dos familiares e amigos dos quase 500 mil mortos que a Covid já produziu no Brasil.

Se a sociedade brasileira estivesse próxima da imunização coletiva, a irresponsabilidade já seria intolerável. Num cenário em que a maioria dos brasileiros enxerga na vacina que não chega algo tão indispensável quanto o pão, as concessões ao circo são desvios patológicos.

Em tempo

O Exército informou ontem que o procedimento administrativo contra o ex-ministro da Saúde, por participação no comício bolsonarista no Rio, foi arquivado: “Acerca da participação do General de Divisão EDUARDO PAZUELLO em evento realizado na Cidade do Rio de Janeiro, no dia 23 de maio de 2021, o Centro de Comunicação Social do Exército informa que o Comandante do Exército analisou e acolheu os argumentos apresentados por escrito e sustentados oralmente pelo referido oficial-general. Desta forma, não restou caracterizada a prática de transgressão disciplinar por parte do General PAZUELLO. Em consequência, arquivou-se o procedimento administrativo que havia sido instaurado”.

Fato é que Pazuello participou de um ato político em meio a uma aglomeração, sem máscara, dias depois de ter defendido o uso da proteção na CPI do Genocídio, da qual ele é um dos principais alvos. Sua postura deixou nítido que ele estava ali a mando do capitão, do qual foi uma patética marionete no comando do Ministério da Saúde. Por ter mentido e omitido em seu depoimento à CPI visando blindar o chefe, o general ganhou um cargo de ASPONE, ou melhor, de secretário de Assuntos Estratégicos, que somará R$ 16 mil aos cerca de R$ 13 mil que ele recebe como general da ativa

Só um idiota não vê que punir o protegido do capetão produziria represálias (quiçá nova troca do comando do Exército). O megalômano lunático e psicótico que acontece de ser comandante em chefe das Forças Armadas acha que essa e outras prerrogativas inerentes ao cargo de Presidente lhe dão o direito de agir como Luiz XIV (L'État, c'est moi), logo não admite que seu poder absoluto seja posto em xeque. 

Não é bem assim (ou não deveria ser), mas nem o Legislativo nem o Judiciário tiveram peito para botar trambelha nesse destrambelhado. Além disso, conforme eu já mencionei em outras oportunidades, ser ministro ou exercer outro cargo de confiança do inquilino de turno do Planalto exige dar o rabo e pedir desculpas por estar de costas. Assim, para não criar nova crise com o Executivo, o general Paulo Sérgio cedeu às pressões do presidente... e criou uma crise no meio militar. 

Durma-se com mais essa.