Ao contrário de outros candidatos a caudilho, Bolsonaro
não criou qualquer movimento político consistente, organizado e capilarizado
que pudesse minimamente seguir um comando. Para comparação, no seu auge o PT dispunha
de sindicatos, organizações comunitárias, setores da Igreja Católica e
substancial parte da intelectualidade prontos a atender as diretrizes do comando partidário.
Bolsonaro não dispõe de nada remotamente parecido,
talvez por ter caído no fetichismo tecnológico de que a espuma criada por redes
sociais significa real capacidade de mobilização de forças políticas. No
sentido mais estrito da “política”, não dispõe no tão importante Legislativo
brasileiro de qualquer massa de manobra significativa que ele controle como
quiser. Ao contrário: Bolsonaro é massa de manobra do Centrão,
ao qual entregar a chave do cofre que o Planalto controlava.
Se em algum momento Bolsonaro acreditou que tinha um Exército para chamar de “seu”, só um bom psiquiatra conseguiria explicar essa visão de mundo, pois, a partir da realidade dos fatos, o presidente jamais poderia ter feito essa afirmação. Ou pelo menos era o que a gente supunha ao acreditar na evolução da doutrina e do pensamento dos comandantes militares nos últimos 35 anos, que pode ser resumida na ênfase que dão ao papel institucional e constitucional das Forças Armadas, além do empenho em profissionalismo, hierarquia e disciplina.
Durou quase meio século a trajetória do Exército entre eliminar a ameaça de anarquia dentro da instituição e o retorno à ameaça de anarquia. Nos dois episódios — quando a anarquia foi abortada e quando ela foi incentivada — a figura central foi o presidente da República. No primeiro episódio, o mandatário era o general Ernesto Geisel — alguém que, de fato, sabia o que era a natureza do poder. Em 1977, Geisel destituiu sumariamente seu ministro do Exército por entender que o subordinado participava de um movimento de insubordinação (se me perdoam o trocadilho). No segundo, o mandatário é o ex-capitão Jair Bolsonaro — alguém que, de fato, nunca soube o que é poder.
No episódio da demissão do Ministro da Defesa e seus comandantes militares, Bolsonaro acabou de destruir o pouquíssimo respeito que os oficiais superiores ainda nutririam por ele. Alguns já se referiam ao capitão como “ladrãozinho”, pois tiveram de sobreviver décadas apenas a partir de seus soldos, e olham com nojo o esquema de “rachadinhas” no qual a família está envolvida. É fato que os oficiais superiores abominam a tentativa de politização das Forças Armadas, mas o que mais criticam em Bolsonaro é o que identificam como incapacidade de liderança e comando.
Ao incentivar a insubordinação de um general, o "Mito" atacou um pilar fundamental de qualquer Exército, sem entender que está
colocando em jogo a própria autoridade — que exerce de forma incoerente, e
contraproducente. Talvez um psiquiatra pudesse explicar seu desprezo pelo funcionamento de instituições, que são complexas estruturas
apoiadas tanto em normas e códigos formais quanto na confiança que se atribui a
elas. Um exemplo que abona essa tese é a maneira escabrosa como tratou o Ministério
da Saúde — cuja eficácia acabou sendo severamente comprometida no combate à
pandemia não tanto pelo aparelhamento com incompetentes, mas, sobretudo, pela
concorrência feita pelo próprio presidente e seu círculo informal de aconselhamento, eivado
de charlatães, puxa-sacos, irresponsáveis e palpiteiros de plantão.
No caso do Exército, o primitivismo político levou Bolsonaro a querer
dominá-lo. Mas até o mais empedernido leninista compreende que o poder
político baseado exclusivamente na força militar não dura para sempre, e que o
exercício do poder abarca convencimento, visão, liderança e articulação de
diversas forças (para não falar das ideias e postulados que as movam). Na
linguagem marxista, o bonapartismo bem-sucedido é o que conhece seus limites.
Para Napoleões de hospício, é possível que a recusa das Forças
Armadas a embarcar em aventuras políticas revigore seus instintos nunca
dominados.
Bolsonaro é o principal insubordinado em relação ao
Exército, fato mais uma vez demonstrado ao trazer para junto de si no Planalto
um general processado por indisciplina. Está sinalizando a todos que a
transgressão da regra compensa, desde que o transgressor seja alguém de
lealdade irrestrita do tiranete de turno.
Presidentes que agem mais por instinto do que por raciocínio e se tornam estadistas quando instinto, visão e raciocínio combinam com os fatos da realidade são raríssimos. Talvez a geração no Brasil que foi às urnas pela primeira vez no século 21 não se lembre de nenhum. Geisel abortou a anarquia e, de uma posição de autoridade, iniciou ainda em 1977 o caminho (admita-se, lento e tortuoso) que levou à devolução do poder aos civis e à redemocratização. Nesse sentido, é um marco na linha do tempo que não pode ser ignorado, seja como símbolo, seja pelas consequências.
Um niilista como Bolsonaro, sem visão política coerente e desprovido de qualquer princípio que não seja a própria sobrevivência, ao incentivar a anarquia, também quer colocar um marco na linha do tempo. Seu símbolo já é claro. Quanto às consequências... bem, vamos dar tempo ao tempo. De tanto ir à fonte, um dia o cântaro lá deixa a asa.
Bolsonaro e seus conselheiros políticos e pessoais parecem saídos da clássica comédia do cinema italiano L’armata Brancaleone — em Portugal o título ficou mais sugestivo: Capitão Brancaleone. (detalhes na próxima postagem). Pode ser que confiem num final igual ao do filme, quando milagrosamente são salvos de serem empalados.