Em Campos do Jordão — município paulista com 52,4 mil habitantes, onde a temporada de inverno tem início com o feriado de Corpus Christi — foram registrados 4,8 mil infecções e 122 óbitos. A despeito da força-tarefa organizada pela prefeitura, as imagens do centro de Capivari exibidas pelos telejornais na última sexta-feira mais pareciam ter sido gravadas na 25 de Março às vésperas do Natal.
Pelo visto, de nada adiantaram a barreira sanitária, o
controle de acesso ao calçadão e a proibição da venda de bebidas alcoólicas
“para viagem” (inclusive nos supermercados). O comércio local comemorou os
95% de ocupação na rede hoteleira, e estima-se que 60 mil turistas visitem a cidade durante
o feriadão.
Além de não ter eficácia comprovada no combate ao vírus, a medição de temperatura na entrada de estabelecimentos comerciais
pode gerar uma falsa sensação de segurança. Menos da metade dos infectados pelo
Sars-CoV-2 tem febre. Além disso, é normal a temperatura corporal de uma
pessoa saudável subir caso ela faça a pé ou de bicicleta o trajeto até o
estabelecimento, sobretudo sob sol a pino.
No início da pandemia, quando pouco se sabia sobre o coronavírus,
achava-se que medir a temperatura era uma precaução funcional, mas o avanço nos
estudos deu conta de que ela é ineficaz. Segundo os especialistas, o que
previne o contágio é o uso de máscara, higienização das mãos (com álcool em gel
na impossibilidade de usar água e sabão) e distanciamento entre as pessoas —
como não se observa na foto que ilustra esta postagem.
Não é de hoje — como revela o fascinante livro Galileu e os Negadores da Ciência, do israelo-americano Mario Livio — que o conhecimento sofre permanente assédio da fé, dos radicalismos e da ignorância. Em seu tempo, nem mesmo o genial astrônomo italiano foi capaz de impedir que o sistema de Copérnico, segundo o qual a Terra gira em torno do Sol, recebesse a condenação religiosa.
Levado ao Tribunal do Santo Ofício em 1633, Galileu Galilei foi acusado de heresia ao tentar provar a teoria heliocêntrica, sendo obrigado a negar suas convicções. Diz a lenda que, após desmentir a si mesmo, o cientista ainda teria murmurado: “E pur si muove” — algo como “ela se move de per si”.
Lamentavelmente, em pleno século XXI, as forças do
atraso continuam a ter influência em personagens da política e certas correntes
evangélicas, manipulando milhões de incautos — uma massa ignara que continua a
achar que a vacina é perigosa ou que a Terra é plana. E pur si muove
é o que precisa ser dito, sempre e cada vez mais, num momento em que predominam
tais insanidades e não os fatos.
Alimentadas pela engrenagem ácida e daninha das redes sociais — e não há aqui aversão aos avanços da tecnologia, fundamentais —, informações precárias, frágeis, sem confirmação alguma e por vezes evidentemente mentirosas são tratadas como certezas absolutas. Uma pesquisa de Harvard revela que cresceu recentemente o movimento antivacina, típico exemplo do chamado efeito Dunning-Kruger, batizado a partir do trabalho de seus idealizadores, os psicólogos David Dunning e Justin Kruger. Eles demonstraram cientificamente que pessoas com pouco (ou nenhum) domínio sobre um assunto tendem a achar que sabem mais do que os especialistas. São os donos da verdade, delirantes, que seriam apenas histriônicos, caso não representassem um perigo para a democracia e até para a vida das pessoas.
Numa sociedade desenvolvida, o pensamento científico
não pode ser desprezado, dando espaço a opiniões tolas, sem fundamento,
invariavelmente radicais e baseadas em teorias da conspiração. De forma
anacrônica, estamos testemunhando esse processo atualmente, tanto na política quanto no
combate ao coronavírus. Portanto, é preciso persistir na direção correta para
evitarmos um danoso retrocesso civilizatório.
Ao longo de 28 anos como deputado do baixo clero, Bolsonaro
sempre deixou clara sua aversão pelo Estado democrático de Direito. Na presidência,
demonstrou incômodo com os limites impostos pela Constituição, e vem dando
sinais cada vez mais evidentes de que pretende destruir o que foi edificado
com muito esforço durante as últimas 3 décadas.
A construção de uma cultura política democrática nunca fez parte da nossa República. As veleidades autoritárias sempre estiveram presentes, mesmo em momentos de relativo funcionamento de instituições democráticas. O uso da força rondou os 131 anos de história republicana como uma carta na manga a ser usada em jogadas decisivas — como de fato foi, incontáveis vezes, desde 1889.
“A democracia é o pior regime de governo, à exceção de todos os outros já experimentados” disse Sir Winston Churchill. Mas “o melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano”, ponderou o estadista britânico.
Prova disso é o negacionismo criminoso do capitão afrontar o mundo, mas arrancar aplausos entusiasmados da caterva de apedeutas que vêm no mitômano um “mito” a ser venerado com a mesma devoção cega e burra que a patuleia descerebrada dedica ao sumo sacerdote da Petelândia.
O entendimento de que, na democracia, é preciso
conviver com a diferença, com a pluralidade, com a alternância no poder e com o
respeito às instituições nunca foi compreendido pelas elites políticas. E o ano
em curso está expondo de forma absolutamente transparente as contradições da
democracia brasileira, mas com um ingrediente inexistente em outras
crises da República: a pandemia, que está atingindo o âmago do Estado
democrático de Direito.
O nazifascismo bolsonarista estabeleceu na morte o foco
de sua ação política. O desprezo pela existência humana atingiu o ápice. Como
não há guerra externa, restou aos extremistas atacar, pelo negacionismo, seus
próprios compatriotas. A carnificina sem fim é o objetivo central dos
genocidas. Resistir é uma tarefa de sobrevivência nacional. Como de hábito — e
a história republicana tem vários exemplos — a reação é normalmente tardia, mas
chega com força e de forma surpreendente.
Os panelaços e as primeiras grandes manifestações de rua, o aumento da impopularidade, o agravamento da pandemia e a lenta recuperação econômica podem ser o estopim que levará à implosão da matança antes que seja tarde demais. Que os anjos digam amém, pois há nuvens negras no horizonte.
Diante de uma conjuntura em que se misturam quase 500 mil mortos por
Covid e mais de 14 milhões de desempregados, o que o Brasil menos
precisa é de novas crises. Mas Bolsonaro é uma usina de crises em forma de
gente, e acaba de criar um problema novo: a anarquia militar.
Há uma semana, Eduardo Pazuello
reconhecia em privado que “errara” ao participar do ato
político promovido pelo capitão no final do mês passado. O Alto Comando
do Exército cobrava um enquadramento e o vice-presidente Hamilton Mourão
dava a punição como favas contadas. Só que não. Além de não ser punido, o
general foi premiado com um cargo na Secretaria de Assuntos Estratégicos da
Presidência.
Escancararam-se as portas para uma anarquia que tem cinco
ingredientes radioativos. O primeiro é o acréscimo de um general-de-divisão da
ativa à tropa de militares que comandam escrivaninhas no Planalto. O segundo é
a ponte que Bolsonaro constrói ligando o gabinete presidencial aos
quartéis. O terceiro é o apoio de policiais militares que agridem e atiram
balas de borracha contra opositores que expressam antipatia pelo presidente nas
ruas.
O quarto ingrediente é o aviso do capitão de que não
aceitará o resultado da disputa presidencial de 2022 se uma eventual derrota
for contabilizada em votos não impressos, e o quinto foi adicionado pelo
arquivamento do processo disciplinar contra o general insurreto.
Até aqui, Bolsonaro dizia “meu
Exército” e todo mundo achava que ele se referia a uma ficção; agora, o
Exército informa que pertence mesmo ao presidente, não ao Estado brasileiro.