quinta-feira, 3 de junho de 2021

DOIS PESADELOS

 

De cadete a capitão, Bolsonaro vestiu farda do Exército por 14 dos seus 66 anos de vida. Foi expurgado da carreira militar por indisciplina. Amargou 15 dias de cadeia. Depois de três décadas de vida parlamentar, saltou do baixo clero do Congresso para o Planalto. Como presidente da República, tornou-se chefe supremo das Forças Armadas. Já declarou que “nasceu para ser militar”, mas opera como se desejasse inocular nos quarteis os piores vícios da política.

O presidente decidiu tratar o general Eduardo Pazuello como um deputado fisiológico do centrão. Depois de blindar o suserano no depoimento à CPI do Genocídio, o vassalo subserviente ganhou de presente o cargo de Secretário de Estudos Estratégicos. Enganchará em seu contracheque de general um salário de quase R$ 17 mil e ficará abaixo do almirante Flávio Rocha, que responde diretamente a Bolsonaro.

Essa versão fardada de toma-lá-dá-cá ocorre num instante em que Pazuello responde a processo disciplinar do Exército e aguarda na fila de depoentes da CPI pelo agendamento de sua reinquirição, quando será confrontado com as inverdades que teve de pronunciar para preservar o presidente.

O Exército abriu processo contra Pazuello devido a sua participação ato político de 16 de maio, realizado por Bolsonaro no Rio de Janeiro. Escorando-se em versão construída pelo capitão, o general foge da punição alegando que o comício em questão não era um evento político, pois o presidente não está filiado a nenhum partido.

Ao abrigar o ex-ministro da Saúde numa trincheira do Planalto, Bolsonaro constrange o Exército, que demora a definir a punição do insurreto. O general da reserva e vice-presidente Hamilton Mourão explicou o que está em jogo ao defender o enquadramento de Pazuello, ponderando que a punição é necessária para evitar que “a anarquia se instaure nos quartéis”.

Mourão sabe o que diz. Quando estava na ativa, perdeu o prestigioso comando do Sul por fazer declarações políticas. Reconheceu que falara demais. E resignou-se diante da punição: “Cada um tem que saber o tamanho da sua cadeira.”

Ao acomodar Pazuello no seu colo, Bolsonaro coloca o trono presidencial no jogo. É como se intimasse o Exército a se comportar como partido do governo. 

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Já se sabia que a Justiça é cega. Descobre-se agora, num episódio estrelado pelo ministro Dias Toffoli, que a balança de Têmis está desregulada. A desregulagem ficou evidente na decisão em que o Supremo anulou, por 7 votos a 4, a delação do megacorrupto Sérgio Cabral, ex-governador do Rio. Alegou-se que a validade do acordo, celebrado pela Polícia Federal, dependia do aval do Ministério Público. Em 2018, o mesmo Supremo havia decidido o oposto. Reconheceu os poderes da PF para firmar acordos de delação, mesmo que à revelia do Ministério Público.

A delação de Cabral havia sido homologada no ano passado. A Procuradoria contestou a decisão em março de 2020. Só agora, um ano e dois meses depois, o pedido de anulação foi julgado. O assunto saiu da gaveta depois que o nome de Dias Toffoli foi pendurado nas manchetes de ponta-cabeça. Descobriu-se que Cabral acusou Toffoli de receber propina de R$ 4 milhões para favorecer dois prefeitos fluminenses enroscados no TSE. Toffoli nega o malfeito. Antes de analisar o mérito da delação, tornou-se necessário julgar a preliminar sobre a validade do acordo.

Coisas estranhas passaram a acontecer. Imaginou-se que Dias Toffoli fosse se abster de participar do julgamento sobre a validade da delação de Cabral. Pois ele participou. Luiz Fux, presidente do Supremo, não costuma votar em processos que envolvem Sergio Cabral. Quando governava o Rio, o personagem apoiou a indicação de Fux para a vaga de ministro do Supremo. Dessa vez, ele votou. Toffoli e Fux engrossaram a maioria favorável à anulação do acordo de delação. A decisão pode produzir um efeito cascata, pois o acordo com Cabral não é o único que foi celebrado pela Polícia Federal, sem a participação do Ministério Público.

Sérgio Cabral é um corrupto de vitrine. Carrega na biografia condenações que somam mais de 300 anos de cadeia. Palavra de delator não é prova. Mas o que incomoda no caso das menções feitas a Toffoli é a forma como a acusação é retirada de cena, num julgamento feito em plenário virtual, sem debate, longe das câmeras da TV Justiça. A democracia não merece que o Supremo desfaça a si mesmo para abreviar o drama de um de seus ministros.

Com Josias de Souza