De cadete a capitão, Bolsonaro vestiu farda do
Exército por 14 dos seus 66 anos de vida. Foi expurgado da carreira militar por
indisciplina. Amargou 15 dias de cadeia. Depois de três décadas de vida
parlamentar, saltou do baixo clero do Congresso para o Planalto. Como
presidente da República, tornou-se chefe supremo das Forças Armadas. Já
declarou que “nasceu
para ser militar”, mas opera como se desejasse inocular nos quarteis os
piores vícios da política.
O presidente decidiu tratar o general Eduardo
Pazuello como um deputado fisiológico do centrão. Depois de blindar o
suserano no depoimento à CPI do Genocídio, o vassalo subserviente ganhou
de presente o cargo de Secretário de Estudos Estratégicos. Enganchará em
seu contracheque de general um salário de quase R$ 17 mil e ficará abaixo do
almirante Flávio Rocha, que responde diretamente a Bolsonaro.
Essa versão fardada de toma-lá-dá-cá ocorre num
instante em que Pazuello responde a processo disciplinar do Exército e
aguarda na fila de depoentes da CPI pelo agendamento de sua reinquirição,
quando será confrontado com as inverdades que teve de pronunciar para preservar
o presidente.
O Exército abriu processo contra Pazuello devido
a sua participação ato político de 16 de maio, realizado por Bolsonaro
no Rio de Janeiro. Escorando-se em versão construída pelo capitão, o general
foge da punição alegando que o comício em questão não era um evento político,
pois o presidente não está filiado a nenhum partido.
Ao abrigar o ex-ministro da Saúde numa trincheira do
Planalto, Bolsonaro constrange o Exército, que demora a definir a
punição do insurreto. O general da reserva e vice-presidente Hamilton Mourão
explicou o que está em jogo ao defender o enquadramento de Pazuello,
ponderando que a punição é necessária para evitar que “a
anarquia se instaure nos quartéis”.
Mourão sabe o que diz. Quando estava na ativa,
perdeu o prestigioso comando do Sul por fazer declarações políticas. Reconheceu
que falara demais. E resignou-se diante da punição: “Cada
um tem que saber o tamanho da sua cadeira.”
Ao acomodar Pazuello no seu colo, Bolsonaro
coloca o trono presidencial no jogo. É como se intimasse o Exército a se
comportar como partido do governo.
***
Já se sabia que a Justiça é cega. Descobre-se agora, num episódio estrelado pelo ministro Dias Toffoli, que a balança de Têmis está desregulada. A desregulagem ficou evidente na decisão em que o Supremo anulou, por 7 votos a 4, a delação do megacorrupto Sérgio Cabral, ex-governador do Rio. Alegou-se que a validade do acordo, celebrado pela Polícia Federal, dependia do aval do Ministério Público. Em 2018, o mesmo Supremo havia decidido o oposto. Reconheceu os poderes da PF para firmar acordos de delação, mesmo que à revelia do Ministério Público.
A delação de Cabral havia sido homologada no ano
passado. A Procuradoria contestou a decisão em março de 2020. Só agora,
um ano e dois meses depois, o pedido de anulação foi julgado. O assunto saiu da
gaveta depois que o nome de Dias Toffoli foi pendurado nas manchetes de
ponta-cabeça. Descobriu-se que Cabral acusou Toffoli de receber
propina de R$ 4 milhões para favorecer dois prefeitos fluminenses enroscados no
TSE. Toffoli nega o malfeito. Antes de analisar o mérito da delação,
tornou-se necessário julgar a preliminar sobre a validade do acordo.
Coisas estranhas passaram a acontecer. Imaginou-se que Dias
Toffoli fosse se abster de participar do julgamento sobre a validade da
delação de Cabral. Pois ele participou. Luiz Fux, presidente do Supremo,
não costuma votar em processos que envolvem Sergio Cabral. Quando
governava o Rio, o personagem apoiou a indicação de Fux para a vaga de
ministro do Supremo. Dessa vez, ele votou. Toffoli e Fux
engrossaram a maioria favorável à anulação do acordo de delação. A decisão pode
produzir um efeito cascata, pois o acordo com Cabral não é o único que
foi celebrado pela Polícia Federal, sem a participação do Ministério Público.
Sérgio Cabral é um corrupto de vitrine. Carrega na
biografia condenações que somam mais de 300 anos de cadeia. Palavra de delator
não é prova. Mas o que incomoda no caso das menções feitas a Toffoli é a
forma como a acusação é retirada de cena, num julgamento feito em plenário virtual,
sem debate, longe das câmeras da TV Justiça. A democracia não merece que o
Supremo desfaça a si mesmo para abreviar o drama de um de seus ministros.
Com Josias de Souza