domingo, 18 de outubro de 2020

SEMIDEUSES TOGADOS — PARTE II

Para fugir à mesmice da mitologia grega (mais detalhes nesta postagem), esqueçamos por um instante o célebre Monte Olimpo e foquemos Asgard, a morada dos deuses na mitologia nórdica.

Asgard se contrapõe a Niflheim, o mundo da névoa e da ilusão, e se liga ao reino dos mortais (Midgard) pela ponte do arco-íris (Bifrost). Nesse mundo mítico e místico fica o suntuoso palácio de Valhala, de onde Odin, o deus dos deuses, sentado em Hlidskialf, seu trono mágico, observa tudo que se passa nos nove mundos. 

Atribuem-se-lhe (ao deus, não ao trono) poderes como o de ver o passado e o futuro dos mortais, de cegá-los e de deixá-los surdos  dizem as más as más línguas que ele os teria usado impiedosamente contra a militância petista e a récua de bolsomínions. Quando cavalga Sleipnir, o mais belo dos cavalos, Odin se faz acompanhar dos corvos Hugin e Munin, que sobrevoam os nove mundos e o mantêm a par de tudo o que neles acontece.

No hemisfério sul de um certo planetinha azul, encravada no planalto central de uma republiqueta de almanaque, fica a mitológica Brasília das Maravilhas — cidade projetada no final dos anos 1950 por Oscar Niemayer para substituir o Rio de Janeiro como distrito federal e capital do país. No extremo leste de seu Plano Piloto, dividem a Praça dos Três Poderes o Palácio do Planalto, sede executivo federal; o Congresso Nacional, sede do poder legislativo; e o Supremo Tribunal Federal, o órgão máximo do judiciário tupiniquim.

O STF ocupa uma área de 14.000 metros quadrados, que dá e sobra para abrigar confortavelmente o Plenário (salão de debates dos 11 togados), a sala do presidente da Corte (com respeitáveis 100 m2) e as duas Turmas (cada qual com cinco integrantes)

Os ministros, como são intitulados os membros dessa e das demais cortes superiores na tal republiqueta, são alçados ao supremo cargo pelo presidente da República, mas dependem de autorização expressa dos senadores (maioria simples, de 41 dos 81 votos possíveis) para se aboletarem nas supremas poltronas de couro cor de caramelo, de onde virão a condenar os pobres e absolver os ricos, soltar traficantes e chefes de organizações criminosas, criar leis sob medida para favorecer um ex-presidente ladrão, e por aí afora.

O cargo de ministro do STF não é vitalício no sentido estrito da palavra, já que o prazo de validade determinado pela Constituição Federal expira quando o ocupante completa 75 anos de idade. No entanto, nada impede um togado de vestir o supremo pijama quando bem entender, como fez dias atrás o decano Celso de Mello, que adiantou em três semanas seu desligamento da Corte, e antes dele o ministro Joaquim Barbosa, que se aposentou em 2014, aos 59 anos. 

Enquanto ministros do Supremo, esses semideuses são inamovíveis — ou seja, só correm o risco de ser expelidos da Corte se forem condenados por crime de responsabilidade (note bem o leitor que eu não disse "se cometerem crime de responsabilidade", mas "se forem condenados por crime de responsabilidade").

Diferentemente das imagens da deusa Têmis que decoram fóruns e tribunais mundo afora, a estátua de pedra erigida diante do STF está sentada. Como as demais, ela tem os olhos vendados e porta a indefectível espada, mas sua balança foi roubada há alguns anos por um deputado, que, por ter direito a foro especial por prerrogativa de função, ainda não foi julgado pela suprema corte, onde uma decisão tanto pode demorar duas horas quanto vinte anos para ser proferida — a depender do ministro que a toma e a quem ela favorece. Assim, por medida de extrema cautela, a deusa da Justitia tupiniquim espera sentada.

A despeito do “periculum in mora”, celeridade nunca foi o ponto forte do STF. E a situação piorou a partir de 2002, quando as sessões plenárias começaram a ser transmitidas ao vivo pela TV Justiça. Sob os holofotes, os vaidosos ministros, cujos egos gigantescos mal cabem nos amplos salões da Corte, passaram a ler votos cada vez mais longos e a se desentender mais frequentemente com seus pares. 

Observação: Somados, os votos proferidos pelo colegiado a cada sessão perfazem, em média, 60 mil palavras, o que daria um livro de mais de 200 páginas. É muita lenha queimada para pouca fumaça do bom direito produzida.

Até o início do século XIX, nossa republiqueta de bananas não contava com uma corte suprema. Com a vinda da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, o príncipe regente criou a Casa da Suplicação do Brasil, que é considerada a versão 1.0 do STF. Mas a função de suprema corte só se solidificou após a declaração da independência, criação do Supremo Tribunal de Justiça e sua subsequente promoção a Supremo Tribunal Federal (noves fora um curto período em que o tribunal foi efetivamente chamado de Corte Suprema).

Passados dois séculos, o STF rescende ao bolor dos tempos do Império, com seus paramentos, rapapés, salamaleques, linguagem empolada, votos repletos de citações em latim e outras papagaiadas. 

Os ministros trazem os votos prontos e raríssimas vezes mudam de opinião por conta das sustentações orais de advogados, amici curiae, membros da PGR e quem mais subir à tribuna e fizer solilóquios — enquanto aguardam sua vez de falar, suas excelências se entretêm com a monteira de papéis que se empilham em suas bancadas, navegam na Web, jogam Solitaire ou tiram um cochilo; afinal, ninguém é de ferro.

Após o voto do relator, os demais magistrados se pronunciam na ordem inversa ao tempo de casa (ou seja, seja, do novato ao decano). Em havendo empate, cabe ao presidente de turno dar o voto de minerva. 

Ainda que os magistrados pudessem se limitar a dizer se acompanham ou não o voto do relator e, no caso de divergência, expor em poucas palavras o motivo que os levou a discordar, a leitura dos voto costuma levar horas. Há casos em que a leitura de um único voto preenche uma sessão inteira — tempo mais que suficiente para julgar dois ou mais processos, agilizando os trabalhos e aprimorando a performance do tribunal.

Observação: Até hoje, o STF concluiu apenas dois julgamentos de parlamentares em ações criminais oriundas da operação Lava-Jato. No mesmo espaço de tempo, a força-tarefa contabilizou 242 condenações contra 155 pessoas em 50 processos e recuperou R$ 2,5 bilhões (uma média de R$ 1,37 milhão por dia devolvido aos cofres públicos desde 2014). Segundo estimativas dMPF, o valor apurado pode chegar a R$ 40 bilhões.

Manter essa máquina gigantesca funcionando custa aos contribuintes mais de R$ 1 bilhão por ano. Se somarmos a essa exorbitância os R$ 6 bilhões que custam o STJ e o TST, os salários e mordomias de senadores, deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores, bem como os bilhões tragados pelo ralo da corrupção, teremos um pisto do motivo pelo qual o país nunca tem recursos para investir na Saúde, na Educação, na Segurança etc., ainda que a arrecadação anual ultrapasse a casa dos R$ 3 trilhões.

Observação: No Brasil, cada contribuinte trabalha mais de 5 meses por ano só para fazer frente à carga tributária, que consome 41,80% da sua renda. Como disse certa vez o economista Delfin Netto, nosso país virou uma INGANA, com impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana

Continua...