Os comandantes das Forças Armadas estão preocupados que crimes pontuais de militares específicos venham a comprometer a honra e a imagem da instituição, escreveu o colunista Ricardo Rangel em VEJA.
A preocupação faz sentido: há, no Ministério da Saúde e em
torno dele, perto de uma dúzia de militares envolvidos com atividades suspeitas
de corrupção. São eles o cabo da PM Luiz Dominguetti (ativa); o sargento
Roberto Dias; os coronéis Élcio Franco, Marcelo Pires, Alexandre
Martinelli, Roberto Criscuoli, Gláucio Guerra e George Duvério;
os tenentes-coronéis Alex Marinho (ativa) e Marcelo Blanco; e o
general Eduardo Pazuello (ativa).
É legítimo que os comandantes queiram evitar que as Forças Armadas, enquanto instituição, fiquem comprometidas. E para tanto há um caminho simples: basta abrir um inquérito na Justiça Militar, investigar os suspeitos e punir os culpados.
Existem dois casos em que a corte marcial pode ser instaurada
imediatamente: Pazuello e Élcio Franco cometeram,
comprovadamente, crimes de falsidade ideológica (mentiram ao público em
coletivas), falso testemunho (mentiram sob juramento na CPI),
negligência criminosa e prevaricação (pela displicência na aquisição de
vacinas).
Outro caminho é tentar intimidar os senadores para melar a CPI,
livrando a cara dos criminosos, como os comandantes fizeram na semana passada.
Nesse caso, entretanto, ninguém poderá reclamar dos senadores: serão os
próprios comandantes das FFAA — general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira,
almirante de esquadra Almir Garnier Santos e tenente-brigadeiro do ar Carlos
Almeida Baptista Junior — a jogar a honra e a imagem da instituição na
lama. E é isso que os livros de história registrarão.
Segundo o tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente
do Superior Tribunal Militar, "citando como meu exército o
honrado Exército de Caxias, Bolsonaro tenta ludibriar civis e militares sobre
irreal apoio na caserna".
Diz o jornalista Marcelo Godoy — no Estadão
desde 1998, e em cuja ordem do dia estão as relações entre o poder Civil e o
poder Militar desde a publicação de seu livro A
Casa da Vovó — que Ferolla escreveu artigos e os remeteu a sua
coluna. O primeiro, intitulado Diálogos no Purgatório, trata dos efeitos
da pandemia de Covid no Brasil e o papel do governo de Bolsonaro e dos
generais que o apoiam. Começa assim: "Nosso País vai sendo conduzido
ao temível reino das trevas e registrando perdas de milhares de vítimas da
amaldiçoada pandemia".
O homem, que teve sua carreira ligada ao Centro
Tecnológico Aeroespacial, continua: "Estimulando tanta
desarmonia nos três Poderes da República, o governo tornou o Brasil pária
internacional, além de destacada ameaça política e sanitária no contexto das
nações. Retratado pelas colocações quixotescas de um psicótico presidente, é
comparado ao cenário criado por Miguel de Cervantes, no qual um pretenso
cavaleiro pensava poder salvar sua Pátria brandindo armas primitivas, em plena
modernidade".
Desde o começo do governo, Ferolla é um dos
oficiais-generais que não se comprometeram com as teses do capitão-presidente.
Tem autoridade, pois sempre conservou a gravidade que a patente lhe confere,
bem como a dignidade do posto. Prossegue o brigadeiro: "Para
enlamear a comparação, enquanto o impetuoso personagem agia de forma
estapafúrdia por reconhecida debilidade mental, nosso Dom Quixote caipira não
passa de premeditado ator de picadeiro, a provocar contestações radicais num
circo mambembe na Esplanada dos Ministérios".
O brigadeiro faz justiça ao Quixote e procura
dissociá-lo da figura do presidente. "De forma insana, para a
satisfação de asseclas e seguidores de suas ações idiotas e demagógicas,
manifesta-se e gesticula como o personagem criado pelo escritor espanhol. Mas
não é justo desmerecer o histórico Dom Quixote, símbolo de 'um personagem que,
cem anos antes, teria sido um herói nas crônicas ou romances de cavalaria' .
Sabiamente colocado em ação um século após, sua loucura visava refletir o
anacronismo de uma época e seu criador se valeu da imagem para satirizar os
novos tempos, ‘retratando uma Espanha que, após um século de glórias, começava
a duvidar de si mesma’."
O Brasil parece duvidar de si mesmo. Não há outra
explicação, nas palavras do brigadeiro, para a Nação ter entregado seu destino
a um personagem que o professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército Francisco Carlos Teixeira afirma ser destituído de pietas,
gravitas e dignatas, virtudes cívicas da República, desde Roma. Os colegas de Ferolla,
que apoiaram Bolsonaro e ainda lhe dão apoio público, costumam separar o
homem da prole — especialmente do filho rico, o senador Flávio Bolsonaro.
Também procuram enxergar no capitão um idealista, um Quixote, como se os
ataques à democracia fossem folclóricas cargas contra moinhos de vento. Contra
o que chamam de establishment, oferecem uma ralé.
Um general muito ativo em São Paulo esteve na última
manifestação em defesa do presidente, na Avenida Paulista. Defende Bolsonaro
e sente, como muitos de seus colegas, frustração e contrariedade ao ouvir as
queixas contra o capitão. Imputa as críticas a civis interesseiros, como se a
farda fosse suficiente para erguer o soldado acima de seu povo. E vê nas
reclamações a vingança de forças políticas que nem existem mais, derrotadas no
golpe de 31 de Março de 1964. Fácil, portanto, enxergar em Bolsonaro apenas um
Quixote, quando o próprio general se bate contra inimigos imaginários.
O tom dele em relação ao presidente é diferente daquele
adotado por Ferolla. Porém, mesmo ele não poupa o capitão de
recriminações. Principalmente em razão de sua política ambiental e da conduta
em relação às vacinas. Não é só o general Hamilton Mourão que critica o
governo nessas duas áreas. A cena é conhecida. No dia 20 de outubro de 2020, Bolsonaro
desautorizou o general da ativa Eduardo Pazuello, que decidira comprar a
CoronaVac. Era uma birra contra o governador de São Paulo, João Doria.
A visão de 2022 falava mais alto do que o bem-estar dos brasileiros: reeleição
acima de tudo, minha família acima de todos.
No dia seguinte, Pazuello gravou a "cena para a
internet" na qual degradava a patente e traía a gravidade do cargo de
ministro da Saúde em meio a uma pandemia mortal. "Senhores, é
simples assim: um manda e o outro obedece. Mas a gente tem um carinho,
entendeu?" Mais claro impossível. Para Mourão e para outros
generais, Pazuello devia se demitir. Ao permanecer no cargo, levou as
Forças Armadas ao picadeiro do circo mambembe que o brigadeiro Ferolla
enxerga montado na Esplanada.
A situação assumiria contornos mais graves, comprometendo a
sobrevivência do governo. Em fevereiro, um dos generais mais poderosos do
Planalto reconhecia para quem tivesse ouvidos em Brasília: o governo é ruim.
Dizia que a vacina fora um grande erro. Via acerto em ser contra o "fique
em casa", mas repetia: a vacina fora um erro. Ele pedia que as pessoas
olhassem para o que havia de "bom no governo" e citava o trabalho do
ministro Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura). Não foi por outra
razão que Tarcísio se transformou em figura quase obrigatória nas
andanças de Bolsonaro pelo País.
O desespero com a crise da vacina se aprofundava e parecia
tragar Bolsonaro para o abismo onde seu governo precipitara milhares de
vidas de brasileiros em razão da incúria e da luta política para impedir que Doria
fosse fotografado distribuindo a primeira dose da CoronaVac... Foi nesse
momento que as características de Forças Especiais (FE) da cúpula do Ministério
da Saúde se fizeram sentir. O lema dos herdeiros de Antonio Dias Cardoso,
o mestre das emboscadas, é "qualquer missão, em qualquer lugar, a
qualquer hora, de qualquer maneira". Ele resume a atuação do coronel Élcio
Franco e de Pazuello, ambos FE, na Saúde.
A CPI mostraria o quanto tentaram de qualquer maneira
consertar a forma com que Bolsonaro conduzira o País na crise sanitária.
A busca por vacinas os colocou diante de vendedores picaretas e empresários
gananciosos e abriu as portas às suspeitas de corrupção. Por isso, mesmo
demitidos da Saúde, Pazuello e Franco foram acolhidos no
Planalto. Generais se dividem sobre a dupla. Uns têm raiva pelo que Pazuello
fez ao se meter na política e por se comportar como youtuber, usando linguagem
de internet, quando ainda na ativa. Um integrante do Alto Comando disse à coluna
que, se o vir, não o cumprimentará. Outro afirmou que o colega é honesto, mas,
ao ser desautorizado pelo presidente, devia ter se demitido.
No passado, diante de um empréstimo concedido sem as devidas
garantias pelo Banco do Brasil, Carlos Lacerda afirmou que um diretor da
instituição era ladrão ou incompetente. "De modo que, em qualquer
dos casos, não deve permanecer no cargo". Os que hoje apoiam Bolsonaro
veriam em Lacerda um comunista. Assim tentam classificar Ferolla.
Em seu segundo artigo — Nas Trilhas do Descaminho —, ele escreve: "As
consequências, de conhecimento da sociedade, acabaram na demissão do caricato
ministro (Pazuello) e numa CPI, que busca responsáveis por possíveis crimes
contra a vida". E prossegue: " Em coletiva de imprensa, o secretário
executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, afirma que não é obrigatório
vacinar 100% da população para conter a covid-19. (Bolsonaro) nos seus
costumeiros delírios psicóticos, citando como ' meu exército' o honrado
Exército de Caxias, tenta ludibriar civis e militares sobre irreal apoio na
caserna. Para configurar tamanha falsidade, logrou envolver alguns
contemporâneos da Academia Militar, convocando-os para postos na burocracia
palaciana".
Ferolla lembra o passado, o tempo em que outros
tentaram dividir as Forças. E cita o filósofo Ortega y Gasset: "O
passado não nos dirá o que devemos fazer e sim o que deveríamos evitar".
Resta, agora, ao comando das Forças a posição ingrata de, sem prejulgar os
colegas, ter de afirmar que não compactua com desvios. A brecha aberta no muro
que separava a caserna da política deve levar à aprovação da PEC Pazuello,
que veda a participação de militares da ativa em cargos civis. Não será nenhuma
ofensa à farda. Só a correção de um erro. Ora, juízes e procuradores são obrigados
a deixar a carreira se nomeados para o Executivo. Foi assim com Sérgio Moro.
Assim deve ser com os militares.
Nos EUA, o militar deve cumprir ainda quarentena de sete
anos ao passar à reserva antes de ocupar cargos civis — exceções precisam de
autorização do Senado. Quarentena parecida é defendida pelo presidente da
Câmara, Arthur Lira. Nas Américas, além do Brasil, só a Venezuela não
estabelece maiores limites. Foi preciso que Bolsonaro chegasse ao poder
para que o país descobrisse a coincidência. Ferolla, como os
congressistas, tem os olhos voltados à eleição de 2022. "Em razão
dos acontecimentos que se repetem em nosso País, tornou-se dever e modesta
cooperação alertar, do soldado mais humilde ao general mais graduado, para o
profundo significado da mensagem deixada pelo dr. Aldo Fagundes, ex-deputado
constitucionalista e ministro do STM, recém-falecido, de que, 'a farda é leve
para quem a veste por vocação, mas é fardo insuportável para aquele que não
compreendeu a missão para a qual prestou juramento solene'."
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