domingo, 11 de julho de 2021

DEPOIS DA IMPUNIDADE VEM A BONANÇA


Ontem, enquanto o país registrava 532 mil vítimas fatais e 19 milhões de infectados pelo vírus assassino, Bolsonaro promovia mais uma motociata. Terminado o passeio, dirigindo-se aos baba-ovos de plantão, disse o mito que "acertou durante a pandemia aconselhado por pessoas maravilhosas que estavam ao seu lado", defendeu o tratamento precoce e reiterou que não vai responder aos questionamentos de Omar AzizRenan Calheiros e Randolfe Rodrigues (a quem chamou de "bandidos"). Acerca do voto impresso, assim se pronunciou o verdugo do Planalto: "Se aquele de nove dedos tem 60%, segundo o Datafolha, vamos fazer o voto impresso e auditável [o voto hoje já é auditável], da deputada Beatriz que está aqui [referindo-se a Bia Kicis], para ver se ele ganha realmente na opinião do povo". 

Depois de bater recorde de rejeição e da divulgação, pelo portal UOL, de áudios que o associam diretamente ao escândalo das rachadinhas, o capitão reclamou (pela quinta vez) das agruras do cargo. Ato contínuo, anunciou que vai prorrogar o auxílio emergencial até outubro. Tudo somado e subtraído, a Presidência é um fardo para o cara que "não nasceu para ser presidente, mas sim para ser militar", mas a reeleição é fundamental. Deu para entender ou eu preciso desenhar?

As gravações indicam que Bibo Pai e Bobi Filho eram mentores de esquemas de rachadinha em seus gabinetes na Câmara Federal e na Alerj, respectivamente. As imputações foram feitas por Andrea Valle, ex-cunhada do capitão, que era funcionária-fantasma de Zero Um e restituía ao filho do pai cerca de 80% do salário. Segundo ela, o pai do filho não só tinha conhecimento do esquema como o praticava-o ele próprio, tendo mesmo demitido um cunhado que “se negava a devolver a parte combinada do salário”. Andrea disse ainda que o dinheiro do esquema era recolhido pelo “tio Hudson — um coronel da reserva que foi colega de Bolsonaro na Aman —, e que sabe de coisas que podem "acabar com Jair, com Cristina, a irmã, e a turma toda".

O senador Alessandro Vieira protocolou no último dia 5 um requerimento para instalar a chamada CPI da Rachadinha, a despeito de o artigo 86, §4º da Constituição conceder impossibilidade penal relativa temporária ao presidente da República — em outras palavras, o chefe do Executivo não pode ser investigado por crimes alheios ao mandato presidencial. É possível que algum assessor tenha alertado Bolsonaro de que há chances reais de prisão quando ele deixar o cargo, o que poderia explicar sua absurda obstinação pela reeleição.

Confrontado com muitas evidências em contrário, um inocente convencional faria questão de ser julgado rapidamente, para demonstrar sua honorabilidade. Mas o filho do pai prefere buscar guarida na prescrição, enquanto o pai do filho parece confundir amnésia com consciência limpa.

Originalmente, Zero Um comia o pão que o Tinhoso amassou na 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, comandada pelo juiz Flávio Itabaiana. Em junho de 2019, o filho do pai conseguiu levar o processo para o TJ-RJ — o foro privilegiado dos deputados estaduais. O MP-RJ recorreu, mas, antes mesmo que a corte fluminense decidisse se o caso voltaria ou não para a primeira instância, o ministro Gilmar Mendes travou a encrenca "até o julgamento do mérito da reclamação", imprimindo ao caso velocidade comparável à de um cágado perneta.

O eminente magistrado concedeu a liminar em janeiro, liberou o processo para julgamento em maio e até hoje não levou o tema à pauta, embora pudesse fazê-lo de pronto, na condição de presidente da 2ª Turma. Na volta do recesso, Gilmar transferirá a presidência para Nunes Marques, a quem caberá pautar o julgamento da petição engavetada.

Não é a primeira vez que o Supremo colabora para que Flávio Bolsonaro obtenha a Bolsa Prescrição. Em julho de 2019, Dias Toffoli, então presidente do STF, acatou um pedido da defesa do senador e suspendeu a tramitação de todos os processos que incluíssem dados fornecidos pelo Coaf. A decisão, flagrantemente inconstitucional, só foi derrubada pelo plenário do Supremo — com o voto do próprio Toffoli — seis meses depois.

Significa dizer que, juntos, Gilmar e Toffoli, adicionaram ao projeto prescrição pelo menos um ano de protelação. Ganha duas doses da vacina Covaxin quem for capaz de adivinhar por quanto tempo Nunes Marques acomodará o buzanfã sobre a reclamação que o príncipe deseja retardar.

Enquanto brinca de esconde-esconde, esquivando-se de um veredicto, FB desfruta da solidariedade de outra Corte brasiliense, o STJ. Em fevereiro, a 5ª Turma anulou as quebras de sigilo bancário e fiscal determinadas pelo juiz Flávio Itabaiana. Alegou-se que o magistrado não fundamentou adequadamente as quebras. Foram à lata de lixo documentos que atestaram o escoamento de mais de R$ 6 milhões em verbas públicas pela fenda aberta no antigo gabinete de Zero Um na Alerj.

Com a ajuda do Judiciário, a rachadinha vai virando um outro nome para impunidade. Livres de castigo, Bolsonaro & filhos viraram arroz de festa num noticiário em que a apropriação de verbas públicas se mistura a transações imobiliárias sacramentadas com dinheiro vivo. Na penúltima aquisição, o primogênito do capitão acrescentou a seu patrimônio uma mansão em Brasília escriturada pela bagatela de R$ 5,97 milhões. Uma evidência de que depois da impunidade vem a bonança.

Com Josias de Souza