Ontem, enquanto o país registrava 532 mil vítimas fatais e 19 milhões de infectados pelo vírus assassino, Bolsonaro promovia mais uma motociata. Terminado o passeio, dirigindo-se aos baba-ovos de plantão, disse o mito que "acertou durante a pandemia aconselhado por pessoas maravilhosas que estavam ao seu lado", defendeu o tratamento precoce e reiterou que não vai responder aos questionamentos de Omar Aziz, Renan Calheiros e Randolfe Rodrigues (a quem chamou de "bandidos"). Acerca do voto impresso, assim se pronunciou o verdugo do Planalto: "Se aquele de nove dedos tem 60%, segundo o Datafolha, vamos fazer o voto impresso e auditável [o voto hoje já é auditável], da deputada Beatriz que está aqui [referindo-se a Bia Kicis], para ver se ele ganha realmente na opinião do povo".
Depois de bater recorde de rejeição e da divulgação, pelo portal UOL, de áudios que o associam diretamente ao escândalo das rachadinhas, o capitão reclamou (pela quinta vez) das agruras do cargo. Ato contínuo, anunciou que vai prorrogar o auxílio emergencial até outubro. Tudo somado e subtraído, a Presidência é um fardo para o cara que "não nasceu para ser presidente, mas sim para ser militar", mas a reeleição é fundamental. Deu para entender ou eu preciso desenhar?
As gravações indicam que Bibo Pai e Bobi Filho eram
mentores de esquemas de rachadinha em seus gabinetes na Câmara
Federal e na Alerj, respectivamente. As imputações foram
feitas por Andrea Valle, ex-cunhada do capitão, que era
funcionária-fantasma de Zero Um e restituía ao filho do pai cerca de 80%
do salário. Segundo ela, o pai do filho não só tinha conhecimento do esquema
como o praticava-o ele próprio, tendo mesmo demitido um cunhado que “se
negava a devolver a parte combinada do salário”. Andrea disse ainda
que o dinheiro do esquema era recolhido pelo “tio Hudson — um coronel
da reserva que foi colega de Bolsonaro na Aman
—, e que sabe de coisas que podem "acabar com Jair, com Cristina, a
irmã, e a turma toda".
O senador Alessandro Vieira protocolou no último dia 5 um requerimento
para instalar a chamada CPI da Rachadinha, a despeito de o artigo
86, §4º da Constituição conceder impossibilidade penal
relativa temporária ao presidente da República — em outras palavras, o
chefe do Executivo não pode ser investigado por crimes alheios ao mandato
presidencial. É possível que algum assessor tenha alertado Bolsonaro de que há
chances reais de prisão quando ele deixar o cargo, o que poderia explicar sua
absurda obstinação pela reeleição.
Confrontado com muitas evidências em contrário, um inocente
convencional faria questão de ser julgado rapidamente, para demonstrar sua
honorabilidade. Mas o filho do pai prefere buscar guarida na prescrição,
enquanto o pai do filho parece confundir amnésia com consciência limpa.
Originalmente, Zero Um comia o pão que o Tinhoso
amassou na 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, comandada pelo
juiz Flávio Itabaiana. Em junho de 2019, o filho do pai conseguiu
levar o processo para o TJ-RJ — o foro privilegiado dos deputados
estaduais. O MP-RJ recorreu, mas, antes mesmo que a corte fluminense decidisse
se o caso voltaria ou não para a primeira instância, o ministro Gilmar Mendes
travou a encrenca "até o julgamento do mérito da reclamação", imprimindo
ao caso velocidade comparável à de um cágado perneta.
O eminente magistrado concedeu a liminar em janeiro, liberou
o processo para julgamento em maio e até hoje não levou o tema à pauta, embora pudesse
fazê-lo de pronto, na condição de presidente da 2ª Turma. Na volta
do recesso, Gilmar transferirá a presidência para Nunes Marques, a
quem caberá pautar o julgamento da petição engavetada.
Não é a primeira vez que o Supremo colabora para que Flávio
Bolsonaro obtenha a Bolsa Prescrição. Em julho de 2019, Dias Toffoli,
então presidente do STF, acatou um pedido da defesa do senador e suspendeu
a tramitação de todos os processos que incluíssem dados fornecidos pelo Coaf.
A decisão, flagrantemente inconstitucional, só foi derrubada pelo plenário
do Supremo — com o voto do próprio Toffoli — seis meses
depois.
Significa dizer que, juntos, Gilmar e Toffoli,
adicionaram ao projeto prescrição pelo menos um ano de protelação. Ganha duas
doses da vacina Covaxin quem for capaz de adivinhar por quanto
tempo Nunes Marques acomodará o buzanfã sobre a reclamação que
o príncipe deseja retardar.
Enquanto brinca de esconde-esconde, esquivando-se de um
veredicto, FB desfruta da solidariedade de outra Corte brasiliense,
o STJ. Em fevereiro, a 5ª Turma anulou as quebras de sigilo
bancário e fiscal determinadas pelo juiz Flávio Itabaiana.
Alegou-se que o magistrado não fundamentou adequadamente as quebras. Foram à
lata de lixo documentos que atestaram o escoamento de mais de R$ 6 milhões em
verbas públicas pela fenda aberta no antigo gabinete de Zero Um na Alerj.
Com a ajuda do Judiciário, a rachadinha vai virando um outro
nome para impunidade. Livres de castigo, Bolsonaro &
filhos viraram arroz de festa num noticiário em que a apropriação de verbas
públicas se mistura a transações imobiliárias sacramentadas com dinheiro vivo.
Na penúltima aquisição, o primogênito do capitão acrescentou a seu
patrimônio uma mansão em Brasília escriturada pela bagatela de R$ 5,97
milhões. Uma evidência de que depois da impunidade vem a bonança.
Com Josias de Souza