De acordo com José Saramago, "as epígrafes
muitas vezes são o melhor que os livros têm". Daí eu ter intitulado
esta postagem com a epígrafe do livro Ensaio
sobre a cegueira, que rendeu ao escritor português o Prêmio
Nobel de Literatura em 1996.
"A pior cegueira é a mental, que faz que com que não reconheçamos o que temos a frente", anotou o escriba lusitano. E com efeito: a cegueira é um assunto particular entre as pessoas e os olhos com que elas nasceram. Isso explica o fato de uma parcela considerável da população tupiniquim considerar "um mito" o pior presidente que este país amargou em 131 anos de história republicana e outra parcela ver como "salvador da pátria" um populista corrupto, duplamente condenado por 10 magistrados de três instâncias do Judiciário, mas que teve a ficha imunda lavada e os direitos políticos restabelecidos por uma sucessão de decisões teratológicas emanadas do STF em sua pior composição da história.
A cegueira mental produziu a polarização que hoje divide os
brasileiros e faz com que a popularidade do ex-presidiário de Curitiba acompanhe
pari passo o crescimento da rejeição ao inquilino de turno do Palácio do
Planalto. Resta saber quando e se surgirá uma terceira via e quem será o
"salvador da pátria" da vez, pois resgatar o lulopetismo corrupto para
desbancar o bolsonarismo seria reencenar 2018 invertendo o papel dos
protagonistas.
Por outro lado, talvez não tenhamos de escolher de que lado
da terra plana pularemos para o fogo do inferno. O atual mandatário já deixou
claro que não reconhecerá eventual derrota nas urnas se o voto impresso não for
ressuscitado — isso se houver eleições.
Segundo a jornalista Vera Magalhães, âncora do Roda
Viva (aliás, recomendo assistir à entrevista do deputado
Luiz Miranda, que ao ar na última segunda-feira), ninguém poderá dizer
que foi pego de surpresa quando e se o capetão passar da retórica golpista à
ação golpista. Até porque os sinais são de uma obviedade ululante:
Arthur Lira — o mandachuva do Centrão que foi
guindado à presidência da Câmara com o apoio do Planalto para blindar o
inquilino de turno de eventuais ações de despejo — age como que se empanturra
de carne para fazer valer o que pagou pelo rodízio, sustentando Bolsonaro
à custa de generosas fatias da picanha sangrenta do Orçamento. Do seu ponto de
vista, mais vale um genocida na mão do que 122 pedidos de impeachment voando.
Rodrigo Pacheco — como bom mineiro, o presidente do
Senado relativizou a ameaça feita ao Legislativo pelo ministro da Defesa e os
chefes militares, que, edulcorados pelo proselitismo palaciano, parecem
acreditar que a Constituição os imbuiu do poder moderador em caso de impasse
entre os Três Poderes. Cabe aos chefes do Judiciário e do Legislativo dizer
isso em voz alta e clara, sob pena de terem de lidar com algo mais grave uma
nota de repúdio eivada de saudosismo dos anos 1960.
Augusto Aras — Preterido por André Mendonça na
disputa pela cadeira do ex-decano Marco Aurélio o procurador que nada acha
porque não procura já não corteja Bolsonara como antes, mas tampouco cumpre o
papel que lhe cabe, de olho na recondução ao cargo. como fazia quando esperava
herdar a cadeira do ora ex-decano Marco Aurélio Mello, mas tampouco
cumpre o papel que lhe cabe — de fiscalizar o Executivo —, quiçá porque tem
esperanças de ser reconduzido ao cargo. Caso seja, a conferir como agirá a
partir de então, uma vez desobrigado de lamber as botas do capetão.
Luiz Fux — O presidente do STF não vem
respondendo à altura os vitupérios que o chefe do Executivo dirige à corte e
seus membros. As insinuações criminosas de Bolsonaro em relação a Luís
Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Edson Fachin exigem
mais que lamentos cheios de dedos e punhos de renda.
General Walter Braga Netto — Patrono da inédita troca
simultânea de todos os comandantes militares por capricho do presidente, o
interventor de Bolsonaro nas Forças Armadas vem seguindo fielmente as
ordens do dono da caneta Bic que pode destituí-lo do cargo com mesma facilidade
com que o nomeou. Se ele seguirá seu líder até o mais amargo fim, só o tempo
dirá.
Por essas e outras, é imperativo que as alas das três armas
comprometidas com a democracia cobrem sensatez e contenção de seus comandantes.
E isso incluiu o vice-presidente: Até quando o general Mourão calará
diante desse festival de descalabros?
Falando em descalabros, a sessão de ontem da CPI do Genocídio começou com duas horas de atraso, mas foi suspensa logo em seguida, porque a depoente da vez, Emanuela Medrades, recusou-se a respondera as perguntas dos senadores. Inconformado com mais essa palhaçada, o presidente da Comissão pediu ao STF que esclarecesse os limites do silencio da depoente.
Quando eu concluí esta postagem (pouco depois das 17h de ontem), o ministro Luiz
Fux ainda não havia
dado resposta no processo, embora houvesse confirmado por telefone à cúpula da CPI
os termos definidos em sua liminar: a diretora da Precisa só pode ficar em
silêncio quando isso for necessário para não se incriminar, e que, sim, ela
pode ser presa em flagrante caso não responda as demais questões.
Aziz disse estranhar o fato de a diretora da Precisa ter sido ouvida pela PF na segunda-feira, a exemplo do dono da empresa, Francisco
Maximiano, que se tornou investigado na véspera da data em que deveria depor
à Comissão (sua oitiva havia sido agendado para 23 de junho, mas o empresário
informou à CPI que não
poderia comparecer porque acabara de voltar da Índia e cumpria quarentena
sanitária).
Segundo o senador Fabiano
Contarato, a testemunha rebelde pode receber voz de prisão pelo crime de
desobediência. Já o senador Humberto Costa disse que ficou claro que o
papel da defesa não é proteger Emanuela, mas Maximiano, e que há
uma "tentativa de sincronizar os movimentos da CPI com algumas
decisões que a Polícia Federal está tomando em ouvir as pessoas".
Em meio a esse imbróglio, o presidente do Senado deve decidir hoje se prorroga a CPI e se o Senado entrará ou não em recesso no próximo dia 17. Até o final da tarde de ontem, ainda não havia sido definido quem será ouvido hoje pela Comissão, se Maximiano ou se o reverendo Amilton de Paula, que apresentou um atestado médico para escapar da convocação (após alegar sofrer de uma crise renal, o reverendo deverá passar por perícia na junta médica do Senado).
Atualização: Em resposta aos embargos da Comissão, Fux esclareceu que "nenhum direito fundamental é absoluto, muito menos pode ser exercido para além de suas finalidades constitucionais" e que cabe à CPI decidir sobre "alegado abuso do exercício do direito de não-incriminação". Concluída a ordem do dia, os membros da Comissão voltaram a se reunir e a depoente, a ser inquirida, mas a sessão tornou a ser encerrada dali a poucos minutos. Emanuela, coitadinha, estava exausta e sem condições psicológicas para colaborar naquele momento, mas prometeu fazê-lo se lhe concedessem uma trégua de doze horas. Para não ouvir novamente uma sucessão de "eu me reservo o direito de permanecer calada", Aziz aquiesceu. A sessão será reiniciada às 9h de hoje. Após a oitiva da diretora da Precisa, a Comissão ouvirá o sócio da empresa, Francisco Maximiano. Também nesta terça-feria o presidente do Senado deve prorrogar a CPI por mais 90 dias e definir com Aziz como ficarão os trabalho durante o recesso do Legislativo.
Então fica assim: se chover à tarde, o
jogo vai ser de manhã.