quarta-feira, 18 de agosto de 2021

"UM BANDO DE MALUCO"


Em maio de 2019, seis meses antes de deixar pela porta da frente da Superintendência da PF em Curitiba a cela VIP que o hospedou durante míseros 580 dias, o demiurgo de Garanhuns assim se pronunciou acerca do governo: "O Brasil é dirigido por um bando de maluco” (sic).

"Pelo menos não é um bando de cachaceiros, né?”, replicou Bolsonaro, que em seguida emendou: "Olha eu acho que o Lula, primeiro, não deveria falar. Falou besteira. Maluco? Quem era o time dele? Grande parte está preso ou está sendo processado. Tinha um plano de poder onde, nos finalmentes, nos roubaria a nossa liberdade, ok? Eu acho um equívoco, um erro da Justiça ter dado direito a dar uma entrevista. Presidiário tem que cumprir sua pena". 

Àquela altura, Bolsonaro já havia dito e feito muita bobagem, mas esse comentário em particular eu fui obrigado a aplaudir — como aplaudi Cid Gomes quando ele gritou para uma escumalha de petistas, durante um ato pró-Haddad: "Lula está preso, babacas!"

Mal sabia eu que o ex-capitão também "tinha um plano de poder onde, nos finalmentes, nos roubaria a nossa liberdade, ok?

Como se vê, a merda continua sendo a mesma. Só mudaram as moscas.

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A mesma lógica que levou Alexandre de Moraes a passar Roberto Jefferson na tranca justificaria a expedição de uma ordem de prisão contra Sergio Reis. Assim como Jefferson, um aspirante aos palcos de ópera, o cantor sertanejo sentou praça no pelotão dos adeptos de uma intervenção militar com o capitão no comando. Tornou-se uma ordem de prisão esperando para acontecer na fila do inquérito sobre milícias digitais relatado por Moraes no STF.

Ex-deputado federal, Sérgio Reis pendurou vídeos radioativos nas redes sociais. Apresentou-se como líder hipotético de uma manifestação de caminhoneiros a favor de Bolsonaro. Coisa programada os três dias que antecedem o feriado de 7 de Setembro. "Queremos dar um jeito de movimentar esse país e salvar o nosso povo", disse o cantor num dos vídeos. Deseja-se, segundo ele, respaldar o presidente "para que o governo tome uma posição e o Exército tome uma posição".

Tomado pelas palavras, Sérgio Reis virou uma versão retrô daquilo que o marechal Castello Branco chamou em agosto de 1964, nos primórdios da ditadura militar, de "vivandeiras de quartel." Eram civis que se dirigiam aos quarteis para pedir extravagâncias aos militares. Sob Bolsonaro, surgiram as vivandeiras de farda. Chegam ao palácio com ares de moderação e, de repente, passam a estimular as extravagâncias do capitão. Agora, há as neovivandeiras civis.

Num segundo vídeo, que já circula nos celulares de alguns ministros da Suprema Corte, Sérgio Reis menciona a intenção de entregar ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, uma "intimação" aos senadores para "aprovar o voto impresso e tirar todos os ministros do Supremo." Na mesma peça, o cantor entoa frases assim: "Se em 30 dias eles não tirarem aqueles caras [do STF], nós vamos invadir, quebrar tudo e tirar os caras na marra."

É como se Sérgio Reis intimasse o ministro Alexandre de Moraes a tratá-lo como Roberto Jefferson. Alega-se que Reis e Jefferson apenas exercitam o direito à liberdade de expressão. O caso da dupla é diferente. Eles têm dificuldade de se exprimir. Ou, por outra, não tendo nada a dizer, os apoiadores de Bolsonaro insistem em traduzir o seu vazio retórico com palavras.

Depois que o capitão entregou ao centrão a alma do governo e a chave da Casa Civil, que abre os cofres da administração pública, as ameaças de ruptura institucional tornaram-se um grande negócio para os operadores do grupo. Os coronéis do centrão administram os maus bofes do presidente com uma estratégia automobilística.

Na Casa Civil, Ciro Nogueira se oferece como amortecedor. Na Presidência da Câmara, Arthur Lira opera o semáforo que muda de verde para amarelo de vez em quando, como se intimasse o mandatário a parar. Mas a insanidade de Bolsonaro só avança. E o sinal de Lira jamais evolui para o vermelho do impeachment, porque ao centrão interessa ocupar o governo, não derrubar o presidente.

Nesse contexto, o Bolsonaro moderado será sempre uma ilusão de ótica. No seu antepenúltimo rompante, sua excelência patrocinou o desfile dos tanques fumegantes na frente do Planalto no dia em que a Câmara sepultou a proposta que criava o voto impresso. No penúltimo, ameaçou levar ao presidente do Senado pedidos de impeachment contra dois ministro do Supremo.

Pacheco se apressou em telefonar para o presidente do Supremo, Luiz Fux, para tranquilizá-lo. E sinalizou para o Planalto que colocaria na gaveta os pedidos de Bolsonaro contra Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. A gaveta de Pacheco já guarda 17 petições contra ministros do Supremo, algumas delas contra mais de uma toga. Só Alexandre de Moraes é citado 10 vezes. Barroso, 5. A quantidade seria bem maior se o senador Davi Alcolumbre não tivesse enviado ao arquivo do Senado 36 pedidos de afastamento de togas supremas antes de deixar a presidência da Casa. Aliás, Alcolumbre arquivou também dois pedidos de deposição do passador-de-pano-geral da República, Augusto Aras.

Para Pacheco, pedidos de afastamento de ministros da Suprema Corte não podem ser banalizados. E devem ser tratados com a mesma sobriedade com que são analisados os 133 pedidos de impeachment que se acumulam contra o presidente da República na Câmara.

Agora, irritado com a prisão do aliado Roberto Jefferson, o capitão escrever no Twitter: "De há muito, os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso [...] extrapolam com atos os limites constitucionais. Na próxima semana, levarei ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, um pedido para que instaure um processo sobre ambos, de acordo com o art. 52 da Constituição Federal." Nesse trecho, o texto constitucional inclui no rol de atribuições do Senado processar e julgar ministros do Supremo.

Há um quê de cinismo no arroubo de Bolsonaro. O presidente sabe que seu chilique não dará em nada. Em abril, quando pediu ao senador Jorge Kajuru que o ajudasse a transformar em "limonada" o "limão" da CPI do Genocídio, o presidente rogou: "Tem de peticionar no Supremo para colocar em pauta o impeachment" [dos togados].

Bolsonaro estava irritado com Luís Roberto Barroso. Nada a ver com a polêmica do voto impresso. O ministro ordenara que Pacheco instalasse a CPI. Na conversa com Kajuru, gravada pelo senador, Bolsonaro soou assim: "Sabe o que eu acho que vai acontecer, eles vão recuperar tudo. Não tem CPI... Não tem investigação de ninguém do Supremo."

Seguiram-se duas ironias. Numa trapaça da sorte, o recurso de Kajuru caiu na mesa do ministro Nunes Marques — justamente ele, o primeiro indicado por Bolsonaro para o Supremo. Noutro desdobramento irônico, a toga preferida do presidente reconheceu que o Supremo não tem poderes para abrir a gaveta de Pacheco na marra.

"Não cabe ao Judiciário emitir pronunciamentos para acelerar ou retardar o procedimento, dado que não existem prazos peremptórios a serem cumpridos para a sua instauração", escreveu Nunes Marques em despacho divulgado há três meses. "O assunto é claramente matéria interna corporis da Casa respectiva — infenso, portanto, ao controle judicial", ele acrescentou.

Quer dizer: Bolsonaro sabe que sua nova investida contra ministros do Supremo é mero golpe de gogó. Pacheco não abrirá a gaveta. Advogado, o presidente do Senado diz que, para muito além da retaliação, um pedido de impeachment de magistrado precisa apresentar justa causa, elementos probatórios mínimos.

No surto de abril, Bolsonaro já havia trovejado ataques ao Supremo e ao ministro Barroso nas redes sociais. Na prática, a retórica do presidente tem dois propósitos: 1) desviar a atenção do palco da CPI. É a velha tática de fugir de uma crise criando outra crise, bem maior; 2) Mobilizar os pelotões bolsonaristas para uma manifestação convocada para 7 de Setembro, o Dia da Pátria.

Reunidos na tarde desta segunda-feira, Ciro, Lira e Pacheco concluíram que o melhor a fazer no momento seria convencer Bolsonaro a desistir do pedido de impeachment das togas. Acertou-se, de resto, um encontro dos três com Luiz Fux.

Ainda que o capitão dê meia-volta agora, logo virá uma nova presepada. Enquanto o centrão estiver sendo bem pago, o governo continuará operando em ritmo de trem fantasma, assustando o país e aprofundando o cenário de bagunça institucional. A imoderação do presidente é útil para os negócios do centrão. Serve para elevar o preço do apoio.

Com Josias de Souza