sábado, 18 de setembro de 2021

AS QUATRO LINHAS DA CONSTITUIÇÃO

 

De um tempo a esta parte, Bolsonaro vem permeando suas falastrices (formadas a partir de um glossário composto por não mais de 500 palavras, de acordo com o historiador e professor Marco Antonio Villa) com a expressão "quatro linhas da Constituição". Também segundo Villa, o mandatário de turno "nunca leu um livro na vida, que dirá a Constituição". Imagino que advenha daí sua obsessão pelas "quatro linhas", visto que a Carta Magna é composta por 245 artigos e mais de 1,6 mil dispositivos.

A julgar por esse "quadrilátero constitucional", o "mito" parece ter fundado ao mesmo tempo uma nova seita e uma nova doutrina legal: a Congregação da Constituição Quadrangular. Sua interpretação do que a Constituição diz pouco tem a ver com o texto de 1988, com suas emendas posteriores ou com a hermenêutica (interpretações que os juristas fazem acerca do espírito lei para além de sua letra fria).

Interpretada segundo os mesmos cânones dos quais o presidente se serve para decidir se cloroquina cura Covid ou se há fraude nas urnas eletrônicas, a Constituição Quadrangular de Bolsonaro determina que as que vontades, caprichos e arbítrios do capitão devem ser acatados pelos demais em qualquer situação, sem questionamentos.

Segundo a Constituição Quadrangular, quando o Messias que não miracula ocupa a Presidência, governos subnacionais devem se sujeitar ao governo federal. Segundo esse constitucionalismo da quadratura do círculo, durante a presidência bolsonaresca os demais poderes devem se subordinar ao chefe do governo federal, de modo que a decisão do STF — afirmando que entes subnacionais não o precisam seguir — está fora dos limites constitucionais estabelecidos. Aliás, está duplamente fora: primeiro porque o STF deveria acatar humildemente as vontades do "mito"; segundo porque também estados e municípios deveriam fazê-lo.

A única interpretação constitucional que cabe ao Supremo é afirmar o que o "mito" deseja, de acordo com o Constitucionalismo Quadrangular por ele forjado. Numa motociata pelo agreste pernambucano, no sábado anterior ao 7 de Setembro fascista, o capetão-motoqueiro reforçou sua mensagem: "O STF não pode ser diferente do Poder Executivo ou Legislativo. Se tem alguém que ousa continuar agindo fora das quatro linhas da Constituição, o poder tem que chamar aquela pessoa e enquadrá-la. Se assim não ocorrer, qualquer um dos três Poderes… A tendência é acontecer uma ruptura".

O entendimento místico do presidente alberga mistérios insondáveis aos pagãos, em particular quando trata de doutrinas legais. Segundo o Constitucionalismo Quadrangular, está fora das "quatro linhas da Constituição" o que o "mito" diz que está. Assim, ousa agir fora deste quadrilátero qualquer um que no STF, no Executivo ou no Legislativo desobedece ao tiranete de festim.

Como acha que ainda comanda o Executivo, o presidente pato-manco saca sua poderosa caneta Bic e demite quem age "fora das quatro linhas". Da Câmara, cuida Lira, a mando do "mito" e aboletado sobre uma pilha de 136 pedidos de impeachment. No Senado, Pacheco, o infiel, periga ser enquadrado dentro do quadrado (com o perdão do eco e do pleonasmo). Já do Supremo — que supostamente seria uma corte constitucional e a voz teoricamente mais autorizada a estabelecer o significado legítimo do que a Constituição diz — é o "povo" que cuida: o "mito" reafirmou esse dogma em seu discurso de Caruaru: "Mas o povo, como Poder Moderador, não pode admitir que nenhum de nós jogue fora dessas quatro linhas."

Por óbvio, o "povo" que exerce esse "Poder Moderador" é a cáfila de descerebrados que apoia o "mito" e segue suas orientações. Desse modo, o que diz o "povo" é o que Bolsonaro diz e, se o "povo" tem a última palavra sobre todas as coisas do mundo terreno, é o "mito" que a tem. "Simples assim", como diria o general Pazuello.

Foi por isso que Bolsonaro alertou na sexta-feira anterior ao 7 de setembro: "quem dá o ultimato não sou eu, é o povo brasileiro". Dessa perspectiva, o presidente é apenas aquele que transmite a vontade do "povo" e informa aos desobedientes que dele vem o ultimato do qual ele é apenas o mensageiro autorizado.

Alguns de seus discípulos repetem a ideia. Oswaldo Eustáquio, mais um "perseguido" por Alexandre de Moraes, informou não defender uma intervenção militar, mas uma "intervenção do povo". Desse ponto de vista, os militares nada mais seriam do que um instrumento do "povo" contra os que agem fora do quadrilátero constitucional.

Outro discípulo bolsonarista, o pretenso líder caminhoneiro Zé Trovão, ao comentar o mandado de prisão contra ele expedido pelo mesmo Moraes, lançou ao togado sua maldição: "Vocês vão se ver com a Justiça, com a justiça do povo brasileiro. Os senhores vão sair de suas cadeiras". Eis aí o "povo" novamente, agindo não só como Poder Moderador, mas também como Judiciário. É a justiça popular a serviço da revolução.

Ao transferir ao "povo" o encargo pela ruptura institucional anunciada, Bolsonaro mais uma vez tenta se eximir dos ônus que lhe cabem — da mesma forma que faz em relação à crise sanitária, ao colapso econômico, à crise energética, enfim... A culpa — ou, no caso do "povo", a responsabilidade — é sempre de outros, nunca dele.

Se houver ruptura institucional, não foi porque o presidente a provocou, insurgindo-se contra o exercício das competências constitucionais de outros poderes ou outros níveis de governo. Na verdade, foram esses poderes e governos que agiram fora do quadrilátero constitucional traçado por ele e sancionado pelo seu "povo" — do qual tanto ele quanto "seu exército" seriam meros instrumentos passivos.

Ainda em Caruaru, referindo-se veladamente a Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, afirmou o autoproclamado imperador do Bolsonaristão: "Não podemos admitir que um ou dois homens ameacem a nossa democracia ou a nossa liberdade". Ao dizer isso, o "mito" expressa noções muito particulares do que sejam "democracia" e "liberdade". Vale aqui explicá-las.

Bolsonaro, com sua obsessão pelos pronomes possessivos, refere-se à democracia como sendo "sua democracia" (ou "nossa", já que se dirigia ali a "seu povo"). Não se trata, portanto, de uma democracia geral, aplicável a todos os viventes em terras canarinhas, mas apenas aos que compõem o "povo" que lhe segue — o único "povo" por ele admitido, aliás.

Ainda que provavelmente não faça a menor ideia de quem foi Carl Schmitt (jurista, filósofo e ministro de Hitler), o capitão repete de forma tosca a noção schmittiana de democracia. Dizia Schmitt: "Em toda a verdadeira democracia está implícito que não só o igual seja tratado igualmente, mas que, como consequência inevitável, o não igual seja tratado de modo diferente. Portanto, a democracia deve, em primeiro lugar, ter homogeneidade em, em segundo – se for preciso – eliminar e aniquilar o heterogêneo".

Ou seja, a "nossa democracia" é o regime que vale para os nossos, os iguais a nós, eliminando e aniquilando os diferentes. O "mito" formulou uma ideia análoga quando, num discurso de campanha, afirmou: "Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desapareçam" (sic). Essa é a democracia que vigora na Constituição Quadrangular de Bolsonaro. Quem não se adequa (ou seja, obedece), some.

Na Alemanha nazista, a "democracia" de Carl Schmitt foi levada a sério. Ali desapareceriam os que não fossem nazistas e da raça pura definida segundo os critérios do Führer: judeus, ciganos, homossexuais, deficientes, comunistas, socialdemocratas e liberais seriam eliminados e aniquilados. Não havia saída possível para aqueles que por sua etnia, condição físico-mental ou orientação sexual, não se enquadrassem dentro do cânone. Para os outros talvez houvesse ao menos a possibilidade de uma conversão ideológica — que provavelmente não resistiria a uma averiguação de seu passado. Sabemos no que resultou essa noção muito singular de democracia.

Por aqui, à luz da democracia da Constituição Quadrangular, a adequação das minorias à determinação majoritária talvez possa se resolver por conversão — não sem os riscos inerentes a uma perscrutação do passado de cada pessoa e de sua família, claro. E é em nome dessa ideia de "democracia dos iguais a nós" que os bolsonaristas foram à rua, de forma massiva, no feriado da Independência. Daí valer chamá-lo de 7 de Setembro fascista, pois é de fascismo que se trata, considerando quais são os seus fundamentos.

Se democracia segundo a concepção bolsonarista é, na verdade, fascismo, do que se trata então a ideia de "liberdade"? Para entender isso, basta ver que, no contexto da fala do "mito", a "nossa liberdade" (de novo o possessivo) é aquela que se vê ameaçada pelas decisões do Supremo. Ao permitir que estados e municípios, no exercício de suas competências, estabeleçam restrições sanitárias — como a vacinação, o uso de máscaras ou o fechamento de certas atividades — a corte permite o cerceamento à "nossa liberdade" e, portanto, é cúmplice de tiranos estaduais e municipais.

Ao mandar prender militantes bolsonaristas que clamam pela ruptura da ordem democrática, as supremas togas cerceiam "nossas liberdades" de expressão e circulação. Ao determinar a desmonetização de sites e canais que disseminam mentiras e incitam à violência política, restringe-se a "nossa liberdade" econômica e de expressão. E por aí vai.

Note-se que é a mesma noção de liberdade que embasa a retirada dos radares das estradas, o não uso de cadeirinhas por crianças, a derrubada da mata nativa para fins mercantis, o garimpo em terras indígenas e o uso de armas. Cada um faz aquilo que bem entende ou que lhe agrada, sem se importar com os danos que possa infligir aos demais. É a liberdade da guerra de todos contra todos, em que o mais forte prevalece — embora todos sejam apenas circunstancialmente mais fortes, pois, em tal situação, todos correm mais perigo. Não é à toa que Bolsonaro preconiza e promove o armamento da população, alegando que "um povo armado jamais será escravizado". Novamente é do "seu povo" que se trata, por óbvio. No cada-um-por-si do estado de natureza, é melhor mesmo estar armado, pois a vida se transforma num vale-tudo — é matar ou morrer.

Essa liberdade de matar ou ser morto, de ter direito a tudo e, consequentemente, não ter seguramente direito a nada, é a barbárie resultante lógica da política bolsonaresca. Num aparente paradoxo, o autoritarismo bolsonaresco conduz à anarquia destrutiva. Mas não existe propriamente um paradoxo. Esse autoritarismo é, na realidade, a possibilidade que tem o "mito" de fazer o que bem entender, sem qualquer contenção ou lei que não seja determinada por ele próprio, de modo que, claro, não haja limites.

Da mesma forma que a "democracia dos iguais a nós" do nazismo não teria como resultar noutra coisa que não uma forma extrema de tirania, a "democracia bolsonaresca" não é senão a prevalência do "mito" (em substituição ao Führer) sobre todos os "seus iguais". Essa tirania — ou, mais propriamente, esse despotismo — não poderia mesmo contar com uma definição melhor para os seguidores do "mito" que não o de mínions. Afinal, minion, na acepção original em inglês, nada mais é do que um subordinado servil e desimportante.

Não há segundo ultimato. É disso que se trata a mensagem que Bolsonaro dirigiu aos demais poderes: o 7 de Setembro fascista é o último aviso; depois dele o único remédio é a violência contra os desobedientes. Vale destacar que "ultimato" é o "último aviso", a "última chance", a derradeira ameaça antes de se recorrer à violência. O ultimato se fez necessário, segundo o pensamento bolsonaresco, por três motivos básicos, mas todos decorrem do fato de que Bolsonaro é um governante sem perspectivas dentro da democracia.

A primeira razão, prosaica, é que o capitão é um autoritário e, portanto, a autocracia conta com sua preferência, ainda que faça loas às eleições. Populistas são assim, gostam de eleições, mas somente se confirmarem plebiscitariamente seu poder, sem contemplar a incerteza dos resultados que define a democracia.

A segunda razão são as punições legais que, em contexto democrático, inevitavelmente alcançarão a ele e a sua família. Portanto, nesse estado de natureza em que o próprio Bolsonaro se meteu, é matar ou morrer.

A terceira razão é que a reeleição em 2022, que poderia lhe servir de alento ou sobrevida, mostra-se mais inviável a cada dia. A deterioração de sua avaliação pela maioria da população atingiu um patamar provavelmente irreversível, de modo que, de novo, é matar ou morrer. Só que, neste caso, matar significa (em primeiro lugar) inviabilizar eleições que Bolsonaro venha a perder. Como os cenários indicam que ele deve ser derrotado, trata-se de inviabilizar as eleições e ponto final.

O furdunço do voto impresso já está superado (embora o capetão tente ressuscitá-lo dia sim, noutro também. Assim, a alternativa é produzir uma ruptura institucional que possa evitar as eleições ou, talvez, evitar que candidatos com potencial para derrotá-lo sejam impedidos de concorrer. Em 2018, por vias transversas, Bolsonaro foi agraciado com a exclusão de seu concorrente mais forte. Agora (lamentavelmente), esse mesmo concorrente voltou à disputa em carne e osso, dispensando a figura do patético bonifrate que lhe serviu de preposto no pleito anterior.

Como a via judicial não tem sido muito amigável com o "mito", é pouco provável que o demiurgo de Garanhuns seja novamente elidido do páreo. Daí o capitão sem noção falar num um complô do STF para lhe tirar a Presidência (mantidos os atuais índices de rejeição a seu governo e sua pessoa, é possível que até o Zé das Couves derrotasse o despirocado em 2022. Mas o evangelho segundo Bolsonaro estabelece que só Deus pode assinar a ordem de despejo e penabundá-lo do Palácio do Planalto.

Com a interdição da via judicial (ora ocupada pelo inimigo no delírio conspiratório bolsonaresco), resta ao capitão, como alternativa, a quebra institucional — ou seja, mudar as regras do jogo de modo a enquadrá-las no quadrilátero constitucional. Em suma, Bolsonaro se esforça para que a disputa deixe de ser entre primeira, segunda ou terceira via. O que ele quer é produzir é uma quarta via, qual seja sua manutenção no poder por meios autocráticos e violentos.

Por via das dúvidas, livrai-nos, meu Deus, de todo o mal.

Com Cláudio Couto