Depois de desfilar no Rolls Royce Presidencial até o
prédio do Congresso Nacional, Bolsonaro assinou o termo de posse, jurou "manter,
defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do
povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil"
e recebeu de Michel Temer a faixa presidencial.
Bolsonaro jamais
leu a Constituição que jurou defender e, como o escorpião da fábula,
é incapaz de contrariar a própria natureza. Apesar de reconhecer que não
nasceu para ser presidente, mas para ser militar, foi expelido da Escola de Oficiais do Exército por indisciplina e insubordinação (mas acabou
sendo absolvido
das acusações pelo STM). No ano seguinte, elegeu-se vereador e depois deputado federal por
sete mandatos consecutivos, ao longo dos quais aprovou
dois míseros projetos e colecionou mais de trinta
ações criminais. Em 2018, foi alçado
à Presidência por uma esdrúxula conjunção de fatores, entre os
quais um
mal explicado atentado que sofreu durante um ato de campanha em Juiz de
Fora (MG).
Bolsonaro disputa com Dilma — o poste com que Lula empalou os brasileiros em 2010 — o título de pior mandatário desde a redemocratização (e não por falta de concorrentes de peso). Com a autoridade de quem sabe das coisas, o general Ernesto Beckmann Geisel — penúltimo presidente da ditadura e mentor intelectual da reabertura política lenta, gradual e segura — definiu o então capitão da ativa como “um caso completamente fora do normal, inclusive mau militar”.
O último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo — que preferia
o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo (povo que, segundo ele, "não
sabe nem escovar os dentes, quanto mais votar para presidente"),
negou-se a passar a faixa presidencial a José Sarney (faixa
a gente transfere para presidente, não para vice, e esse é um impostor).
Coisas do Brasil.
A título de contextualização,
vale lembrar que a Revolução de 1964 — cuja
data “comemorativa” é 31 de março — foi um golpe de Estado
desfechado na madrugada de 1º de abril, por líderes civis e militares
conservadores, a pretexto de afastar do poder um grupo político que
supostamente flertava com o comunismo.
Nos movimentos pró “Diretas
Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda
constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às
eleições diretas suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos
depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados. A
despeito do clamor das ruas, a emenda foi rejeitada — em outras palavras, o
povo foi traído (mais uma vez) pela classe política, o câncer social que,
infelizmente, é um mal necessário. Coisas do Brasil.
O desgaste do governo propiciou a vitória de Tancredo Neves em um colégio eleitoral — por 480 votos contra 180, a raposa mineira derrotou Paulo Maluf (que era apoiado pelos militares) depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal — formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar.
Em janeiro de 1985, o deputado federal Ulysses Guimarães —
que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra Maluf,
mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney —
entregou a Tancredo o programa denominado Nova
República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação
gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre
outras benesses.
Com esperança e
ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data
prevista para a posse do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura
militar. Mas Tancredo
foi hospitalizado 12 horas antes da cerimônia e teve o óbito
declarado 38
dias e sete cirurgias depois — ironicamente, no feriado de 21 de abril,
data em que o Brasil homenageia Tiradentes, o mártir da independência. Coisas
do destino.
Tancredo levou para o túmulo a esperança de milhões
de brasileiros, mas deixou de herança um neto que envergonharia o país e um mix de
oligarca maranhense, escritor, poeta e acadêmico chamado José Ribamar Ferreira
de Araújo Costa, mais conhecido como “Zé do Sarney”. A possibilidade de Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, ser guindado ao
Palácio do Planalto chegou a ser cogitada, mas prevaleceu o entendimento de que
caberia a José
Sarney, vice na chapa de Tancredo e rebotalho do
coronelismo nordestino, assumir a Presidência. E foi o que aconteceu, para o
bem e para o mal.
Fisiologista como poucos e puxa-saco de carteirinha dos poderosos de plantão, Sarney (o filho) sobreviveu à ditadura, mas sua infausta gestão à frente da Presidência foi marcada pela hiperinflação. Tanto o Plano Cruzado quanto os "pacotes econômicos" que se lhe sucederam foram baseados no congelamento de preços e salários, e da feita que repetir o mesmo erro várias vezes esperando produzir um acerto é a melhor definição de idiotice que eu conheço, não causou estranheza o fato de todos fazerem água em questão de meses.
Em 20 de fevereiro de 1987, pressionado pela queda nas reservas
cambiais, Sarney fez um pronunciamento em rede nacional anunciando a
suspensão, por tempo indeterminado, do pagamento dos juros da dívida externa —
evitando usar a palavra "moratória", como se isso produzisse
algum resultado positivo (ou menos negativo) na medida adotada. Coisas do
Brasil.
Sarney deixou a Presidência com a popularidade em patamares abissais, tanto que transferiu seu domicílio eleitoral para o recém-criado Estado do Amapá, pelo qual teria chances de conseguir uma vaga no Senado. Como era esperado, seus adversários impugnaram se insurgiram contra o cambalacho, mas o STF o avalizou. Conta-se que o ministro Celso de Mello, que teve os ombros recobertos pela suprema toga graças ao oligarca maranhense, votou pela impugnação da candidatura do benfeitor.
O ex-ministro da Justiça Saulo
Ramos quis saber por quê. Mello respondeu que a Folha havia
publicado que Sarney tinha os votos certos de vários ministros e citara
seu nome como um deles. "E você votou contra porque a Folha noticiou
que votaria a favor?", perguntou Saulo. "Exatamente",
respondeu Mello. E Saulo: "Então você é um juiz de merda!"
Sarney
deixou a vida pública em 2014, aos 83 anos, a pretexto de se dedicar à
literatura em tempo integral. Conta-se que, após um dilúvio assolar o Maranhão,
a então governadora Roseana Sarney — filha do macróbio — telefonou
ao pai para informar que metade do Estado estava debaixo d’água. Sarney
perguntou-lhe candidamente: "A sua metade ou a minha?"
Nas eleições gerais de 2018, os pimpolhos do velho cacique
maranhense foram penalizados na urnas: nem Zequinha se
reelegeu deputado, nem Roseana — que governou o Maranhão por
quatro legislaturas desde 1995 — conseguiu desbancar o pecedebista Flavio
Dino — que se reelegeu governador com 59,29% dos votos válidos.
Como dito parágrafos acima, Figueiredo se recusou a
transferir a faixa presidencial a Sarney. Não foi o primeiro nem o único
caso na história republicana do Brasil. Coisa de país de terceiro mundo? Não
necessariamente. Nos EUA, o ex-presidente Donald Trump, ídolo e muso
inspirador do capitão-cloroquina, não só deu trabalho para ser desencalacrado
do cargo como não
compareceu à cerimônia de posse de Joe Biden, o que representa uma
quebra de protocolo na tradição democrática americana, mas, como dito, encontra
apoio na ala conservadora da política brasileira.
Na história do Brasil, o exemplo mais recente de um chefe do
Executivo que se recusou a comparecer à posse de seu sucessor foi Figueiredo,
conforme já foi dito nesta postagem. Sobre Sarney, o general disse à
revista IstoÉ, pouco antes de sua morte, em 1999: "Sempre foi
um fraco, um carreirista. De puxa-saco passou a traidor. Por isso não passei a
faixa presidencial para aquele pulha. Não cabia a ele assumir a Presidência".
A quebra de protocolo em Brasília foi relembrada pelo neto
do general, minutos depois de o presidente americano anunciar que não
compareceria à posse do sucessor. "Meu avô também não compareceu à
posse de seu sucessor, que chegava ao poder de forma ilegítima. Agiu conforme
suas convicções. Assim devem fazer os homens de caráter!", postou
no Twitter o empresário Paulo
Figueiredo Filho. Coisas do Brasil.
Figueiredo não foi o único a se recusar a cumprir os
ritos de transição no Brasil. A República ainda engatinhava quando Floriano
Peixoto, que governou de 1891 a 1894, decidiu não comparecer à posse de Prudente
de Morais porque não via com bons olhos a chegada de um civil ao poder. Afonso
Pena também não passou a faixa a seu sucessor, Nilo Peçanha (e nem
poderia, porque Nilo era vice de Pena, a quem substituir em virtude
de sua morte, em 1909). Em 1954, Café Filho viu-se presidente do dia para
a noite e começou a governar o país sem a bênção de seu antecessor, Getúlio
Vargas, que
"foi suicidado" com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954.
Após o impasse entre Figueiredo e Sarney, somente dois presidentes eleitos diretamente (FHC e Lula) receberam e passaram a faixa a seus sucessores. O primeiro presidente eleito diretamente após a ditadura militar — o pseudo caçador de marajás Fernando Collor de Mello — recebeu a faixa de Sarney em março de 1990, mas renunciou ao mandato em dezembro de 1992 (e foi impichado mesmo assim, de modo que não passou a faixa a Itamar Franco).
Itamar, por sua vez, tomou posse em uma cerimônia breve e só usou a faixa presidencial no último de seus dois anos e três dias de governo, quando a colocou sobre os ombros de FHC. O tucano, presidente por dois mandatos, cumpriu o mesmo protocolo na posse de Lula, em 2003. Oito anos depois, foi a vez de Dilma ser destituída em um processo de impeachment — e não comparecer à posse de Michel Temer. Em janeiro de 2019, o vampiro do Jaburú repassou a faixa ao mandatário de fancaria que, por mal de nossos pecados, diz que "só Deus o tira da cadeira presidencial". Coisas do Brasil.
Bolsonaro na presidência era tudo de que o os brasileiros não
precisavam, mas tornou-se a única alternativa válida depois que o
ilustríssimo eleitorado tupiniquim o escalou para enfrentar o bonifrate do
presidiário de Curitiba no segundo turno do pleito de 2018. Voltando à paráfrase
de Bolsonaro a uma fala de Figueiredo, “plagiar é, implicitamente,
admirar”, como bem disse o intelectual lusitano Júlio Dantas.
Mas a pergunta que não quer calar é: se não nasceu para ser presidente, por
que Bolsonaro fez da reeleição seu projeto de governo?
"Prometo que, se eleito, vou trabalhar noite e dia,
durante os quatro anos do meu mandato… para ser reeleito”. Eis a promessa
mais sincera e verdadeira feita pelo então candidato, como salientou o
ex-delegado federal Jorge Pontes num artigo publicado em Veja. "Teremos
um lapso de quatro anos praticamente jogados fora, destinados apenas à
pavimentação de mais um — improvável — mandato presidencial",
profetizou o policial, em agosto
do ano passado.
Assim, graças à verdadeira
herança maldita deixada pelo grão-duque do Tucanistão, assistimos a um
mandatário eleito com juras de grandes mudanças e discursos anti-establishment
emular Dilma, a inesquecível, e fazer o diabo para se
reeleger.
A vitória de Bolsonaro foi um caso clássico de emenda
pior que o soneto. Embora seja preferível acender a vela a amaldiçoar a
escuridão, unir forças com os sectários do bolsonarismo boçal para evitar a
volta da cleptocracia lulopetista foi como libertar da garrafa um gênio
malfazejo e não saber como prendê-lo de volta. E urge fazê-lo, pois o Brasil dificilmente
sobreviverá a mais cinco anos sob o descomando desse mafarrico.
Segundo a revista eletrônica Crusoé,
o presidente de fato desta banânia (falo do centrista Ciro Nogueira)
disse a um empresário que Bolsonaro está "cada vez mais
mercurial e incontrolável". O diagnóstico perturbador do ministro
recém-empossado com promessas de carta branca jamais cumpridas reflete o estado
de ânimo atual de setores do Centrão e de boa parte do Congresso. Embora
estejam bem servidos em postos estratégicos e se lambuzando no poder desde que
que o chefe do Executivo de festim lhes entregou a chave do cofre, a
centralhada já entendeu que a aliança tem prazo de validade, e que esse prazo
não é longo. Para as marafonas
do parlamento, Bolsonaro é um político fadado ao infortúnio,
seja pelo impeachment, pela cassação no TST ou derrota nas urnas. E
convenhamos que não é preciso ser nenhum "Nostradamus" para
fazer tal previsão.
Ainda segundo a reportagem, depois que o desembarque do
governo passou a ser debatido a sério entre os partidos que compõem o Centrão,
o presidente pato-manco enviou pelo líder do governo na Câmara — o ilibadíssimo
Ricardo Barros, a quem o senador Omar Aziz, relator da CPI do
Genocídio, se refere como responsável por um balcão de negócios com o
Congresso que está a todo vapor — o recado de que continua em pé o esforço para
conter possíveis defecções em sua base de apoio.
Entrementes, a despeito da carestia, a inflação oficial segue
acima do esperado. O IPCA, medido pelo IBGE, acelerou para 9,68%
no acumulado em 12 meses, levando a uma onda de revisões entre os economistas. Na
segunda-feira, 13, o Boletim Focus, do Banco Central, registrou a
23ª alta consecutiva da mediana das projeções para o IPCA no fim de
2021, que agora está em 8%. Mas isso é assunto para uma próxima postagem.