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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A MALDIÇÃO DA VICE-PRESIDÊNCIA — TERCEIRA PARTE

Sarney sempre foi um cacique da velha da política de cabresto nordestina, e só sobreviveu à ditadura porque se resignou a lamber as botas dos militares. A despeito dessa vassalagem, o último presidente-general da ditadura — que preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo e "daria um tiro no coco" se fosse criança e seu pai ganhasse salário-mínimo — se recusou a lhe transferir a faixa: faixa a gente transfere para presidente, não para vice, e esse é um impostor.

Observação: Anos depois, referindo-se ao político maranhense numa entrevista concedida à revista IstoÉ, also sprach Zaratustra, digo, assim disse Figueiredo: "Sempre foi um fraco, um carreirista. De puxa-saco passou a traidor. Por isso não passei a faixa presidencial para aquele pulha. Não cabia a ele assumir a Presidência".

A despeito de o "milagre econômico brasileiro" ser cantado em prosa e verso pelos saudosistas de plantão, Sarney herdou dos militares um país arrasado, com recessão, inflação, desemprego e dívida externa nas alturas. Todos os "pacotes de medidas econômicas" elucubrados durante sua gestão (por Dílson Funaro, Bresser Pereira e Maílson da Nóbrega) fizeram água numa questão de meses. 

Aos trancos e barrancos, o oligarca nordestino terminou o mandato (de 5 anos, sem direito a reeleição), mas deixou de herança a seu sucessor uma inflação que beirava 2000% ao ano. Tamanha era sua impopularidade ao deixar o governo que, para disputar uma cadeira de senador, Sarney teve de mudar o domicílio eleitoral para o recém-criado Estado do Amapá. 

Observação: O literato, acadêmico e político maranhense se aposentou da vida pública em 2014, aos 83 anos. Conta-se que certa vez, depois que um dilúvio assolou seu Estado natal, a então governadora Roseana Sarney telefonou ao pai para dizer que "metade do Maranhão estava debaixo d’água", e Sarney teria perguntado: "A sua ou a minha?

No apagar das luzes da desditosa gestão de Sarney, a récua de muares a que se convencionou chamar de "eleitorado", já então sob a égide de uma Constituição estalando de nova, foi às urnas pela primeira vez desde 1960 para escolher seu presidente. 

Disputaram a chamada "eleição solteira de 1989" nada menos que  22 candidatos, entre os quais figuravam monstros sagrados da política tupiniquim, como Ulysses Guimarães e Mário Covas. Graças ao dedo podre dos apedeutas votantes, o segundo turno reuniu o que havia (e continua havendo) de pior em termos de populismo e demagogia sórdida. Ao fim e ao cabo, o sacripanta de direita venceu o salafrário de esquerda.

Como dito linhas acima, naquela época o mandato presidencial era de 5 anos, sem direito a reeleição. Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca termine: em 1997, um FHC picado pela mosca azul usou e abusou de meios não exatamente ilibados — embora não inusitados à luz de como funciona a política no Brasil — para alterar a Constituição de maneira a implementar a reeleição de presidente e vice-presidente (apenas uma vez para um mandato subsequente, mas sem restrição para um pleito não consecutivo).

Como quem parte e reparte e não fica com a melhor parte é burro ou não tem arte, o tucano de plumas vistosas fruiu do desserviço que ele e seus cupinchas prestaram à Nação, mas também abriu espaço para o projeto de poder lulopetista, que durou exatos 13 anos, 4 meses e 11 dias (considerando os dois mandatos do ex-presidiário e os 5 anos e fumaça durante os quais sua sucessora incompetenta "fez o diabo" para destruir a economia nacional).

O Brasil daria um grande passo se aprovasse o fim da reeleição. A proposta de emenda constitucional está pronta para ser votada pelo Senado, mas é difícil construir esse tipo de ajuste quando todos os adversários do sultão do bananistão querem vencer a disputa em 2022. Como a política permite todos os tipos de sonhos, alguns já se enxergam eleitos e fazem planos para 2026, parecendo não se dar conta de que, por pior que seja o atual governo, o general da banda, aboletado na cadeira da Presidência, goza de uma situação mais confortável que a dos adversários.

Com a chave do cofre nas mãos e dois mandachuvas do Centrão lhe dando respaldo (por motivos que não vem ao caso discutir neste momento), o inferno é o limite para o capetão-negação exacerbar seu populismo eleitoreiro. E como desgraça pouca é bobagem, o leque de a janela de oportunidade para o impeachment do lunático despirocado fica mais estreita à medida que a eleição se aproxima.

Observação: Vale destacar que todos os presidentes que concluíram seus mandatos e disputaram a reeleição (FHC, Lula e Dilma) foram reeleitos. Isso não significa que esse "dogma" não possa ser quebrado, mas, sim, que, se a terceira via não se consolidar, teremos em 2022 uma reedição do pleito plebiscitário de 2018, com a diferença de que em 2018 não faltaram a Bolsonaro cabos eleitorais de peso, como Lula na cadeia, Haddad de bonifrate, a facada do maluco (que livrou o psicopata de participar dos debates), o estelionato eleitoral, o impulsionamento espúrio nas redes sociais, a confiança representada por Paulo Guedes na Economia e Sergio Moro na Justiça.

Sabíamos que Bolsonaro carecia de competência, preparo e envergadura para presidir o que quer que fosse, inclusive carrinho de pipoca em porta de cinema. Mas a perspectiva de ver o país ser governado por um criminoso condenado e preso... Enfim, apostamos nossas fichas e torcemos para a emenda não saísse pior que o soneto, mas diz um ditado que basta fazer planos para ouvir a gargalhada do diabo.

Observação: A expressão "pior a emenda que o soneto" surgiu quando Bocage recebeu de um jovem aspirante a poeta um soneto para correção, e o devolveu sem nenhuma marcação. Perguntado pelo pupilo se não havia nada a ser corrigido, o mestre respondeu que, dada a quantidade de erros, "a emenda ficaria pior que o soneto".

Parafraseando o "enviado pela Divina Providência para acabar com a fome, presentear a imensidão de desvalidos com três refeições por dia e multiplicar a fortuna dos milionários", nunca antes na história deste país o Palácio do Governo amargou um inquilino tão indiferente à dor alheia, que tanto despreza a Democracia e o Estado Democrático de Direito e odeia a liberdade de expressão, a imprensa e qualquer um que ouse discordar de sua elevada opinião. 

Do cruel “e daí?” ao “cale a boca”, passando pelo churrasco da morte (que depois fomos instados a acreditar que não passava de uma pilhéria), o Mefistófeles de botequim deixou de ser o palhaço negacionista da “gripezinha” para concorrer como franco-favorito ao título de Monstruosidade Pública Número 1 — embora estufe o peito e se jacte de ter sido eleito "personalidade do ano" pela revista Time.

Nos anos 1970, durante a ditadura militar, Pelé avisou: "os brasileiros não sabem votar". E o tempo demonstrou que ele estava coberto de razão. Da mesma forma que jabuti não sobe em árvore (se está lá, foi enchente ou mão de gente), político não brota em seu gabinete por geração espontânea (se está lá, é porque votaram nele). 

É impossível discordar de Pelé, mas sempre há quem se recuse a ver o que está bem diante de seu nariz — não por falta claridade, mas, sim, de acuidade visual. Para um um cego, tanto faz se a luz estiver acesa ou apagada. E não é preciso ser cientista político para ver que a agenda nacional ocupa, mal e parcamente, o primeiro ano e meio de mandato — no segundo ano, o presidente de turno se preocupa com os pleitos municipais, que servem de ensaio para a disputa presidencial que ocorrerá dois anos depois, e quando se vai ver, os quatro anos se foram e o mandato terminou.

Esperar demais das pessoas é carimbar o passaporte rumo à decepção, e achar que a liturgia do cargo transformaria em estadista um dublê de mau militar e parlamentar medíocre foi ignorar os ensinamentos da fábula do sapo e o escorpião. Governar vai muito além de ganhar eleições, notadamente em tempos de guerra. Parafraseando FHC — que não foi um estadista como manda o figurino, mas, noves fora o episódio lamentável da PEC da Reeleição, foi o presidente "menos pior" que tivemos desde a redemocratização —, “você não lidera dando ordens ao povo, mas fazendo com que o povo siga junto com você”.

Se a maioria apedeuta aprendesse a votar, a minoria pensante não seria obrigada a escolher, a cada eleição, de qual borda da Terra (plana) pular para o inferno. Infelizmente, esse tipo de situação se tornou regra na "Nova República" e, pelo visto, a próxima eleição não será exceção. Com base no que se vê até onde a alcança, a menos que a terceira via se consolide continuaremos navegando rumo a uma borrasca que tem tudo para se tornar a tempestade perfeita.

Continua no próximo capítulo.

domingo, 22 de agosto de 2021

O PIOR TIPO DE CEGUEIRA É A CEGUEIRA MENTAL

 

A CEGUEIRA É UMA QUESTÃO PRIVADA ENTRE A PESSOA E OS OLHOS COM QUE NASCEU

Com seu estilo característico de escrever e capacidade única para o uso de metáforas e simbolismos, José Saramago, Nobel de Literatura em 1988, descreveu em ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, publicado em 1995, a situação ocorrida em uma comunidade após o aparecimento de uma infecção com transmissão rápida, que provoca cegueira nas pessoas.

Na obra, além de retratar de forma genérica vários tipos de pessoas que compõem uma sociedade que progressivamente vai ficando cega a tudo que ocorre ao seu redor, o escritor português elencou diversas frases que poderiam descrever nosso surreal cotidiano. Para não me estender demais neste preâmbulo, cito apenas três: "Se queres ser cego, sê-lo-ás"; "A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente"; "A cegueira é uma questão privada entre a pessoa e os olhos com que nasceu." não há nada que se possa fazer a respeito."

A cegueira pode ser congênita ou adquirida, reversível ou irreversível. Segundo o Censo de 2010, um quarto da população brasileira tem algum tipo de deficiência, sendo a visual a modalidade mais comum (cerca de 20%). Se considerados aqueles que não conseguem ver de forma alguma ou que têm grande dificuldade, o índice cai para 3,4%. De acordo com a OMS, 2,2 bilhões de pessoas têm algum tipo de deficiência visual, sendo 1 bilhão com uma condição que poderia ser prevenida ou tratada, como catarata, opacidade da córnea; tracoma e deslocamento da retina (os dados são de 2019).

Quanto ao cego que não quer enxergar — que o senso comum aponta como "o pior cego" —, trata-se de um problema fácil de solucionar. Considerando que os efeitos tendem a desaparecer quando se lhes suprime a causa, basta anular a motivação — ou substitui-la por outra mais atraente.

Segundo os historiadores, a expressão "pior a emenda que o soneto" surgiu quando Bocage recebeu de um jovem aspirante a poeta um soneto para correção e o devolveu sem nenhuma marcação. Perguntado pelo pupilo se não havia nada a ser corrigido, o mestre respondeu que, dada a quantidade de erros, "a emenda ficaria pior que o soneto".

Dito isso, dou o preâmbulo por encerrado e passo ao mote desta postagem, começando por dizer que a eleição de Bolsonaro é o exemplo pronto e acabado da emenda que ficou pior que o soneto, já que, para evitar a volta do lulopetismo corrupto, abrimos a Caixa de Pandora — na qual, segundo a mitologia grega, Zeus teria trancafiado todos os males do mundo —, e assim demos azo ao bolsonarismo boçal. Mas de nada adiante chorar o leite derramado, ou por outra, mais vale acender a vela do que amaldiçoar a escuridão.

Falando em escuridão, quais seriam os motivos da cegueira do presidente da Câmara e do Procurador-Geral da República? Seria estupidez atribuir à estupidez o fato de um político experiente como o deputado-réu Arthur Lira manter sob o respeitável buzanfã 133 pedidos de impeachment do chefe do Executivo enquanto este último continua cometendo crimes de responsabilidade em escala industrial. Da mesma forma, seria ingenuidade atribuir à ingenuidade o fato de uma raposa velha como o jurista soteropolitano que comanda o Ministério Público Federal não se dar conta dos crimes comuns cometidos por Bolsonaro ao longo dos últimos 32 meses.

O problema, a meu ver, é que a Constituição Cidadã concentrou nas mãos de uma única pessoa — no caso o PGR — o poder de definir o destino de um presidente da República que viesse a cometer crimes comuns. E fez o mesmo no caso de crimes de responsabilidade, já cabe exclusivamente ao presidente da Câmara dos Deputados decidir se dá andamento ou manda para o arquivo eventuais pedidos de impeachment do chefe do Executivo (mais detalhes nesta postagem).

Por alguma razão, os constituintes não estabeleceram um prazo para os ocupantes dos cargos em questão se desincumbirem da missão que lhes seria conferida — o que, mais adiante, se revelaria um erro crasso. Aliás, ao discursar durante a promulgação da nova Carta, o próprio Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, assim se pronunciou: "A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma."

Reza o artigo 5º da Constituição Federal que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes(...)". Mas nenhum de seus parágrafos, incisos ou alíneas dispõe o que se vê na prática, ou seja, alguns serem "mais iguais" que os outros.

Num passado não muito remoto, quando éramos felizes e não sabíamos, o parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna estabelecia que "Todo o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido". Ao rascunharem a versão promulgada em 1988, os constituintes promoveram uma alteração sutil na redação do texto, que passou a ser "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

Assim, passamos de suseranos a vassalos de nossos "representantes", que, em tese, exercem o poder em nosso nome, mas, na prática, fazem o que querem, como querem e quando querem, sem prestar contas a ninguém e, não raro, em benefício próprio, seja para aumentar a burocracia que os mantém, para angariar votos para a próxima eleição, para proteger os seus "companheiros representantes", e por aí segue a procissão.

Também em tese, cabe ao povo decidir, nas urnas, o destino dos políticos que mijam fora do penico. Na prática, no entanto, a teoria é outra. A pretexto de tornar as eleições "democráticas", o "direito de voto" é estendido a todos os brasileiros, o que seria louvável se a maioria do eleitorado tupiniquim não fosse composta por analfabetos, ignorantes, apedeutas e desinformados. E um título de eleitor, nas mãos de um descerebrado, é tão perigoso quanto uma caixa de fósforos nas mãos de um chimpanzé num paiol de pólvora.

Num país do futuro que nunca chega, onde até o passado é incerto, é o poste que mija no cachorro. Nesse "samba do crioulo doido", as leis são criadas por políticos que se elegem para roubar e roubam para se reeleger. Quando um "representante do povo" quebra o decoro parlamentar ou comete algum ato reprovável aos olhos de seus "representados", seus pares se apressam em mudar a lei para "transformar o errado em certo". Em suma: demos à chave do galinheiro a raposas que encarregam suas "irmãs" de investigar o sumiço das galinhas. Reclamar com quem?

A única maneira de despertar o "gigante adormecido" e evitar que ele tenha uma síncope ao tomar pé da situação seria devolver o Brasil aos silvícolas, pedir desculpas pelo estrago e começar tudo outra vez. Para limar do Executivo, do Legislativo e do Judiciário os usurpadores travestidos de representantes do povo, só mesmo uma nova Carta Magna, "menos cidadã e mais pé no chão". A que temos há 32 anos foi remendada mais de uma centena de vezes (em comparação, a Constituição dos EUA, promulgada dois séculos antes da nossa, tem apenas 7 artigos e recebeu 27 emendas ao longo das últimas 23 décadas).

Os constituintes de 1988 distribuíram diretos a rodo, mas jamais apontaram de onde viriam os recursos para bancá-los. No texto promulgado, a palavra "direito" é mencionada 76 vezes; "dever", em quatro oportunidades; "produtividade" e "eficiência" aparecem duas e uma vez, respectivamente. O que esperar de um país que tem 76 direitos, quatro deveres, duas produtividades e uma eficiência? Na melhor das hipóteses, uma política pública de produção de leis, regras e regulamentos que quase nunca guardam relação com o mundo real.

A atual pandemia sanitária e suas consequências deletérias em nossa já combalida economia, somadas à constante disputa entre os Poderes, à desmoralização do mundo político, à crise de representação e à disfuncionalidade crônica do Estado nascido dos sonhos dos constituintes de 1988, apontam para uma única solução: repensar os alicerces de nosso Estado Democrático de Direito, em especial no que concerne ao sistema político vigente, e adotar as medidas necessárias ao restabelecimento da normalidade e da pacificação institucional pelas quais anseia a sociedade (ou a parcela pensante da sociedade).

Pode-se argumentar que momento atual não seja o mais propício, e não há como discordar desse argumento. Mas é inevitável reconhecer que já passou da hora de considerarmos seriamente a possibilidade de reescrever a Constituição, visto que a atual, por sua ânsia de a tudo regular e prover, trava o desenvolvimento pleno da vida nacional.

Não há país que cresça quando a quase totalidade do Orçamento é consumida pela folha de pagamento do funcionalismo e benefícios e vinculações de toda sorte, e as crises fiscais são contornadas via aumento da carga tributária — o que atualmente é impensável e impraticável — ou por remédios institucionais cada vez menos eficazes. Para além disso, o atual sistema representativo está falido, com partidos políticos representam-se a si mesmos e mecanismos que favorecem o fisiologismo, o paternalismo e o patrimonialismo, mas nada dizem aos eleitores. O poder econômico quase sempre prevalece sobre o interesse dos cidadãos em geral, atrelando perigosamente a corrupção ao sistema político.

É certo que contexto atual não guarda a menor semelhança com o futuro imaginado pelos constituintes de 1988, que pretenderam assegurar o bem-estar e o desenvolvimento da nação por força de "cláusulas pétreas" que exaurem o Estado a pretexto de garantir direitos sociais. Direitos de quem, cara pálida? Só se for daqueles que "são mais iguais perante a lei que os outros".

Voltando mundo real, temos um presidente da Câmara mancomunado com o chefe do Executivo, que usa os pedidos de impeachment engavetados como a mitológica Espada de Dâmocles. E um procurador-geral que, de olho numa vaga no STF ou, no pior dos cenários, na recondução ao cargo para um segundo mandato, disputa com o antecessor que ocupou sua cadeira de 1995 a 2003 o título maior "engavetador-geral da República".

Diferentemente do têm dito alguns jornalistas e analistas políticos, não há limite para o número de reconduções do PGR ao cargo. Segundo o art. 128 § 1º, "O Ministério Público da União tem por chefe o Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução." (O grifo é meu).

Não existe pressuposto legal que obrigue o presidente da República a indicar o PGR a partir da "lista tríplice" do MPF, mas essa "praxe" vinha sendo observada desde 2002 — Bolsonaro ignorou-a em 2019, quando indicou Aras para o cargo, e tornou a ignorá-la este ano, ao indica-lo para um segundo mandato.

Outro absurdo: Pelas regras atuais, as vagas abertas no STF (por morte ou aposentadoria dos ministros) são preenchidas pelo inquilino de turno do Palácio do Planalto. Os requisitos constitucionais são: 1) ser brasileiro nato; 2) ter idade entre 35 e 65 anos; 3) possuir notável saber jurídico e reputação ilibada. O cargo não é exatamente vitalício, já que a aposentadoria dos membros da corte torna-se compulsória aos 75 anos de idade. Uma vez indicado pelo presidente, o felizardo é sabatinado pela CCJ do Senado e, caso seja aprovado (nunca houve reprovação desde a redemocratização), terá de obter pelo menos 41 votos favoráveis (dos 81 possíveis) no plenário do Senado. Após a aprovação, o Presidente da República assina um decreto de nomeação (que é publicado no Diário Oficial da União), habilitando seu protegido a tomar posse no cargo.

Tramitam na Câmara propostas de emenda à Constituição que mudam esses critérios (PEC 259/16 e apensados). Uma delas (PEC 225/19) prevê que os poderes Legislativo e Judiciário também indiquem ministros, em sistema de rodízio; e que o indicado seja juiz de segunda instância ou advogado com pelo menos 10 anos de prática, com mestrado na área jurídica. Além disso, o mandato, que hoje vai até a aposentadoria compulsória aos 75 anos de vida, passaria a durar 12 anos. Resta saber se e quando isso vai ser votado.

Para encerrar, resta dizer que Bolsonaro cumpriu parcialmente, na última sexta-feira (20). a promessa feita no sábado anterior. Parcialmente porque poupou o ministro Luís Roberto Barroso e limitou o escopo de seu pedido de impeachment ao também ministro Alexandre de Moraes, que o incluiu no rol de investigados do inquérito das fake news, mandou prender Roberto Jefferson e foi, digamos assim, o "mentor intelectual" da operação em que a PF cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços do cantor Sérgio Reis e do deputado Otoni de Paula, ambos aliados do capitão. Isso sem mencionar que Moraes será o presidente do TSE por ocasião das eleições de 2022.

Ao longo de toda a semana passada, nosso glorioso mandatário ruminou seu ramerrão de que "o povo brasileiro não aceitará passivamente que direitos e garantias fundamentais [art. 5° da CF], como o da liberdade de expressão, continuem a ser violados e punidos com prisões arbitrárias, justamente por quem deveria defendê-los", deixou no ar a possibilidade de um "bastante provável e necessário contragolpe", falou diversas vezem em "ruptura institucional" e aludiu ao que chama de "poder moderador" das Forças Armadas — respaldando-se numa leitura arrevesada do artigo 142 da Constituição.

Num presidencialismo como o nosso, em que chefe de Estado e chefe de Governo coincidem, não existe poder moderador (já numa República parlamentarista, o chefe de Estado é moderador, e o primeiro-ministro governa). Ocorre que a redação do retrocitado artigo dá margem a mal-entendidos quando diz que as Forças Armadas "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Numa ação impetrada pelo PDT, o ministro Luiz Fux decidiu que "a missão institucional das Forças Armadas (...) não acomoda o exercício do poder moderador entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário". Nessa mesma decisão, Fux disse que o poder das Forças Armadas é "limitado", excluindo "qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes".

Em entrevista concedida à Folha em janeiro, o jurista Ayres Britto, ex-ministro e ex-presidente do STF, disse que "basta ser uma força armada para não ter direito de falar por último; o Judiciário fala por último por seu poder ser proveniente da fundamentação técnica de suas decisões, da sua imparcialidade", mas defendeu a discussão da questão do tal "poder moderador": "Se não houver essa discussão, as próprias Forças Armadas vão pensar que estão autorizadas a fazer o que Bolsonaro tem dito".

Até a última sexta-feira, Bolsonaro não havia confirmado presença na "manifestação gigante em defesa da democracia, liberdade e contra a interferência de alguns ministros na seara de outro Poder" marcada para o próximo dia 7. Todavia, em conversa com apoiadores, disse que discursará em Brasília, pela manhã, e em São Paulo, à tarde. Mas afirmou que "não serão palavras de ameaça a ninguém" e que a manifestação será "fotografia para o mundo".

Não é o que pensa Merval Pereira. Para o escritor, jornalista e analista político da Globo News que desde setembro de 2011 ocupa a cadeira nº 31 da Academia Brasileira de Letras —, Bolsonaro, diante de uma multidão pedindo a saída de ministros do STF, voto impresso e outras coisas, dificilmente conseguirá se controlar. Sobretudo depois da ação da PF contra Sergio Reis e Ottoni de Paula. Seria o cúmulo alguém incentivar revolução, invasão ao STF e quebra-quebra no Congresso sem arcar com as consequências, mas mais inconcebível ainda é o presidente tomar essa atitude, demonstrando total inconsequência, sem avaliar o que pode vir daí (ou avalie e ache que a arruaça irá favorecê-lo).

Quando a democracia está em perigo, é preciso agir. A polarização que tomou conta de uma parte da população brasileira tem sido alimentada por um presidente irresponsável, que se vale do cargo para testar os limitas da nossa democracia. Oxalá a coisa não saia de controle no dia 7 de setembro.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

O VERDADEIRO DESSERVIÇO E QUEM VERDADEIRAMENTE O PRESTA

 

O que a Psicologia chama de "lei do espelho" eu chamo de "medir os outros pela própria régua". É o que fazem as pessoas sem caráter ao projetar nas demais a própria vileza e lhes atribuir o comportamento que elas próprias adotariam se os papéis fossem invertidos.

Depois de protagonizar a patética live da última quinta-feira e incentivar manifestações em prol do retrocesso, digo, do voto impresso, Bolsonaro voltou a atacar o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE. Na véspera, o tribunal determinou a abertura de uma investigação para apurar as ameaças do capitão às eleições e o envio de uma notícia-crime ao STF, pedindo sua inclusão no inquérito das fake news (mais detalhes na nesta postagem).

Anteontem, dirigindo-se à seleta confraria que bate ponto dia sim outro também defronte ao Alvorada, Bolsonaro disse que Barroso "presta um desserviço à nação brasileira" e salientou que aquele "era o último aviso". Pelo visto, ou melhor, pelo dito, o capitão não só aposta na balbúrdia como se propõe a liderá-la: 

"Se preciso for, para dar um último alerta àqueles que não tem respeito para conosco, eu convidarei o povo de SP, a maior capital do Brasil a comparecer à Paulista para que o som deles, a voz do povo, seja ouvida por aqueles que teimam em golpear a nossa democracia. Se o povo lá disser que o voto tem que ser auditado, que a contagem tem que ser pública e que o voto tem que ser impresso na forma como se propõe a PEC da Bia Kicis, tem que ser dessa maneira".

Situações desesperadoras exigem medidas desesperadas. Em 2018, o repúdio de parte dos brasileiros ao lulopetismo corrupto tornou presidente um capitão reformado que deixou o quartel pela porta dos fundos e, em 27 como deputado federal, aprovou dois projetos e colecionou duas dúzias de processos.

Dizia o Conselheiro Acácio que "as consequências costumam vir depois", e o engenheiro aeroespacial Edward Aloysius Murphy, que "nada é tão ruim que não possa piorar". No caso em tela, a emenda ficou pior do que o soneto. 

Depois de ser eleito e empossado, o candidato que prometeu pegar em lanças contra a reeleição, a corrupção e a "velha política do toma-lá-dá-cá" transmudou-se numa usina de crises. Para não insultar a inteligência nem abusar de sua paciência do leitor, resumo a ópera dizendo simplesmente que "foi pior a emenda que o soneto".

Restam 16 meses de mandato e nenhuma dúvida de que Bolsonaro entrará para a história como o pior presidente que esta republiqueta de bananas amargou desde a redemocratização — e não por falta de concorrentes de peso. Sobram motivos para antecipar o fim dessa tortura — tanto por crime comum quanto por crime de responsabilidade —, mas seria preciso que Augusto Aras e/ou Arthur Lira cumprissem o papel que a Constituição lhes atribui.

A deposição do chefe do Executivo é um processo traumático, mas há situações em que manter o dito-cujo é ainda pior. Sobretudo quando se trata de alguém que jamais foi talhado para o cargo — como ele próprio reconheceu publicamente — e cuja incompetência o obrigou a "entregar a alma do governo ao Centrão". Um anormal que vive no mundo da lua, num universo paralelo ou num lugar qualquer onde não existe desemprego, inflação, CPI do Genocídio nem denúncias de corrupção (envolvendo, inclusive, sua conspícua filharada). 

Fica difícil saber o que é pior, ou — como disse a médica Luana Araújo, ainda que em outro contexto — escolher de que borda da terra plana pular. Quando o presidente chamou o senador Ciro Nogueira, um dos principais caciques do Centrão, para a Casa Civil, Ricardo Rangel escreveu em sua coluna

É incontornável: quanto maior o desgaste de Bolsonaro na CPI e nas pesquisas, maior a necessidade de apoio e o espaço ocupado pelo Centrão no governo. Nogueira andava afastado de Bolsonaro ultimamente. Resistiu a ceder a legenda ao presidente, reconheceu o direito de Renan Calheiros de ser relator da CPI, afastou-se das sessões da comissão para não defender o indefensável. Agora inverte a ponta e se joga de corpo inteiro nos braços de Bolsonaro, onde já está seu correligionário Arthur Lira, presidente da Câmara, que hoje bloqueia nada menos do que 126 pedidos de impeachment.

Com Ciro (e Lira), Bolsonaro aumenta o apoio parlamentar, reduz o risco de impeachment, encomenda uma legenda para 2022 e monta o quartel-general da campanha. Quem sabe até emplaca um candidato a vice. Ciro e Lira ganham vantagens e prometem boa vontade. Só. Por um preço. Por um tempo. O chiste do general Augusto Heleno ("se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão") vai se tornando literalmente verdadeiro. Está cada vez mais difícil encontrar no governo alguém que não esteja ligado ao Centrão — até os militares governistas se tornaram uma espécie de Centrão verde-oliva, e o próprio Heleno disse recentemente: Eu não tenho hoje essa opinião nem reconheço hoje a existência desse Centrão. A evolução de opinião faz parte da vida do ser humano. Faz parte do show, do show político”.

Bolsonaro entregou de vez a chave do galinheiro à raposa — há uma metáfora zoológica mais apropriada: a do capitalista abutre. O Centrão é um abutre com apetite insaciável, quer tudo isso e o céu também, tende a engolir o governo — que quanto mais frágil fica, mais cede, e quanto mais cede, mais frágil fica. 

Ao fim e ao cabo, o Centrão apoiará o presidente no que for bom para o Centrão e enquanto for bom para o Centrão. Até quando, não se sabe. Depende da economia, da pandemia, da CPI, das manifestações de rua, de muitos outros fatores. Até da chuva. O que se sabe é que carniça não é coisa que pare de apodrecer.

domingo, 19 de setembro de 2021

COISAS DO BRASIL



O habito não faz o monge nem a faixa, o presidente. Há que haver conteúdo sob ou por detrás desses adereços indumentários. Notadamente o enfeite tiracolar transferido pelo ex-presidente a seu sucessor na cerimônia de posse — que, desde os idos de 1972, acontece sempre no dia 1º de janeiro do ano subsequente ao da eleição e tem início na Catedral de Brasília, a despeito do inciso VI do artigo 5º da Constituição. Coisas do Brasil.

Depois de desfilar no Rolls Royce Presidencial até o prédio do Congresso Nacional, Bolsonaro assinou o termo de posse, jurou "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil" e recebeu de Michel Temer a faixa presidencial.

Bolsonaro jamais leu a Constituição que jurou defender e, como o escorpião da fábula, é incapaz de contrariar a própria natureza. Apesar de reconhecer que não nasceu para ser presidente, mas para ser militar, foi expelido da Escola de Oficiais do Exército por indisciplina e insubordinação (mas acabou sendo absolvido das acusações pelo STM). No ano seguinte, elegeu-se vereador e depois deputado federal por sete mandatos consecutivos, ao longo dos quais aprovou dois míseros projetos e colecionou mais de trinta ações criminais. Em 2018, foi alçado à Presidência por uma esdrúxula conjunção de fatores, entre os quais um mal explicado atentado que sofreu durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG). 

Bolsonaro disputa com Dilma — o poste com que Lula empalou os brasileiros em 2010 — o título de pior mandatário desde a redemocratização (e não por falta de concorrentes de peso). Com a autoridade de quem sabe das coisas, o general Ernesto Beckmann Geisel — penúltimo presidente da ditadura e mentor intelectual da reabertura política lenta, gradual e segura — definiu o então capitão da ativa comoum caso completamente fora do normal, inclusive mau militar”.

O último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo que preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo (povo que, segundo ele, "não sabe nem escovar os dentes, quanto mais votar para presidente"), negou-se a passar a faixa presidencial a José Sarney (faixa a gente transfere para presidente, não para vice, e esse é um impostor). Coisas do Brasil.

A título de contextualização, vale lembrar que a Revolução de 1964 — cuja data “comemorativa” é 31 de março — foi um golpe de Estado desfechado na madrugada de 1º de abril, por líderes civis e militares conservadores, a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo.

Nos movimentos pró “Diretas Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados. A despeito do clamor das ruas, a emenda foi rejeitada — em outras palavras, o povo foi traído (mais uma vez) pela classe política, o câncer social que, infelizmente, é um mal necessário. Coisas do Brasil.

O desgaste do governo propiciou a vitória de Tancredo Neves em um colégio eleitoral — por 480 votos contra 180, a raposa mineira derrotou Paulo Maluf (que era apoiado pelos militares) depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal — formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar. 

Em janeiro de 1985, o deputado federal Ulysses Guimarães — que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra Maluf, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney — entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar. Mas Tancredo foi hospitalizado 12 horas antes da cerimônia e teve o óbito declarado 38 dias e sete cirurgias depois — ironicamente, no feriado de 21 de abril, data em que o Brasil homenageia Tiradentes, o mártir da independência. Coisas do destino.

Tancredo levou para o túmulo a esperança de milhões de brasileiros, mas deixou de herança um neto que  envergonharia o país e um mix de oligarca maranhense, escritor, poeta e acadêmico chamado José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, mais conhecido como “Zé do Sarney”. A possibilidade de Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, ser guindado ao Palácio do Planalto chegou a ser cogitada, mas prevaleceu o entendimento de que caberia a José Sarney, vice na chapa de Tancredo e rebotalho do coronelismo nordestino, assumir a Presidência. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

Observação: A origem da alcunha — que o político maranhense usava para fins eleitorais desde 1958 e acabou incorporando oficialmente em 1964 — é atribuída ao fato de seu ter sido batizado Sarney de Araújo Costa em homenagem a um inglês de conhecido como Sir Ney, em cuja fazenda ele nasceu. Coisas do Maranhão.

Fisiologista como poucos e puxa-saco de carteirinha dos poderosos de plantão, Sarney (o filho) sobreviveu à ditadura, mas sua infausta gestão à frente da Presidência foi marcada pela hiperinflação. Tanto o Plano Cruzado quanto os "pacotes econômicos" que se lhe sucederam foram baseados no congelamento de preços e salários, e da feita que repetir o mesmo erro várias vezes esperando produzir um acerto é a melhor definição de idiotice que eu conheço, não causou estranheza o fato de todos fazerem água em questão de meses. 

Em 20 de fevereiro de 1987, pressionado pela queda nas reservas cambiais, Sarney fez um pronunciamento em rede nacional anunciando a suspensão, por tempo indeterminado, do pagamento dos juros da dívida externa — evitando usar a palavra "moratória", como se isso produzisse algum resultado positivo (ou menos negativo) na medida adotada. Coisas do Brasil.

Sarney deixou a Presidência com a popularidade em patamares abissais, tanto que transferiu seu domicílio eleitoral para o recém-criado Estado do Amapá, pelo qual teria chances de conseguir uma vaga no Senado. Como era esperado, seus adversários impugnaram se insurgiram contra o cambalacho, mas o STF o avalizou. Conta-se que o ministro Celso de Mello, que teve os ombros recobertos pela suprema toga graças ao oligarca maranhense, votou pela impugnação da candidatura do benfeitor. 

O ex-ministro da Justiça Saulo Ramos quis saber por quê. Mello respondeu que a Folha havia publicado que Sarney tinha os votos certos de vários ministros e citara seu nome como um deles. "E você votou contra porque a Folha noticiou que votaria a favor?", perguntou Saulo. "Exatamente", respondeu Mello. E Saulo: "Então você é um juiz de merda!"

Sarney deixou a vida pública em 2014, aos 83 anos, a pretexto de se dedicar à literatura em tempo integral. Conta-se que, após um dilúvio assolar o Maranhão, a então governadora Roseana Sarney — filha do macróbio — telefonou ao pai para informar que metade do Estado estava debaixo d’água. Sarney perguntou-lhe candidamente: "A sua metade ou a minha?

Nas eleições gerais de 2018, os pimpolhos do velho cacique maranhense foram penalizados na urnas: nem Zequinha se reelegeu deputado, nem Roseana — que governou o Maranhão por quatro legislaturas desde 1995 — conseguiu desbancar o pecedebista Flavio Dino — que se reelegeu governador com 59,29% dos votos válidos.

Como dito parágrafos acima, Figueiredo se recusou a transferir a faixa presidencial a Sarney. Não foi o primeiro nem o único caso na história republicana do Brasil. Coisa de país de terceiro mundo? Não necessariamente. Nos EUA, o ex-presidente Donald Trump, ídolo e muso inspirador do capitão-cloroquina, não só deu trabalho para ser desencalacrado do cargo como não compareceu à cerimônia de posse de Joe Biden, o que representa uma quebra de protocolo na tradição democrática americana, mas, como dito, encontra apoio na ala conservadora da política brasileira.

Na história do Brasil, o exemplo mais recente de um chefe do Executivo que se recusou a comparecer à posse de seu sucessor foi Figueiredo, conforme já foi dito nesta postagem. Sobre Sarney, o general disse à revista IstoÉ, pouco antes de sua morte, em 1999: "Sempre foi um fraco, um carreirista. De puxa-saco passou a traidor. Por isso não passei a faixa presidencial para aquele pulha. Não cabia a ele assumir a Presidência".

A quebra de protocolo em Brasília foi relembrada pelo neto do general, minutos depois de o presidente americano anunciar que não compareceria à posse do sucessor. "Meu avô também não compareceu à posse de seu sucessor, que chegava ao poder de forma ilegítima. Agiu conforme suas convicções. Assim devem fazer os homens de caráter!", postou no Twitter o empresário Paulo Figueiredo Filho. Coisas do Brasil.

Figueiredo não foi o único a se recusar a cumprir os ritos de transição no Brasil. A República ainda engatinhava quando Floriano Peixoto, que governou de 1891 a 1894, decidiu não comparecer à posse de Prudente de Morais porque não via com bons olhos a chegada de um civil ao poder. Afonso Pena também não passou a faixa a seu sucessor, Nilo Peçanha (e nem poderia, porque Nilo era vice de Pena, a quem substituir em virtude de sua morte, em 1909). Em 1954, Café Filho viu-se presidente do dia para a noite e começou a governar o país sem a bênção de seu antecessor, Getúlio Vargas, que "foi suicidado" com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954.

Após o impasse entre Figueiredo e Sarney, somente dois presidentes eleitos diretamente (FHC e Lulareceberam e passaram a faixa a seus sucessores. O primeiro presidente eleito diretamente após a ditadura militar — o pseudo caçador de marajás Fernando Collor de Mello — recebeu a faixa de Sarney em março de 1990, mas renunciou ao mandato em dezembro de 1992 (e foi impichado mesmo assim, de modo que não passou a faixa a Itamar Franco).

Itamar, por sua vez, tomou posse em uma cerimônia breve e só usou a faixa presidencial no último de seus dois anos e três dias de governo, quando a colocou sobre os ombros de FHC. O tucano, presidente por dois mandatos, cumpriu o mesmo protocolo na posse de Lula, em 2003. Oito anos depois, foi a vez de Dilma ser destituída em um processo de impeachment — e não comparecer à posse de Michel Temer. Em janeiro de 2019, o vampiro do Jaburú repassou a faixa ao mandatário de fancaria que, por mal de nossos pecados, diz que "só Deus o tira da cadeira presidencial". Coisas do Brasil.

Bolsonaro na presidência era tudo de que o os brasileiros não precisavam, mas tornou-se a única alternativa válida depois que o ilustríssimo eleitorado tupiniquim o escalou para enfrentar o bonifrate do presidiário de Curitiba no segundo turno do pleito de 2018. Voltando à paráfrase de Bolsonaro a uma fala de Figueiredo, “plagiar é, implicitamente, admirar”, como bem disse o intelectual lusitano Júlio Dantas. Mas a pergunta que não quer calar é: se não nasceu para ser presidente, por que Bolsonaro fez da reeleição seu projeto de governo?

"Prometo que, se eleito, vou trabalhar noite e dia, durante os quatro anos do meu mandato… para ser reeleito”. Eis a promessa mais sincera e verdadeira feita pelo então candidato, como salientou o ex-delegado federal Jorge Pontes num artigo publicado em Veja. "Teremos um lapso de quatro anos praticamente jogados fora, destinados apenas à pavimentação de mais um — improvável — mandato presidencial", profetizou o policial, em agosto do ano passado.

Assim, graças à verdadeira herança maldita deixada pelo grão-duque do Tucanistão, assistimos a um mandatário eleito com juras de grandes mudanças e discursos anti-establishment emular Dilma, a inesquecível, e fazer o diabo para se reeleger.

A vitória de Bolsonaro foi um caso clássico de emenda pior que o soneto. Embora seja preferível acender a vela a amaldiçoar a escuridão, unir forças com os sectários do bolsonarismo boçal para evitar a volta da cleptocracia lulopetista foi como libertar da garrafa um gênio malfazejo e não saber como prendê-lo de volta. E urge fazê-lo, pois o Brasil dificilmente sobreviverá a mais cinco anos sob o descomando desse mafarrico.  

Segundo a revista eletrônica Crusoé, o presidente de fato desta banânia (falo do centrista Ciro Nogueira) disse a um empresário que Bolsonaro está "cada vez mais mercurial e incontrolável". O diagnóstico perturbador do ministro recém-empossado com promessas de carta branca jamais cumpridas reflete o estado de ânimo atual de setores do Centrão e de boa parte do Congresso. Embora estejam bem servidos em postos estratégicos e se lambuzando no poder desde que que o chefe do Executivo de festim lhes entregou a chave do cofre, a centralhada já entendeu que a aliança tem prazo de validade, e que esse prazo não é longo. Para as marafonas do parlamento, Bolsonaro é um político fadado ao infortúnio, seja pelo impeachment, pela cassação no TST ou derrota nas urnas. E convenhamos que não é preciso ser nenhum "Nostradamus" para fazer tal previsão.

Ainda segundo a reportagem, depois que o desembarque do governo passou a ser debatido a sério entre os partidos que compõem o Centrão, o presidente pato-manco enviou pelo líder do governo na Câmara — o ilibadíssimo Ricardo Barros, a quem o senador Omar Aziz, relator da CPI do Genocídio, se refere como responsável por um balcão de negócios com o Congresso que está a todo vapor — o recado de que continua em pé o esforço para conter possíveis defecções em sua base de apoio.

Entrementes, a despeito da carestia, a inflação oficial segue acima do esperado. O IPCA, medido pelo IBGE, acelerou para 9,68% no acumulado em 12 meses, levando a uma onda de revisões entre os economistas. Na segunda-feira, 13, o Boletim Focus, do Banco Central, registrou a 23ª alta consecutiva da mediana das projeções para o IPCA no fim de 2021, que agora está em 8%. Mas isso é assunto para uma próxima postagem.

sábado, 23 de outubro de 2021

A HORA DO IMPEACHMENT DE BOLSONARO

Sabemos que os políticos são eleitos, ou seja, que não brotam em seus gabinetes por geração espontânea. Também sabemos que a "qualidade" do eleitorado tupiniquim é a pior possível, e que quem vota em candidatos ímprobos e incompetentes não pode se queixar de estar mal representado. Mas a minoria mais esclarecida sabe quão mal representada esteve desde a primeira vitória de Lula (não que estivesse bem representada durante aos dois mandatos de FHC), e sabe também quão pior ficou a situação do país sob o mandatário de turno. A questão que se coloca é: o que fazer para mudar isso?

A resposta é: com esse Congresso, sem chance. Basta observar o comportamento dos parlamentares para inferir que as necessidades da nação e os anseios da população não são prioridades para essa caterva (com raras e honrosas exceções). E isso vale também para o chefe do Executivo Federal, que se elegeu porque muitos de nós teríamos teria votado no Demo em pessoa para impedir a volta do lulopetismo corrupto — e sabemos agora que foi quase isso que fizemos.

As promessas de campanha do "mito" jamais subiram a rampa do Planalto, ao passo que o dito-cujo, o Messias que não miracula, jamais desceu do palanque. Sua vitória decorrou da mais absoluta falta de alternativa, mas não imaginávamos, em 2018, que seu (des)governo seria algo como a emenda pior que o soneto.

Dormitam nos escaninhos da presidência da Câmara quase 140 pedidos de impeachment em desfavor de Bolsonaro. Mas foi graças a Bolsonaro e a bilhões de um orçamento paralelo que não ficou bem explicado (até porque não há como explicar o inexplicável) que a Câmara é presidida por um deputado-réu que, juntamente com o atual chefe da casa-civil da Presidência, dita as regras no famigerado Centrão

Enquanto estiverem lucrando com a permanência de Bolsonaro no cargo, os parlamentares centristas continuarão a desempenhar o papel que desempenham desde 1987 — de "marafonas do Congresso" — e seus líderes, a blindar o execrável chefe do Executivo. Como desgraça pouca é bobagem, comanda a Procuradoria-Geral da República uma versão revista, atualizada e piorada do engavetador-geral da República Geraldo Brindeiro — que foi guindado ao cargo pelo então presidente FHC.

A CPI do Genocídio concluiu seu relatório. A despeito da cisão do G7 na reta final, será pedido o indiciamento de Bolsonaro e outros investigados que transformaram em política pública o tratamento da Covid com remédios ineficazes, apostaram na imunização coletiva pelo contágio, negligenciaram o colapso hospitalar de Manaus, retardaram a compra de vacinas da Pfizer e do Butantan, firmaram contrato irregular para a compra da vacina indiana Covaxin e abriram as portas do Ministério da Saúde para picaretas que ofereciam vacinas inexistentes. Ou seja, a Comissão pretende acusar Bolsonaro tanto pela prática de crimes comuns quanto de crimes de responsabilidade, e o dito-cujo, escudado por Augusto Aras e Arthur Lira, dá-se ao luxo de dizer que está cagando e andando para a CPI

Renan Calheiros, por sua vez, tornou-se a personificação do paradoxo vivido pela CPI. Há dois anos, quando o Senado aprovou a nomeação de Aras, o senador alagoano não conseguiu conter o entusiasmo. Naquela época, ele estava ao lado do primeiro-filho do Presidente — outro entusiasta da escolha de Aras. Freguês de caderneta da Lava-Jato, o Cangaceiro das Alagoas queria acertar as contas com a força-tarefa de Curitiba; denunciado pelo MP-RJ por peculato e lavagem de dinheiro, Flávio "Rachadinha" Bolsonaro estava à procura de blindagem.

PGR — e, por extensão, o Ministério Público Federal — vive um apagão mental. Já se sabia que Aras trata o Messias que não miracula como um ser inviolável e imune (eufemismos para intocável e impune). Descobriu-se mais adiante que, para livrar o suserano de incômodos judiciais, o procurador-vassalo e sua equipe enquadraram-no na categoria dos seres inimputáveis. Bolsonaro obteve da PGR um salvo-conduto para delinquir. Pode tudo, inclusive arrancar máscara da cara de criancinha. PT e PSOL pediram no STF a abertura de inquéritos para apurar a violação de leis estaduais e federal em aglomerações promovidas pelo mandatário durante passeios de moto com seus devotos no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Norte. A subprocuradora-geral Lindôra Araújo (braço direito de Aras), a quem coube formular a manifestação da PGR, sustentou que Bolsonaro não infringiu medidas sanitárias nem colocou a vida de ninguém em risco.

Bolsonaro fez uma opção preferencial por exercer o cargo de presidente à margem da lei. Transgride até leis que ele próprio sancionou. Como há males que vêm para pior, Aras e sua equipe promovem uma junção da ilegalidade com a impunidade. Resta saber até quando um país inteiro terá de passar vergonha para que um procurador-geral e sua equipe ofereçam blindagem a um presidente da República que se converteu num infrator serial.

Vivo, Darwin diria que a atuação da PGR não é apenas uma prova de que o ser humano parou de evoluir. Trata-se de uma evidência de que ele já faz o caminho de volta. No momento, o melhor lugar para se proteger de Bolsonaro é uma caverna nas montanhas do Afeganistão. Aliás, se o homem de Neandertal desconfiasse que o resultado da evolução seria bolsonaros, talvez não tivesse saído da caverna. Teria optado por uma versão pré-histórica do isolamento social.

Tudo indica que o capitão continuará destruindo o país — com fez Dilma até maio de 2016, quando foi afastada do cargo e substituída pelo vice decorativo (o folclórico vampiro que tem medo de fantasma) — até o mais amargo fim. Como a almejada reeleição fica mais distante a cada dia (embora política seja como as nuvens no céu; a gente olha e ela está de um jeito, olha de novo e o cenário já mudou), a intenção do mandatário de fancaria parece ser a de entregar terra arrasada a seu sucessor. Vire-se (para não dizer "foda-se"), dirá sua alteza irreal a quem lhe suceder em janeiro de 2023.

Também mais distante a cada dia torna-se a possiblidade de o negacionismo em forma de gente (?!) ser apeado do cargo (para o qual reconheceu não ter sido talhado), e periga o Posto Ipiranga caminhar a seu lado até o mais amargo fim. No final da última quarta-feira, devido ao "furo no teto dos gastos", quatro integrantes do primeiro escalão do Ministério da Economia pediram demissão.

Afere-se o grau de degradação da República entre nós tomando o pulso do organismo capaz de produzir a baixaria em que rasteja a indicação de André Mendonça ao STF. O senador Davi Alcolumbre, que foi guindado à presidência do Senado como representante do que seria a nova política — em contraposição a Renan Calheiros, que representava a velha —, comanda hoje Comissão de Constituição e Justiça da Casa como um dono de repartição consciente dos próprios direitos, controlando a agenda de sabatinas e empurrando para as calendas a de André Mendonça, dublê de ex-ministro da Justiça, ex-AGU e pastor presbiteriano, que Bolsonaro indicou (há mais de 3 meses) para ocupar a vaga do ora ex-decano Marco Aurélio.

Chegou-se à altura do buraco, ainda muito a descer, em que as pelejas por uma cadeira em corte constitucional converteram-se em “guerra religiosa” — contribuição particular de Bolsonaro, com sua promessa de ministro “terrivelmente evangélico”, a essa vala. O exercício da autonomia pelo presidente da CCJ é ato político. Nisso não vai qualquer problema intrínseco. A questão é outra.

O senador não segura a submissão de Mendonça ao Senado para proteger “a legítima autonomia do presidente da CCJ”. Não é uma batalha em defesa da independência do Congresso, nem contra o aparelhamento bolsonarista das instituições — ou não teriam reconduzido Augusto Aras à PGR. Por que, então, a segura? Bolsonaro já explicou: "[Alcolumbre] Teve tudo o que foi possível durante os dois anos comigo e, de repente, ele não quer o André Mendonça".

Bolsonaro, com sua objetividade de autocrata, é transparente sobre os orçamentos secretos. Rei morto, rei posto. Enquanto presidiu a Câmara Alta, Alcolumbre "teve tudo o que foi possível" e não criou embaraços. Era sócio. Ao passar a cadeira, perdeu graças. E decerto terá sido traído pelo morubixaba de festim, notório descumpridor de promessas, acordos e tal e coisa. Em suma: o senador amapaense estica a corda por interesses pessoais, e em nome deles, para fazer barganha, exerce, perverte e privatiza uma prerrogativa, músculo do equilíbrio republicano, do Senado.

Eis a República entre nós: Alcolumbre, autodeclarado alvo de “intolerância religiosa” (por ser judeu), não agenda a sabatina porque perdeu boquinha; Bolsonaro, o que “não tem ideia”, acusa Alcolumbre de reclamar de barriga cheia; o pastor Silas Malafaia ataca graúdos (de súbito dóceis) do Centrão para reivindicar a propriedade evangélica da cadeira vaga no STF; e o futuro de André Mendonça como membro da corte depende de tudo, menos da avaliação sobre se estará à altura de integrar o Supremo.

E viva o povo brasileiro!

Com Carlos Andreazza

sábado, 27 de junho de 2020

AS ESCOLHAS DE QUEM NÃO TEM OPÇÃO



A vida é feita de escolhas”, ensinou-nos o oncologista Nelson Teich na manhã de 15 de maio, ao comunicar que havia escolhido deixar o Ministério da Saúde. E com efeito. Mas há escolhas e escolhas, ou, dito de outra maneira, nem sempre escolha é sinônimo de opção.

Teich assumiu a Saúde depois que Bolsonaro enfarinhou, fritou, cozinhou, assou e finalmente defenestrou o então ministro Mandetta — não porque o desempenho do médico fosse insatisfatório, antes pelo contrário: a popularidade que lhe rendeu seu protagonismo no combate à Covid-19 incomodou o chefe, que não admite que alguém sob seu comando seja mais popular do que ele (atualmente, até o jardineiro do Palácio consegue esse prodígio, mas isso é outra conversa).

Também contribuíram para a saída do oncologista sua irredutibilidade quanto ao uso da cloroquina e "teimosia" em seguir as recomendações da OMS — do ponto de vista da Ciência, Bolsonaro parece ter nascido numa caverna e estar caçando brontossauros.

Quando Teich foi empossado — dizendo-se alinhado com o general da banda —, teve-se inicialmente a impressão de que o capitão da caverna sem luz havia nomeado um lambe-botas disposto a obedecê-lo cegamente, ainda que para isso tivesse de limpar o rabo com o diploma de médico.

Teich foi criticado por tornar menos frequentes as coletivas de imprensa (que o antecessor realizava todo fim de tarde), por sua aparente inércia, pelas respostas evasivas e até por ter trocado o colete do SUS pelo paletó e gravata nos raros pronunciamentos à imprensa.

Soube-se mais tarde que o médico assumiu a pasta como “ministro de direito”, subordinado ao já então “ministro de fato” (ou interventor militar, como queira o leitor) general Eduardo Pazuello e sua equipe de fadados. A gota d’água foi Teich ter tomado conhecimento pela imprensa de que o presidente havia liberado sem consultá-lo — ou mesmo comunicá-lo — da reabertura de academias de ginástica e salões de beleza. E deu no que deu: o auxiliar pediu o boné antes mesmo de completar um mês no posto.

Fiz essa (não tão) breve introdução para esclarecer o que quis dizer com situações em que opções não significam necessariamente escolhas — como quando a(s) alternativas torna(m) a emenda pior que o soneto. Considerando que o que abunda não excede, junto ao exemplo retrocitado a conhecida parábola que originou a expressão “escolha salomônica” (Livro 1 de Reis, capítulo 3, versículos 16 a 28 da Bíblia), que no caso em tela deve ser focada não na difícil decisão imposta ao rei, mas na posição da mãe da criança.

Duas prostitutas que dividiam a mesma casa deram à luz com um dia de diferença. Um dos bebês faleceu, e a mãe trocou-o pelo sobrevivente. A verdadeira mãe exigiu a devolução do filho, mas não foi atendida, pois a amiga afirmava ser da reclamante o bebê que havia morrido. Depois de ouvir os dois lados da história, o Rei Salomão ordenou que partissem a criança ao meio e que cada mulher ficasse com uma metade. No mesmo instante, uma delas implorou-lhe que desse o bebê para a outra, donde o rei inferiu ser ela a mãe verdadeira, eis que seu amor pelo filho era tamanho que ela preferia vê-lo vivo, mesmo que longe de seus braços.

Tudo isso para embasar minha tese de que a escolha abilolada que do esclarecidíssimo eleitorado no primeiro turno do pleito de 2018 não nos deixou alternativa ao indesejável retorno do PT ao poder que não fiar o contrato de locação do atual inquilino do Palácio do Planalto. Assim, os eleitores sensatos (e desalentados) taparam o nariz e uniram forças com os bolsomínions, já que votar no catimbau — falo do papalvo bonifrate de Lula — jamais foi uma opção válida, e fazer como os 42 milhões de brasileiros que anularam o voto, votaram em branco ou simplesmente não compareceram às urnas seria fortalecer o adversário.

O xis da questão é que escolhas, mesmo as impositivas, implicam consequências, e o problema com as consequências é que elas vêm depois.

Dois anos atrás, mesmo quem fez a lição de casa e esquadrinhou a vida pregressa do “caso completamente fora do normal, inclusive mau militar“, que teve a carreira no exército abortada por indisciplina e insubordinação e, em 28 anos como integrante do baixo clero da Câmara Federal aprovou 2 projetos e colecionou mais de 30 ações criminais, não poderia prever que votar nessa excrescência não levaria “a montanha parir um ridículo rato” (refiro-me à célebre frase “parturiunt montesnascetur ridiculus mus”, atribuída ao poeta romano Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), mas a dar à luz um abjeto rascunho de Godzilla. Nem (muito menos) que o eleito subiria a rampa cercado por um ignóbil triunvirato prolítico seguidor da seita maldita do escalafobético “homem de Virgínia”.   

De nada adianta chorar o leite derramado, diz um velho ditado. Mas tampouco adianta esperar que o presidente mude seu comportamento e se transforme da noite para o dia num administrador competente, num político eivado de lisura (coisa que não existe neste planeta, mas enfim...), bem intencionado, que ponha os interesses da nação (e não os próprios e os da filharada) à frente de suas ambições eleitoreiras — até porque o melhor cabo eleitoral de um político que visa à reeleição é um primeiro mandato produtivo e honrado.

Para não esticar este texto com repetições desnecessárias, relembro apenas o que escrevi nesta postagem, sobre o remédio constitucional a ser usado quando um candidato que se elege calcado em propostas de campanha que passa a não cumprir — por incompetência, inadequação às exigências do cargo ou simples má-fé —, flerta com o autoritarismo e ameaça empurrar para o abismo a nação que foi eleito para comandar. E sobre a importância de administrar o fármaco na dose correta e em tempo hábil, sob pena de matar o paciente.

Para concluir:

No dia 23 de maio de 1999, o hoje presidente da República concedeu uma entrevista antológica à Band. Aos 24 minutos da conversa (que durou exatos 43), ele disse hipoteticamente que se fosse eleito presidente “daria golpe no mesmo dia! Não funciona… o Congresso de hoje em dia não funciona”. Antes, aos nove minutos, ele havia dito que “… o Congresso só existe para dizermos que temos uma democracia”.

Assistir a essa entrevista é um exercício esclarecedor. Duas décadas atrás, Jair Messias Bolsonaro, então deputado federal pelo PPB (um dos oito partidos pelos quais passou em seus 30 anos de vida pública), pesava exatamente como continua pensando atualmente. Olhando a coisa pelo lado do copo meio cheio, temos de reconhecer que, quando mais não seja, o trevoso é coerente. Ao menos quando isso lhe interessa.

Há que ter estômago para enfrentar os 43 minutos da entrevista. A afinidade que o capitão demonstra ter com a morte, por exemplo — e que vem demonstrando durante a pandemia quando relativiza “a morte de alguns” —, fica evidente em outra de suas falas famosas: a afirmação de que a ditadura “deveria ter matado mais uns 30 mil, começando pelo FHC”.

Aos 16 minutos da entrevista, o Messias que não faz milagre afirma que “sonega tudo que pode”; aos 17, que “votaria no Lula porque ele é honesto”; aos 26, que “o Planalto seria um ótimo lugar para fazer o teste de uma bomba nuclear”.

Abro um parêntese para salientar que, em 1999, Lula ainda era o desempregado que deu certo, o retirante nordestino pobre e analfabeto que passou de engraxate a torneiro mecânico; de baderneiro eneadáctilo a líder sindical; de fundador do partido dos trabalhadores que não trabalham, estudantes que não estudam e intelectuais que não pensam a candidato derrotado à prefeitura de Sampa (1982); de deputado federal (1986) e postulante contumaz à presidência da República (1989, 1994, 1998). Só em 2002 que o fiduma passaria à condição de presidente eleito, e em 2006, a despeito do Mensalão, não só se reelegeria. como se faria suceder, em 2010, pelo rascunho do mapa do inferno, colecionaria mais de 10 processos criminais, seria preso em 2018 e solto “provisoriamente” 580 dias depois (novembro de 2019), à bordo de uma namorada que conheceria na cadeia (Canja, Franja, Janja ou coisa parecida) e, sabedor de que o diabo detesta concorrência e, portanto, o protegeria do Sars-CoV-2, iria ao Vaticano constranger o Papa. Fecho o parêntese.  

Está tudo lá. Há mais de 20 anos. Tantos são os absurdos que, em qualquer outro país, Bolsonaro teria sua carreira política encerrada ao terminar a entrevista. Aqui, não. Aqui, ao que tudo indica, a postura beligerante até ajudou a elegê-lo.

Recuso-me a crer que boa parte dos brasileiros pensa como ele; prefiro imaginar que a forma com que ele se expressa é que cativa o eleitor “menos questionador” — com o conteúdo, a eleitorado apedeuta sequer se importa, até porque, ainda que quisesse se importar, não teria capacidade cognitiva para tanto.

Bolsonaro foi eleito num momento em que boa parte do país estava indignada com o PT, com a corrupção, com os escândalos que se sucediam, e conquistou admiradores com um discurso de político calejado, que fala gritando e gesticulando, o que, a olhos e ouvidos menos atentos, pode parecer indignação.

Enfim, moldamos nossa democracia ao jeitinho brasileiro. Nossa forma de governo é o Presidencialismo de Impeachment — por aqui, o impeachment não é o último recurso, mas simplesmente uma das etapas de um mandato presidencial.

Não temos treino, nem cultura, nem vontade para perder tempo escolhendo um presidente. Então, elegemos aquele que grita mais alto e depois a se vê no que dá. Collor, por exemplo, era conhecido apenas no Nordeste. Aterrissou no Planalto, e deu no que deu. Dilma idem. Uma microcéfala exótica alçada ao cargo máximo do país por um encantador de burros semianalfabeto. Deu no que deu. De novo. Mas Bolsonaro estava longe de ser um desconhecido. Sua performance nas eleições para deputado (foram oito!) lhe garantiram enorme notoriedade.

Para quem pesquisou ou assistiu apenas a entrevista de 1999, nada do que o capitão diz surpreende. Mesmo assim, a nação está surpresa com seu comportamento. E, como mandam as regras do Presidencialismo de Impeachment, trinta e tantos pedidos estão nas mãos — ou na gaveta — de Rodrigo Maia, para que nossa democracia tupiniquim siga seu curso.

Dizem que esse nosso comportamento são as dores de crescimento de uma jovem democracia. O problema é que antigamente doía. Hoje, mata.

Tantos foram os absurdos ditos por Bolsonaro naquela entrevista que, em qualquer outro país, sua carreira política estaria encerrada antes mesmo de o programa terminar. Aqui não.

Com Mentor Neto

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

POLÊMICAS E COMENTÁRIOS VERGONHOSOS — TRISTE BRASIL



Em 9 de outubro de 1979, perguntado por um menino de 10 anos como ele se sentiria se fosse criança e seu pai ganhasse salário mínimo, o então presidente Figueiredo respondeu: "Eu dava um tiro no coco." Na época, o mínimo em São Paulo correspondia a US$ 76. O general tentou consertar, dizendo que "trabalharia para ajudar o pai", mas foi pior a emenda que o soneto.

Na última terça-feira o episódio se repetiu em versão revista e atualizada. Em áudio divulgado no site do Ministério Público, o procurador de Justiça de Minas Gerais Leonardo Azeredo dos Santos reclamou do salário ao procurador-geral de Justiça de Minas Gerais, dizendo que teve que baixar “seu estilo de vida” para sobreviver:

Quero saber se nós, no ano que vem, vamos continuar nessa situação ou se vossa excelência já planeja alguma coisa, dentro da sua criatividade, para melhorar nossa situação. Ou se vamos ficar nesse mizerê" (o grifo é meu). "Quem é que vai querer ser promotor, se não vamos mais ter aumento, ninguém vai querer fazer concurso nenhum. [...] "Estou deixando de gastar R$ 20 mil de cartão de crédito e estou passando a gastar R$ 8 (mil), para poder viver com os meus R$ 24 mil. Vamos ficar desse jeito? Nós vamos baixar mais a crista? Nós vamos virar pedinte, quase?

Se R$ 24 mil mensais é "mizerê", fico pensando como Azeredo classificaria o salário mínimo (R$ 998). "Desgracê"? E o que dizer dos 12,6 milhões de desempregados, que não recebem nem essa "merreca"?

O Estado (leia-se o povo, pois o governo não gera recursos; os servidores públicos são pagos com o dinheiro dos impostos) desembolsa mensalmente R$ 35.462,22 para pagar um procurador, que, depois dos descontos de previdência e IR, recebe R$ 23.751,36. Um promotor em início de carreira já entra na instituição recebendo R$ 30.404,42 (R$ 20.487,81 após descontos).

Diferentemente de servidores do Executivo, o MP não sofre com parcelamento e atrasos de salários. Por conta de indenizações e remunerações temporárias ou retroativas, Leonardo custou ao Erário, em janeiro deste ano, R$ 99.474,02. Em dezembro de 2015, foram R$ 145.670,65 (após os descontos, o pobre coitado embolsou "míseros" R$ 132.988,26).

Outro pronunciamento estapafúrdio que bombou nas redes sociais: Carlos Bolsonaro, que se licenciou do cargo de vereador no Rio de Janeiro para palpitar em tempo integral nos assuntos do Governo Federal, tuitou que as "vias democráticas" atrasariam ou impossibilitariam "a transformação que o Brasil quer". 

"Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos... e se isso acontecer. Só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!", escreveu Carluxo em sua conta no Twitter.

A declaração repercutiu mal entre políticos de todos os espectros ideológicos: desde o PT e o PSOL até o DEM e o PSDB, incluindo o vice-presidente, Hamilton Mourão. Como Figueiredo antes dele, o filho do presidente também tentou remendar: "O que falei: por vias democráticas as coisas não mudam rapidamente. É um fato. Uma justificativa aos que cobram mudanças urgentes". Mais uma vez, a emenda fiou pior que o soneto, sobretudo porque o moçoilo voltou a atacar seus críticos, chamando-os de "canalhas" e "lixos".

Para não ficar só nisso: A CPMF foi criada em 1997 e extinta em 2007, após uma grande campanha contrária de empresários e setores da sociedade civil. Doze anos depois, ela volta a nos assombrar, já que sua exumação vem sendo cogitada pela equipe econômica do governo como solução para engordar os cofres públicos neste tempos de vacas magras. 

Em julho, Bolsonaro descartou a ressurreição do imposto impopular, e tornou a fazê-lo na última sexta-feira. Mas vale lembrar que o capitão já quebrou diversas promessas de campanha, a começar pela propalada cruzada anticrime e anticorrupção, já que no seu governo a família vem primeiro.

Pela proposta de reforma tributária em elaboração pela equipe do ministro Paulo Guedes, a CPMF (não com esse nome, evidentemente) pode ser recriada para compensar a desoneração da folha de pagamento em todos os setores da economia. O tributo teria entre 0,5% e 0,6% sobre as movimentações financeiras, e teria de ser por meio de uma PEC, o que exigiria 308 votos em duas votações na Câmara e 49 votos em outras duas votações no Senado. 

Por enquanto, não há clima no Congresso para aprovar o finado "imposto do cheque", mas é bom lembrar que na política as coisas mudam como as nuvens no céu. Você olha, e elas estão de um jeito; minutos depois já está tudo diferente. De todo modo, vale acrescentar que essa brincadeira sem graça já custou o cargo de Secretário da Receita Federal a Marcos Cintra, que não pediu demissão, como inicialmente afirmou o ministro-chefe da Casa Civil, mas foi penabundado por determinação do presidente da Banânia. Aliás, é impressionante que Cintra, que tem 74 anos, ainda não aprendeu que peixe morre pela boca.