Penúltimo presidente-general e responsável por dar início à reabertura política, Geisel definiu Bolsonaro como “um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”. Figueiredo, que sucedeu a Geisel e se recusou a passar a Faixa a José Sarney — “faixa a gente transfere para presidente, não para vice, e esse é um impostor” —, se notabilizou por dizer que preferia o cheiro dos cavalos ao do povo e que um povo que não sabe nem escovar os dentes não está preparado para votar.
Demais
disso, com a sutileza de um hipopótamo numa cristaleria, o “João do
Povo” respondeu a uma criança que “daria um
tiro no coco” se ele fosse criança e seu pai ganhasse
salário-mínimo. Como se não bastasse, num misto de retrospecto e mea culpa
sobre sua atuação, assim se pronunciou o general em causa: “A grande
falha da revolução foi terem me escolhido presidente da República (...) Fiz
essa abertura aí, pensei que fosse dar numa democracia, mas deu num troço que
não sei bem o que é.”
Bolsonaro na presidência era tudo de que o Brasil não precisava. Mas a récua de muares que atende por “eleitorado” botou fogo no parquinho em 7 de outubro de 2018, deixando a parcela pensante da população sem alternativa no embate final (o bonifrate de Lula nunca foi uma alternativa).
Em que pese o fato de as expectativas não serem nem um pouco alvissareiras, era impossível imaginar, então, a magnitude da tragédia que resultaria da posse do atual (e ainda) presidente da República. Mas vale mais acender a vela do que amaldiçoar a escuridão.
A despeito de ser um palanque
travestido de circo, a CPI do Genocídio vem expondo as entranhas
pútridas de um governo que se autodeclara a quintessência da lisura com a mesma
desfaçatez de Lula ao se autodeclarar a “alma
viva mais honesta do Brasil”.
A corrupção sempre vicejou como erva daninha na política tupiniquim.
De um tempo a esta parte, as iniquidades do capitão e seus acólitos se tornaram
alvo do G7. Na última segunda-feira (28), os senadores Randolfe
Rodrigues, Fabiano Contarato e Jorge Kajuru protocolaram
no STF uma notitia criminis acusando Bolsonaro de
prevaricação. A PGR tentou passar pano, mas a ministra Rosa Weber
mijou no chope da caterva bolsonarista.
Enquanto o governo busca manter de pé a aliança com
o Centrão e evitar o alastramento da crise política — que tem
no líder do governo na Câmara o personagem central — partidos de esquerda,
centro-direita, parlamentares que romperam com o governo e integrantes de
movimentos sociais reuniram mais de 120 representações já protocoladas
na Câmara contra Bolsonaro e apresentaram um superpedido de impeachment.
O crime de prevaricação, previsto no art. 319 do Código
Penal, consiste em “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de
ofício ou praticá-lo contra a disposição expressa de lei para satisfazer
interesse ou sentimento pessoal”. Em tese, esse ilícito pode ser
considerado crime de responsabilidade, uma vez que a Lei
do Impeachment inclui expressões de sentido amplo, como “proceder
de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.
A notícia-crime dá margem a três
possibilidades: Bolsonaro pode: 1) ser julgado pelo STF (se a prevaricação
for tratada como crime comum); 2) ser alvo de impeachment (e julgado pelo
plenário do Senado, como ocorreu com Dilma, a inolvidável,
e Collor antes dela); 3) escapar impune (não fosse a insistência da
ministra Rosa, o PGR teria arquivado a denúncia antes mesmo de ela
ser protocolada).
Observação: O crime de responsabilidade só
é imputado a presidentes da República, ministros de Estado, ministros do STF,
procuradores-gerais da República, governadores de Estados, secretários,
prefeitos e vereadores. Embora esse ilícito se confunda com o crime
de improbidade administrativa, há quem entenda que a Lei nº 8.429/92
não se aplica a agentes públicos que exercem funções governamentais, judiciais
e afins. Afinal, há muito que segurança jurídica e probidade administrativa estão em falta nas prateleiras tupiniquins.
A CPI resgatou uma célebre frase do finado ministro Teori
Zavascki: “puxa-se
uma pena e vem uma galinha”. Na última quinta-feira, o presidente Omar
Aziz disse ao depoente de turno: “chapéu
de otário é marreta”. Mas o que vem ocorrendo nas sessões nos faz
relembrar uma frase de Roberto Jefferson, delator do Mensalão e personificação de tudo que não presta na corrupta política tupiniquim: “ninguém
que denuncia corrupção é santo”.
Via de regra, a corrupção só vem a lume quando corruptos e
corruptores se desentendem. O impeachment de Collor — que teve como
pedra fundamental um
prosaico Fiat Elba — só pegou tração depois que o primeiro-irmão, Pedro
Collor, insatisfeito com a quota-parte que lhe cabia nas maracutaias, botou
a boca no trombone.
Mutatis mutandis, é mais ou menos isso que está
acontecendo na CPI, ou seja, uma disputa de intermediários de compras de
insumos e medicamentos e de interesses de grupos dentro do ministério da Saúde.
Resta saber qual das narrativa se embasa em fatos concretos — como se sabe, todo
fato tem pelo menos três versões: a sua, a minha e a verdadeira).
É igualmente curioso o fato de essa gente se conhecer apenas
pelo primeiro nome. Ninguém sabe o sobrenome de ninguém. É o Odilon, o Cristiano,
o Hamilton e por afora... Ninguém sabe o nome do chefe, do
intermediário nem de quem mais participou das negociações, mesmo em transações bilionárias,
como a dos 400 milhões de doses da AstraZeneca.
Talvez fosse bom mandar examinar o ar-condicionado das dependências do Senado onde as sessões da CPI são realizadas. Algum micro-organismo
em suspensão na atmosfera deve estar causando amnésia nos depoentes.
De toda confusão que se formou na semana passada, uma evidência emergiu com toda clareza: há algo de muito podre no reino de Bolsonaro — sobretudo no Ministério da Saúde. Da cobrança de propinas a denúncias feitas a um presidente que não toma providências, passando por contratos para lá de irregulares e o envolvimento do líder do governo na Câmara, abundam indícios de estelionato na compra e venda de vacinas e participação de altos funcionários de uma pasta que já teve quatro chefes durante 16 meses de pandemia.
A CPI abriu uma Caixa de Pandora que confirma a velha máxima sobre comissões parlamentares de inquérito: a gente sabe como elas começam, mas nem imagina como vão terminar. Ao puxar uma pena, o G7 trouxe à luz um galinheiro que nada fica devendo aos escândalos do Mensalão e do Petrolão dos governos petistas. Desta vez, porém, a mercadoria posta no balcão de negócios foi (e é) a vida de milhares de brasileiros. A julgar pelas tentativas mal-ajambradas de explicar as anomalias no contrato de compra da Covaxin, o chefe do Executivo dificilmente sairá ileso dessa confusão — que está apenas começando.
Para prosperar, um pedido de impeachment precisa ser aceito pelo presidente da Câmara (escusado dizer de quem se trata e como chegou ao cargo), ser avalizada por uma comissão criada especialmente para analisar sua admissibilidade, obter votos favoráveis de 2/3 na Câmara e maioria simples no Senado. O caminho é tortuoso e trilhá-lo demanda tempo, vontade política e, principalmente, apoio popular (mais detalhes nesta postagem).
Fato é que dia sim, outro também, surgem novos indícios
de ilícitos relacionados a vacinas, testes para detecção da Covid e outros insumos
associados à crise sanitária, muitos dos quais ligam a conduta do presidente,
na pandemia, a suspeitas de corrupção, e o põem numa situação que vai muito
além de ações e omissões negacionistas pautadas por ideologia ou distorção de
caráter.
Se os exercícios da negação e da boçalidade já provocaram revolta e aumento da avaliação negativa do mandatário, por terem estimulado a contaminação e contribuído para o número de mortes que poderiam ter sido evitadas, a coisa tende a se agravar quando ingressa no âmbito da troca de vidas por dinheiro.
A ocorrência de crimes de prevaricação, de corrupção e/ou tráfico de influência com participação direta de Bolsonaro está sob investigação. Ainda não há provas irrefutáveis de que o presidente agiu em benefício próprio ou com intuito de proteger alguém que tenha oferecido ou recebido promessa de vantagem indevida. Mas estranha-se o fato de que, após dez dias de puro atordoamento, o governo entrou no modo redução de danos ao anunciar o reexame do contrato da Covaxin, coisa que o susto o impediu de fazer no primeiro momento.
Só havia uma maneira de desmontar a denúncia que os irmãos Miranda levaram a Bolsonaro em 20 de março último: a apresentação de uma imediata, concisa e muito bem contada história. Mas o que ocorreu foi exatamente o contrário: uma série de lorotas desmentidas, uma a uma, pelos fatos.
Da acusação de fraude documental lançada sobre os denunciantes às
versões de que dois auxiliares demissionários — o ministro Pazuello (ora
alvo de inquérito na primeira instância da Justiça Federal do DF) e o
secretário-executivo da Saúde, coronel Élcio Franco — foram encarregados
de investigar e nada encontraram de errado, o governo só fez se enrolar. Bolsonaro
ainda tentou recorrer
ao velho truque de dizer que não sabia de nada, mas não colou.
Diferentemente de Lula em 2005 — que sob a mesma alegação conseguiu ficar de fora da denúncia do Mensalão apresentada pela PGR ao STF —, Bolsonaro não pôde contar com o benefício da dúvida. Um deputado de sua base de apoio apontou dia, hora e local em que levou a ele a denúncia e ainda acenou com a possibilidade de apresentar provas caso fosse desmentido. Ante a hipótese de existir uma gravação, o capitão preferiu não pagar ver. Ficou na encolha.
Diante da notícia-crime por prevaricação apresentada ao Supremo, foi ordenada a suspensão do contrato que originou a puxada do primeiro fio, “para análises mais profundas”. Isso três meses depois do aviso de que havia gato na tuba. Não foi acionada a Polícia Federal, conforme prometido inicialmente aos denunciantes, nem se negou que por ocasião da visita deles ao Palácio da Alvorada o presidente apontara o líder do governo na Câmara como contumaz autor de “rolos”.
O contrato da Covaxin acabará por ser cancelado e Ricardo Barros, devagar, afastado à francesa, provavelmente por iniciativa própria em
encenado gesto de desprendimento. Mas, ainda que não ocorra o impeachment — o
que, nos bastidores, o mundo político todo rejeita —, Bolsonaro
continuará na vitrine na desconfortável e eleitoralmente periclitante condição
de vidraça.
Com Dora Kramer