O que a Psicologia chama de "lei do espelho"
eu chamo de "medir os outros pela própria régua". É o que
fazem as pessoas sem caráter ao projetar nas demais a própria vileza e lhes
atribuir o comportamento que elas próprias adotariam se os
papéis fossem invertidos.
Depois de protagonizar a patética live da última
quinta-feira e incentivar manifestações em prol do retrocesso, digo, do voto
impresso, Bolsonaro voltou a atacar o ministro Luís
Roberto Barroso, presidente do TSE. Na véspera, o tribunal determinou a abertura de uma investigação para apurar as ameaças do capitão às eleições e o envio de uma notícia-crime ao STF, pedindo sua inclusão no inquérito das fake news (mais detalhes na nesta
postagem).
Anteontem, dirigindo-se à seleta confraria que bate ponto dia sim outro também defronte ao Alvorada, Bolsonaro disse que Barroso "presta um desserviço à nação brasileira" e salientou que aquele "era o último aviso". Pelo visto, ou melhor, pelo dito, o capitão não só aposta na balbúrdia como se propõe a liderá-la:
"Se preciso for,
para dar um último alerta àqueles que não tem respeito para conosco, eu
convidarei o povo de SP, a maior capital do Brasil a comparecer à Paulista para
que o som deles, a voz do povo, seja ouvida por aqueles que teimam em golpear a
nossa democracia. Se o povo lá disser que o voto tem que ser auditado, que a
contagem tem que ser pública e que o voto tem que ser impresso na forma como se
propõe a PEC da Bia Kicis, tem que ser dessa maneira".
Situações desesperadoras exigem medidas desesperadas. Em
2018, o repúdio de parte dos brasileiros ao lulopetismo corrupto tornou presidente um capitão reformado que deixou
o quartel pela porta dos fundos e, em 27 como deputado federal, aprovou
dois projetos e colecionou
duas dúzias de processos.
Dizia o Conselheiro Acácio que "as consequências costumam vir depois", e o engenheiro aeroespacial Edward Aloysius Murphy, que "nada é tão ruim que não possa piorar". No caso em tela, a emenda ficou pior do que o soneto.
Depois de ser eleito e empossado, o candidato que prometeu pegar em lanças contra a reeleição, a
corrupção e a "velha política do toma-lá-dá-cá" transmudou-se numa
usina de crises. Para não insultar a inteligência nem abusar de sua
paciência do leitor, resumo a ópera dizendo simplesmente que "foi pior a emenda que o soneto".
Restam 16 meses de mandato e nenhuma
dúvida de que Bolsonaro entrará para a história como o pior presidente que esta
republiqueta de bananas amargou desde a redemocratização — e não por falta de
concorrentes de peso. Sobram motivos para antecipar o fim dessa tortura — tanto
por crime comum quanto por crime de responsabilidade —, mas seria preciso que Augusto Aras e/ou Arthur Lira cumprissem o
papel que a Constituição lhes atribui.
A deposição do chefe do Executivo é um processo traumático, mas há situações em que manter o dito-cujo é ainda pior. Sobretudo quando se trata de alguém que jamais foi talhado para o cargo — como ele próprio reconheceu publicamente — e cuja incompetência o obrigou a "entregar a alma do governo ao Centrão". Um anormal que vive no mundo da lua, num universo paralelo ou num lugar qualquer onde não existe desemprego, inflação, CPI do Genocídio nem denúncias de corrupção (envolvendo, inclusive, sua conspícua filharada).
Fica difícil saber o que é pior, ou — como disse a médica Luana Araújo, ainda que em outro contexto — escolher de que borda da terra plana pular. Quando o presidente chamou o senador Ciro Nogueira, um dos principais caciques do Centrão, para a Casa Civil, Ricardo Rangel escreveu em sua coluna:
É incontornável: quanto maior o desgaste de Bolsonaro na CPI e nas pesquisas, maior a necessidade de apoio e o espaço ocupado pelo Centrão no governo. Nogueira andava afastado de Bolsonaro ultimamente. Resistiu a ceder a legenda ao presidente, reconheceu o direito de Renan Calheiros de ser relator da CPI, afastou-se das sessões da comissão para não defender o indefensável. Agora inverte a ponta e se joga de corpo inteiro nos braços de Bolsonaro, onde já está seu correligionário Arthur Lira, presidente da Câmara, que hoje bloqueia nada menos do que 126 pedidos de impeachment.
Com Ciro (e Lira), Bolsonaro aumenta o
apoio parlamentar, reduz o risco de impeachment, encomenda uma legenda para
2022 e monta o quartel-general da campanha. Quem sabe até emplaca um candidato
a vice. Ciro e Lira ganham vantagens e prometem boa vontade. Só.
Por um preço. Por um tempo. O chiste do general Augusto Heleno ("se
gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão") vai se tornando
literalmente verdadeiro. Está cada vez mais difícil encontrar no governo alguém
que não esteja ligado ao Centrão — até os militares governistas se
tornaram uma espécie de Centrão verde-oliva, e o próprio Heleno
disse recentemente: “Eu não tenho hoje essa opinião nem reconheço hoje
a existência desse Centrão. A evolução de opinião faz parte da vida do ser
humano. Faz parte do show, do show político”.
Bolsonaro entregou de vez a chave do galinheiro à raposa — há uma metáfora zoológica mais apropriada: a do capitalista abutre. O Centrão é um abutre com apetite insaciável, quer tudo isso e o céu também, tende a engolir o governo — que quanto mais frágil fica, mais cede, e quanto mais cede, mais frágil fica.
Ao fim e ao cabo, o Centrão
apoiará o presidente no que for bom para o Centrão e enquanto for bom para o
Centrão. Até quando, não se sabe. Depende da economia, da pandemia, da CPI,
das manifestações de rua, de muitos outros fatores. Até da chuva. O que se sabe
é que carniça não é coisa que pare de apodrecer.