O ex-decano Marco Aurélio Mello gostava parafrasear Platão,
repetindo ad nauseam que "vivemos tempos estranhos". Mas
o fato é que o Brasil é um país estranho.
Em apenas uma semana, após assinar um patético documento
intitulado pomposamente como "Declaração à Nação" pelo
respectivo redator — o ex-presidente Michel Temer —, o presidente desta
banânia passou de conspirador-mor da República a respeitador das instituições e
da Constituição.
A súbita conversão ocorreu logo na introdução, onde o
vampiro do Jaburu anota que "o país se encontra dividido entre
instituições", o que, convenhamos, não é fácil entender. Mas já dizia
o saudoso maestro Tom Jobim, brasileiro até no nome (Antonio Carlos
Brasileiro de Almeida Jobim), que o Brasil não é para amadores.
Se a introdução é pouco feliz, o documento fica pior quando expõe
os dez pontos da inútil declaração. Diz que "respeita os outros dois
Poderes e que deve haver harmonia entre eles" — estranho que um presidente
da República, que jurou respeitar a Constituição, tenha de reafirmar esse
compromisso. Como se já não bastasse esse mau sinal, o documento afirma em
seguida que "boa parte dessas divergências decorrem de conflitos de
entendimento acerca de decisões adotadas pelo ministro Alexandre de Moraes no
âmbito do inquérito das fake news."
Só que a epístola não aponta as tais "divergências",
o que desautoriza qualificar os ataques criminosos contra o Supremo e as
injúrias, calúnias e ameaças de morte assacadas contra o Alexandre de Moraes
como simplesmente uma disputa entre intérpretes da Constituição.
Continuando no terreno da mediocridade analítica da complexa
relação entre os Poderes, o miliciano de Rio das Pedras diz — em tom de ameaça —
que ninguém tem direito de "esticar a corda", e relaciona tal
reflexão — digna de um beócio — com a economia e a vida dos brasileiros. E
conclui afirmando que suas "palavras contundentes" foram ditas
no calor do momento. Mas quais palavras? Quais momentos?
O fecho da frase é fantástico, digno do momento político que
vivemos: os ataques à Constituição, as ameaças de golpe de Estado, o estímulo à
violência como método político forma transformados, como num passe de mágica,
em "embates que sempre visaram ao bem comum."
Não cumprir decisão judicial, como o mito dos otários
proclamou que faria em relação às decisões do ministro Alexandre de Moraes,
virou "naturais divergências" na novilingua bolsonarista. E o
epíteto "canalha", como o capetão se referiu ao magistrado,
foi reinterpretado: na versão epistolar, Moraes ganha os atributos de jurista e
professor.
Não fosse trágico, seria cômico o jurista de Rio das Pedras
dissertar sobre o artigo
5º da Constituição — que nunca
leu, registre-se — e lançar luzes milicianas à sua mui particular
interpretação da Carta Magna, dando-nos a saber que ele respeita — ufa, mais
uma vez — as instituições e — como um Péricles do submundo carioca —, assevera
que na democracia os três Poderes trabalham em favor do povo.
Concluiu a "Declaração à Nação" com duas
frases que o Doutor
Pangloss, com seu inveterado otimismo, diria que são enigmáticas, mas
podem ser definidas como o produto de um redator medíocre que desconhece a
Constituição, o pensamento lógico e a língua de Camões.
Afirmou o signatário da missiva que sempre esteve "disposto
a manter diálogo permanente com os demais Poderes pela manutenção da harmonia e
independência entre eles." Manter diálogo é o mínimo que se espera de
quem diz respeitar (e jurou!) a Constituição. Agora não é ele — que personifica
o Executivo federal — quem vai manter a harmonia e independência entre os
Poderes!
Bolsonaro — ou o tosco redator — quer reescrever o caput do artigo
102 da CF (Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a
guarda da Constituição"). O "último mandamento", o
décimo, Bolsonaro agradece o apoio do povo brasileiro (?) e diz: "conduzo
os destinos do nosso Brasil."
A redação é ruim, é verdade. Porém, é possível compreender
que é ele quem conduz o nosso destino! Agora temos o condottiere de Rio
das Pedras. Para piorar, cita, no final o lema integralista que, imagina-se,
deixaria envergonhado Plínio
Salgado — que ao menos sabia escrever, e bem.
O patético documento foi recebido como se fosse um discurso
de Winston
Churchill. Sinal da decadência política do Brasil.
Bolsonaro precisava ganhar tempo para continuar
solapando as instituições. Se León Trotsky falava
em revolução permanente, o "mito" dos bolsomínions age para produzir
o caos permanente. E a crise institucional vai se agravar para além do desastre
econômico, social e sanitário.
Em Os
Bruzundangas, Lima Barreto desenhou um país muito semelhante ao Brasil
contemporâneo. Inclusive, a Constituição estabelecia que para ser elegível o
Presidente "devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse
mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse
vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total." Por
mais estranho que pareça, Jair Bolsonaro consegue ser pior.
Em meio a uma contagem regressiva para o próximo surto de Bolsonarite,
o TSE disparou no rumo do gabinete presidencial uma bala perdida que
desafia o armistício. Por decisão do corregedor-geral da Justiça Eleitoral,
ministro Luis Felipe Salomão, a Corte vai apurar se houve propaganda
eleitoral antecipada e abuso de poder nas manifestações promovidas por
Bolsonaro no 7 de Setembro.
A providência foi tomada no âmbito do inquérito
administrativo sobre a disseminação de mentiras que associam as urnas
eletrônicas a fraudes inexistentes e ameaças ao processo eleitoral de 2022.
Esse inquérito foi aberto no mês passado, por decisão unânime dos sete ministros
que compõem o plenário do TSE.
O TSE coleciona dados para instruir uma eventual
decretação da inelegibilidade de Bolsonaro, o que impediria o presidente
de disputar a reeleição em 2022. Esse tipo de procedimento não depende de
denúncia da Procuradoria-Geral. Ou seja, está fora do alcance da blindagem
de Augusto Aras.
Deseja-se apurar a origem das verbas que financiaram os atos
estrelados pelo mandatário no Dia da Independência, incluindo o custo do
transporte e diárias de manifestantes e a confecção de material em defesa do
voto impresso. Além dos indícios de abuso de poder econômico, os atos podem ser
enquadrados como campanha fora de época, o que é crime eleitoral.
O custeio das manifestações será apurado também em inquérito
aberto no STF sobre agressões à Corte e seus ministros por bolsonaristas
que se envolveram na operação que subverteu os festejos do 7 de Setembro.
O relator desse inquérito é Alexandre de Moraes, que Bolsonaro,
em sua versão moderada, trata como um "ex-canalha".
Já passou da hora de pôr um paradeiro nesse descalabro. Como dizia Giovanni Improtta (protagonizado pelo saudoso José Wilker), "o tempo ruge e a Sapucaí é grande".