A HORA DO SIM É UM DESCUIDO DO NÃO.
Bolsonaro nunca demonstrou apreço pela verdade, mas até os ponteiros de um relógio quebrado mostram a hora certa duas vezes por dia: em abril de 2019, parafraseando o general Figueiredo, o capitão reconheceu que não nasceu para ser presidente.
Não foi uma revelação bombástica (na
verdade, não foi sequer uma "revelação", e sim a mais pura exaltação
do óbvio), mas serviu de salvo-conduto para o capitão-negação continuar mentindo sem ser
acusado de jamais ter dito uma verdade em toda sua torpe existência.
Anteontem, durante o
lançamento do programa Crédito Caixa Tem, o mandatário de fancaria que apresentou
ao mundo um país que não existe (no discurso de abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU) reconheceu que o
Brasil enfrenta problemas econômicos. "Alguém acha que eu não queria
a gasolina a R$ 4? Ou menos? O dólar R$ 4,50 ou menos? Não é maldade da nossa
parte. É uma realidade. E tem um ditado que diz: 'Nada não está tão ruim que
não possa piorar'. Nós não queremos isso". Mas a frase mais
marcante foi: "Nada
não está tão ruim que não possa piorar."
Bolsonaro cometeu algo muito parecido com um
sincericídio, conquanto tenha tomado o cuidado de zelar pela polarização
grudando no petismo uma imagem de boi da cara preta. Já Paulo Guedes soou
como se a reeleição do chefe fossem favas contadas.
Com o tanque vazio, o Posto Ipiranga encostou na sua lojinha de conveniências uma tenda de quiromancia e ladrilha o futuro com pedrinhas de brilhante. Segundo Guedes, o plano para os próximos dez anos é "continuar com as privatizações, Petrobras, Banco do Brasil, todo mundo entrando na fila...". Guedes parece supor que o Brasil é um país de bobos. Alguém vai acabar perguntando: Que foi feito do primeiro semestre de 2021, futuro do segundo semestre de 2020? Que fim levou 2020 inteiro, futuro de 2019?
Reprovado por 53% dos eleitores, Bolsonaro enxerga pelo retrovisor somente o passado dos governos petistas e usa-o para
instilar medo no futuro. Sem citar nominalmente o "ladrão de nove
dedos", o sultão do Bolsonaristão afirma que o Brasil pode virar uma
Venezuela caso o PT volte ao poder.
Bolsonaro é alvo de inquéritos no STF e no
TSE. Está prestes a ser acusado pela CPI da Covid de praticar crimes em
série na pandemia. Insinua que, se ficar "fora de combate", o retorno
de Lula, favorito nas pesquisas, é "previsível". E "não
serão mais 14 anos" de PT, disse ele, "serão pelo menos
50".
O discurso do capitão passa por um
processo de infantilização, mas há método nessa estratégia. Como nas velhas
cantigas de ninar entoadas para fazer criancinhas dormir incutindo-lhes o
terror, ele incute na conjuntura o medo de que uma assombração de
"esquerda" pode ressurgir a qualquer momento para pegar os eleitores
que têm medo de careta.
Mantidas as atuais condições de temperatura e pressão, o antipetismo de 2018 terá em 2022 a companhia do
antibolsonarismo. E o eleitor brasileiro, mais crescidinho, talvez já não se
anime a trocar um boi da cara preta por outro.
Com Josias de Souza