quarta-feira, 8 de setembro de 2021

O GOLPE E O GOLPE DE MISERICÓRDIA



No momento em que eu escrevia estas linhas, atos em defesa e contra o governo federal estavam em andamento em pelo menos 15 Estados do País, e o presidente que acirrou as tensões institucionais ao convocar manifestações de apoio ao governo e ataques a ministros do STF já havia feito um "discurso fechado" na Esplanada dos Ministérios, levando ao delírio centenas de milhares de apoiadores — um número considerável, mas bem aquém do que ele e seus asseclas esperavam.

Em São Paulo, grupos de esquerda realizaram protestos no vale do Anhangabaú. Para evitar confrontos que descambassem para a violência explícita, as manifestações contra o governo, na avenida Paulista, acontecerão no próximo domingo, quando então o número de participantes deverá ser mais significativo. Bolsonaro discursou na mais paulista das avenidas por volta das 16h, mas desde manhã os apoiadores se apinhavam defronte MASP

O tucano Bruno Araújo, presidente do PSDB, convocou para esta quarta-feira uma reunião de emergência que deverá tratar da posição do partido em relação a um possível processo de impeachment de Bolsonaro. A notícia foi veiculada poucas horas após o chefe do Executivo vituperar o Judiciário e o Congresso em seu discurso na Esplanada dos Ministérios.

O jornalista Merval Pereira, do G1, avalia que o vice Hamilton Mourão já tem apoio militar para substituir o titular. "Seria, por caminhos transversos, uma terceira via com apoio militar, depois de idealmente ter colocado ordem na bagunça institucional em que vivemos", disse Merval. "Quando escolheu o Mourão para seu vice, um dos zeros de Bolsonaro comemorou, dizendo que a oposição pensaria duas vezes antes de tentar impedi-lo. O feitiço virou contra o feiticeiro. Mourão passou a ser visto por setores militares e políticos como possível solução para o problema em que Bolsonaro se tornou", relembrou Merval.

Ainda estamos na fase de ver no que vai dar o discurso antidemocrático de Bolsonaro, de achar que ele ainda não atravessou nosso Rubicão. Às vésperas dos 200 anos de Independência — este foi o 199º aniversário —, já deveríamos ter superado essa instabilidade política. Embora a popularidade do presidente tenha subido no telhado, ele ainda tem o apoio de 20% a 25% do eleitorado, o que pode levá-lo ao segundo turno (se não cair até outubro do ano que vem), mas não basta para derrotar Lula ou quem quer que venha a ser seu adversário nessa oportunidade. 

De momento e ao longo dos próximos meses a grande preocupação é (e será) a possibilidade de a polarização descambar para violência e arruaças, devido, sobretudo, à retórica agressiva de Bolsonaro e ao apoio de seus acólitos. Isso foi claramente demonstrado pelo viés nitidamente antidemocrático das manifestações de ontem, nas quais a malta bolsonarista exibia cartazes pedindo intervenção militar, fechamento do congresso, deposição dos ministro do STF e todas aquelas asneiras que estamos cansados de ver e ouvir — o que não as torna ameaças menos perigosas. 

Bolsonaro avança sobre marcos democráticos a pretexto de defender essas mesmas bandeiras, desconstruindo as palavras numa novilíngua que pretende transformar o indefensável em palatável, a anormalidade em novo normal. Ao apostar todas as fichas na capacidade mobilizar suas tropas, arrisca-se a produzir o efeito contrário: para quem falou em 2 milhões de pessoas nas ruas, centenas de milhares é um número considerável, mas não o bastante. E de nada adianta enfeitar o pavão: a possibilidade de mesurar manifestações pelo número de pessoas por metro quadrado já desmoralizou diversos eventos "monumentais". 

A situação, já insustentável, tende a ficar ainda pior — uma conjuntura inadmissível numa verdadeira democracia, que não aceita decidir o rumo que o país a partir de enfrentamentos nas ruas, até porque isso pode evoluir facilmente para uma batalha campal (e daí para uma guerra civil é um pulo). 

A intenção declarada pelo capitão era ter uma foto da multidão para mostrar ao mundo sua força popular, como se essa suposta força fosse suficiente para autorizá-lo a transgredir a lei. Mas o tom e o conteúdo do discurso que ele proferiu deram a entender que a ideia é ir bem além disso. O que é no mínimo preocupante. 

Estima-se a população tupiniquim em 213 milhões de almas. Se mais de 212 milhões desses viventes não participaram dos protestos, dizer que o Brasil apoia em peso o desgoverno Bolsonaro é uma sandice. A escumalha barulhenta e arruaceira que idolatra esse lunático é o oposto da população menos ruidosa, mas nem por isso silenciosa, que se opõe a seu desgoverno genocida. Mas os bolsonaristas radicais agem como se fossem maioria, tentando, pela força, transformar a democracia representativa em letra morta. 

Esse é o paradoxo que se coloca: uma minoria antidemocrática que não aceita os poderes que impõem a ela os limites democráticos.

Ser antipetista não significa ser bolsonarista. Esse engano remonta a outubro de 2018, quando os muitos que não queriam a volta do lulopetismo corrupto se uniram aos defensores do bolsonarismo boçal, produzindo os 57,7 milhões de votos que alçaram um dublê de mau militar e parlamentar medíocre à Presidência desta mixórdia. 

Mas é bom lembrar que a conjuntura, então, era outra, a exemplo da que deu azo ao golpe de 1964 — para desgáudio da claque de muares descerebrados, que incentiva esse presidente troglodita a tentar alguma sandice, e para alívio daqueles comprometidos com a democracia.

Vamos esperar para ver no que vai dar e torcer pelo melhor.