Conforme vimos no capítulo anterior, parlamentares
argumentaram que o STF não pode se imiscuir em assuntos do Legislativo,
mas a decisão da ministra Rosa (de suspender o "orçamento secreto")
foi confirmada em plenário virtual por 8 votos a 2 — vencidos Gilmar Mendes
e, claro, Kássio Nunes Marques, que atua no Supremo como Pazuello
atuava no ministério da Saúde, na base do "um manda e o outro obedece".
Nas democracias parlamentaristas, quando o Legislativo mija fora do penico, o parlamento é dissolvido e novas eleições são convocadas. Cá por estas bandas, os presidentes de turno da Câmara Federal, quando não se aliam ao mandatário da vez — como se deu entre Michel Temer e Fernando Henrique, durante o governo do tucano, e entre Rodrigo Maia e o próprio vampiro do Jaburu, durante o mandato tampão deste último —, alimentam um projeto de poder — como foi o caso de Eduardo Cunha. Está mais que na hora de aprender.
Arthur Lira é um ponto fora da curva, pois
joga nos dois times. E sua relação com Bolsonaro é de ajuda mútua,
baseada no mais (im)puro pragmatismo. Nas palavras do capetão, ele e Lira
formam "heteramente um casal". Segundo ele, são dois os Poderes da
República: O Judiciário de um lado e o "casal" do outro.
Mas o apetite do deputado alagoano pelo poder é tão
pantagruélico quando o do chefe do Executivo pela reeleição (que Deus nos livre
e guarde dessa desgraça e, de passagem, mande Lula para Cuba, para
Nicarágua ou para a PQP). Em comum, o bizarro "casal" tem o projeto
da reeleição — Bolsonaro à Presidência da República e Lira à
presidência da Câmara —, donde a ideia defendida pelo deputado de emplacar o semipresidencialismo.
Presidente que se alia às marafonas do Centrão deve
ter em mente que o bloco não vende apoio, apenas aluga, e que a locação tem
prazo curto. As carpideiras centristas carregam o caixão até a sepultura, mas
não pulam na cova junto com o defunto. Bolsonaro sabe (ou deveria saber)
que a traição de uma parte do Centrão é líquida e certa. Integrantes do Progressistas,
do Republicanos e do PL já admitem deixar a base do governo antes
mesmo da definição formal das alianças para a eleição presidencial.
Valdemar Costa Neto é um caso clássico dessa postura
ambivalente: às vésperas de carimbar a ficha de filiação do ex-desafeto e ora (mais ou menos)
aliado, o mensaleiro e ex-presidiário tem piscado para outros
postulantes ao Planalto. Aliás, paira um clima de insatisfação, em vários
estados, com vinda de Bolsonaro et caterva para o partido que
virou sinônimo de corrupção. No Piauí, o PL vai de Lula; em
Alagoas, fará parte da aliança costurada por Renan Calheiros; em São
Paulo, deve apoiar João Doria — se ele sair vitorioso das prévias
tucanas e se as prévias tucanas forem concluídas até outubro do ano que vem; e
por aí segue a procissão.
Na pútrida política tupiniquim, o desafeto de hoje pode ser
o aliado de amanhã (e vice-versa). Em 2018, Doria apoiou Bolsonaro;
agora, sua pretensão é voar, sem escalas, do Bandeirantes para o Planalto.
Ainda que parte da bancada do PL paulista seja bolsonarista, uma ala
importante do partido — que inclui os caciques locais — é ligada a Doria
e deve dançar conforme a música tocada pelo tucano.
Bolsonaro deixou o laranjal pesselista em novembro de
2019 devido a de$entendimento$ com Luciano Bivar. Anunciou que criaria o
"Aliança pelo Brasil" — que ganhou slogan, logomarca e número
de urna, mas não reuniu apoiadores suficientes para sair do papel (a Justiça
Eleitoral exige 492 mil assinaturas para a criação de um partido, e Bolsonaro
granjeou apenas 154 mil). Dado esse fiasco, negociou com uma dúzia de siglas, mas
nenhuma delas concordou em lhe entregar o comando e a chave do cofre (leia-se
fundos partidário e eleitoral). Na reta final das negociações, namorou o Progressistas,
mas foi ameaçado de retaliação por Costa Neto, que ameaçou apoiar Lula
se fosse preterido.
Observação: Vale lembrar que o dublê de mensaleiro
e ex-presidiário receberá Bolsonaro não só para sugar mais dinheiro
e cargos até o final de sua calamitosa gestão, mas também para aumentar sua
bancada no Congresso, notadamente na Câmara, já que boa parte dos bolsonaristas
alojados no PSL, que se fundiu ao DEM para formar a União
Brasil, deve migrar para o PL a reboque de Bolsonaro.
Conforme o namoro evoluiu para noivado, Zero Dois — o
"pitbull" do papai — deu sumiço a um tuíte antigo, que ligava o noivo
do pai a recebimento de propina. Mas os prints são eternos e não tardou para
que uma postagem de 2018, em que o Jair Bolsonaro chamava Valdemar
de “corrupto e condenado”, também fosse recuperada.
Agora, o discurso mudou. “Se tirar o Centrão, para
onde eu vou? Vou conversar com PSOL e PCdoB?”, questionou o mandatário de
fancaria, tentando emplacar a falsa tese de que não teve escolha senão ceder à
velha política. Poderia ir paro o PCC. Ou para Bangu. Mas isso é
outra conversa.
A dissimulação é tamanha que a deputada Flávia
Arruda — unha-e-carne com Ciro Nogueira — foi empossada ministra
da Secretaria de Governo numa cerimônia fechada e Costa Neto foi
excluído das fotos divulgadas ao público. Mas na campanha a história é outra. Bolsonaro
não poderá ocultar do eleitorado a presença do mensaleiro em seu palanque nem esconder
a presença de outros personagens do Centrão envolvidos em escândalos,
como o próprio Ciro Nogueira (atual ministro-chefe da Casa Civil).
No caso do Republicanos — do qual o senador Flávio Rachadinha se desfiliou para organizar a
mudança do pai para Patriota,
que acabou não
acontecendo — o dono do partido, Marcos Pereira, está
oficialmente no governo, mas mantém uma distância regulamentar de Bolsonaro.
Ao contrário de Ciro Nogueira, ele nunca quis assumir um ministério e
preferiu manter a imagem de neutralidade e as portas abertas para uma possível
aliança com Lula.
O paraibano Hugo Motta, líder do Republicanos
na Câmara, nutre simpatia histórica pelo PT, assim como o comando do diretório
no Maranhão, que já foi associado ao governador Flávio Dino, do PCdoB.
A seção de Minas sonha com a candidatura de Rodrigo Pacheco (lançada
pelo PSD de Kassab) e lideranças do Rio Grande do Sul estimulam
uma candidatura de terceira via.
Se o clima de traição já estava no ar, a decisão do STF
de suspender a execução das emendas do relator do chamado orçamento paralelo deixou
o governo ainda menos atraente aos olhos do Centrão. A fragilidade da
coalizão que sustenta Bolsonaro ficou clara durante a votação da PEC
do Calote, cuja aprovação em segundo turno só foi possível depois de o réu
que preside a Câmara ameaçar cortar o ponto de parlamentares faltosos e não
pagar emendas já negociadas em votações anteriores, além de condicionar a
liberação de novos recursos ao “sim” no painel eletrônico.
Com a suspensão das emendas de relator, a tendência é que o
acesso aos cofres públicos — que é o que verdadeiramente interessa ao Centrão
— fique mais difícil, e a disposição do bloco para trair o governo cresça na
mesma proporção. Mas a cúpula do Congresso (leia-se Lira e Pacheco)
não jogaram a toalha. Suas excelências articulam para manter ocultos os patronos
e os beneficiários das emendas imorais de 2020 e 2021. A justificativa é a de
que não dá mais para dar nomes aos bois, ou seja, apontar quem já foi
beneficiado pela maracutaia (que foi usada, inclusive, para a eleição de Lira
à presidência da Câmara).
O argumento não se sustenta. O Estadão teve acesso a uma
planilha com quase 300 parlamentares que deram destinações discricionárias a
riso de dinheiro público, valendo-se das famigeradas "emendas de relator".
Se o jornal obteve tais informações, é impossível que o Congresso não seja
capaz de as obter. É inaceitável que o Congresso acoberte essa falcatrua.
Para se desvencilhar da roupagem de político do baixo clero
metido em escândalos, Lira encarregou Mario Rosa de
escrever seus discursos. O consultor de comunicação, que já prestou assessoria
ao petista Fernando Pimentel (ex-governador de MG) e atende Ciro Nogueira,
sócio de Lira no comando do Progressistas, convenceu o presidente da Câmara,
que não se preocupava com a própria aparência, a não se apresentar em público a
barba por fazer e usando roupas de jagunço, além de orientá-lo a posar como um
político cumpridor de acordos, que respeita as regras do jogo — ou, na
definição de Nogueira, "que trabalha
enquanto os outros dormem".
Quem conhece bem a trajetória de Lira sabe que ele chegou
a figurar como réu em duas ações no STF, uma sob acusação de ter
recebido propina de um ex-dirigente da CBTU e outra no chamado “Quadrilhão
do PP”, acusado de receber R$ 2,6 milhões em vantagens indevidas
pagas por empreiteiras. Numa decisão para lá de incomum, a colenda 2ª Turma
do STF rejeitou a denúncia que a própria corte havia aceitado em
2019 contra o deputado e a cúpula de seu partido. No ano passado, Lira também
foi denunciado pela PGR por suposto recebimento ilícito de R$ 1,6
milhão da construtora Queiroz Galvão. Mas, em outro movimento nada
usual, a PGR pediu a rejeição da denúncia que ela própria havia enviado
ao Supremo.
Segundo o MP-AL, Lira enriqueceu quando era deputado
estadual, operando com outros parlamentares um esquema de rachadinhas parecido
com o da dupla Flávio
Bolsonaro/Fabrício Queiroz. Ele trava uma intensa disputa contra uma
condenação por improbidade administrativa na esfera cível — nos últimos meses,
aliás, o parlamentar liderou com mão de ferro o esforço da Câmara para aprovar
mudanças na lei de improbidade que aliviam as sanções para políticos. Entre
2001 e 2007, ele registrou uma movimentação bancária de mais de R$ 9,5
milhões.
A julgar pelas acusações, Lira seria a personificação do
político brasileiro, que se vale do cargo para se dar bem na vida. Logo, seu
vasto poder não é exatamente fruto de noites em claro. Quanto a essa
irrefutável constatação, não há rebranding de imagem que dê jeito.
Mais do que primeiro-ministro, o "rei Arthur" funciona como articulador do governo junto à oposição. Ele conversa com
partidos como PT, PDT e PSB para conseguir acordos em
votações sensíveis ao governo, como a própria PEC do Fura-Teto. “Todas
as vitórias do governo na Câmara, hoje, na verdade, são vitórias de Lira",
diz o deputado Luiz Teixeira Jr., do Progressistas do Rio.