quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

COM A CARA DESTE GOVERNO



Durante seu périplo pelo Oriente Médio, Bolsonaro jactou-se de que o Enem estava ficando com "a cara do governo", numa evidente alusão a certa pasta ideológica que, durante a atual (e funesta) gestão, já foi comandada por quatro incompetentes diferentes, cada qual pior que o anterior, e que, de tão árida de ideias, ecoa o raciocínio tortuoso do mandatário, segundo o qual o fato de as questões da prova reproduzirem a merdeira pseudoconservadora do atual governo seria motivo de comemoração.

O "mito" dos apalermados raciocina errado por linhas tortas, mas acabou acertando uma, ainda que indiretamente: o Enem ficou realmente com a cara de um governo dotado do toque de midas às avessas, que transforma em merda todas as políticas públicas e marcos civilizatórios em que resolve tocar.

Por achar que deveria ter um programa social com "a sua cara" (imaginem o tormento, para quem padece de insegurança mórbida e incompetência patológica, pagar mês sim, outro também, um benefício "com a cara de Lula"), Bolsonaro substituiu o Bolsa Família por um programa à sua imagem e semelhança: provisório, improvisado, acoxambrado, eleitoreiro e com maldades desnecessárias embutidas, como desvincular o pagamento da exigência de vacinação infantil. Mas não foi só.

Para deixar com "a sua cara" o PNI (programa nacional de imunizações), que já foi um dos melhores do mundo, não bastava o capitão conspirar contra a aquisição de vacinas e pôr em cheque a eficácia dos imunizantes (pelo menos daqueles que não pagavam propina), chegando mesmo a dizer que as pessoas que se vacinavam corriam risco de contrair AIDS. Era preciso ainda esculhambar as demais campanhas de vacinação — que já sofrem com uma adesão cada vez menor — para deixá-las cada vez mais com "a cara deste governo".

Para colocar em prática o programa “meu governo, minha fuça”, o sultão do bananistão resolveu implodir a tal da responsabilidade fiscal — que vinha sendo construída a duras penas desde o governo Itamar. E para aprovar a PEC do Calote (que é seguramente a maior excrescência fiscal já votada no Congresso, mas que vai sendo aceita bovinamente pelos parlamentares, pelo TCU e por outros cúmplices do Executivo) vale até comprar o apoio dos servidores públicos mediante a promessa de um reajuste salarial eleitoreiro. 

Paulo Guedes, ora na "versão clone" do suserano a quem presta vassalagem, engole mais essa com um sorriso nos lábios, embora a pedalada vá de encontro àquilo que ele sempre defendeu. Isso sem mencionar o meio ambiente: a Amazônia, que não pega fogo porque é úmida, arde feito o inferno — talvez para ficar com "a cara do presidente".

Poucas coisas são mais "a cara do governo" que o massacre documentado pelo "Fantástico" do último domingo, que, atendendo a um pedido de socorro dos ianomâmis, mandou uma equipe para filmar as crianças desnutridas, o povo consumido pela malária e pela ameaça concreta do garimpo ilegal. Ninguém precisa pedir DNA de mais esse desmonte. Afinal, antes mesmo de ser eleito o despresidente disse o que pensava da pauta indígena. O Brasil que derrete, queima, sangra e morre é a cara do Bolsonaro.

Voltando ao enlace mencionado no início desta conversa, o interesse do "noivo" mensaleiro no casamento de conveniência é usar o "mito" como puxador de votos para aumentar a bancada do PL, mas, ao mesmo tempo, torcer pela vitória do Lula. O ex-presidiário (falo do mensaleiro Costa Neto, não do "ex-corrupto" de nove dedos) quer replicar, mesmo que com números menos vistosos, o "espetáculo do crescimento" obtido por seu partido na esteira do bolsonarismo. As expectativas são menores devido ao desgaste da antipolítica do próprio presidente e dos nomes de perfil histriônico que pegaram carona em sua eleição, mas ainda assim uma bancada de 60 deputados multiplicaria o montante do PL nos fundos partidário e eleitoral e no tempo de TV.

O cômputo das verbas e do tempo de TV é feito a partir dos deputados eleitos. Portanto, se o inevitável divórcio ocorrer logo após as eleições, Valdemar poderá defenestrar aqueles que não se sentirem confortáveis, por exemplo, caso Lula vença e o PL adentre sua base aliada — algo que está nos planos do cacique do partido. Aliás, a vitória do molusco seria o melhor cenário, pois ele e Costa Neto são velhos amigos, ambos cumpriram pena, e o petista é mais previsível e mais fácil de compor pela classe política, sobretudo o Centrão. Demais disso, caso o casamento com Bolsonaro realmente aconteça (o que não está assegurado), a perda de deputados não deverá ir além de 5 ou 6 dos atuais 43, o que deve ser largamente compensado pelo ingresso dos puxa-sacos do capetão, hoje dispersos em outros partidos.

Como se vê, na política não se dá ponto sem nó.

Com Vera Magalhães