A penúltima crise produzida pelo ogro que alguns chamam de "mito" foi tratar a Anvisa como um conciliábulo e declarar aberta a temporada de caça às bruxas — consequência da impunidade a ele assegurada por Augusto Aras, na PGR, Arthur Lira, no comando da Câmara, e ministros pusilânimes ou lenientes do STF e do TSE, que, por alguma razão, não viram razão para tomar uma atitude, digamos, mais assertiva, nem mesmo depois dos discursos eminentemente golpistas de 7 de setembro.
Tanto o Judiciário quanto o Legislativo deveriam explicar por que garantem impunidade a um gestor que produz provas contra si mesmo toda vez que abre a boca (para espalhar fezes, como disse o senador Omar Aziz, depois de ser chamado pelo sultão do bananistão de “cara de capivara”). Como não explicaram, a ausência de punição produziu um fenômeno político novo: a lamentação depois do fato.
Todos os brasileiros de bom senso lamentam que Bolsonaro tenha tratado a Anvisa como um antro de bruxarias numa live. E quem ainda dispõe de dois neurônios minimamente funcionais lastima também que apoiadores do sultão do bananistão se tornem perseguidores, forçando a direção da Anvisa a pedir proteção policial e renovar a requisição de investigação contra os caçadores de bruxas.
Em meio a tanto lamento, perde-se a noção do essencial: Bolsonaro instalou no Brasil uma espécie de manicomiocracia — um regime maluco em que servidores que cumprem o dever funcional de avaliar e aprovar vacinas são perseguidos por quem deveria homenageá-los. Não há justificativa plausível para a perseguição. Mas um caçador de bruxas não precisa justificar nada. Basta apontar o dedo e soltar os cachorros.
Costuma-se dizer que as instituições estão funcionando no Brasil. Mas essa afirmação é colocada em dúvida a cada novo surto de Bolsonaro. A PGR se limita a abanar o rabo para a insanidade; a cúpula do Congresso se esfrega no balcão de emendas; o Supremo late de vez em quando, mas não morde.
A impunidade transforma a insanidade do mandatário num processo de desmoralização institucional. Bolsonaro deixou de ser um
presidente de reações imprevisíveis para se tornar um presidente tristemente previsível: depois de converter a alvissareira aprovação de uma vacina infantil contra a Covid
num problema, sua insolência decidiu encrencar novamente com o Supremo.
O ministro Lewandowski intimou o governo a
fornecer, em 48 horas, explicações sobre a inclusão da vacina infantil no Plano
Nacional de Imunização. Em resposta, o governo pediu mais tempo. Enquanto a AGU
preparava a resposta ao Supremo, o mandatário-suserano e seu ministro-vassalo da Saúde — uma patética versão 2.0 do anterior, e igualmente seguidor da norma
explícita segundo a qual "um manda e o outro obedece" — jogavam lenha na
fogueira.
Durante mais um passeio pelo litoral paulista, ao dizer que
é o pai quem decide se a criança deve ou não ser vacinada, o Messias de festim cometeu
duas impropriedades: 1) esqueceu as mães; 2) difundiu a falsa
suposição de que crianças serão arrastadas a força, à revelia dos pais, para os
postos de vacinação.
Industriado pelo chefe, o bonifrate da Saúde tirou da cartola uma
consulta pública e a arguiu a necessidade de ouvir a opinião da câmara técnica de assessoramento sobre
imunização. Esquece-se o cardiologista que 1) o povo não quer ser consultado, mas orientado; 2) os técnicos da
câmara já avalizaram a vacinação das crianças de 5 a 12 anos.
Ao empurrar uma providência óbvia com a barriga, o Planalto
oferece a senha para que Lewandowski ordene a aquisição e distribuição
da vacina, o que oferecerá a Bolsonaro material novo para repetir o
velho lero-lero segundo o qual o Supremo retirou a pandemia da alçada do
governo. Já se pode antever a declaração em que o capetão dirá que governadores
e prefeitos são responsáveis pelos hipotéticos efeitos colaterais da vacina.
É tudo enfadonhamente previsível. Primeiro, Bolsonaro negou a pandemia. Era "alarmismo" da mídia. Depois, negou o vírus. Provocaria apenas uma "gripezinha". Na sequência, negou a vacina, que transformaria os "maricas" em "jacarés". Chegou mesmo a negar os mortos — esgrimindo documento falso do TCU e incitando seus devotos a invadirem hospitais — e o passaporte da vacina — sob o argumento de que é preferível morrer a perder a liberdade. Agora, nega necessidade de imunizar as crianças. Não é por acaso que a maioria dos brasileiros sinaliza nas pesquisas a intenção de negar votos ao negacionista.
O Brasil amarga duas patologias: a da Covid e a do ódio.
Contra a primeira, o remédio é a vacina. Contra a segunda, há dois velhos
imunizantes à disposição: sensatez e moderação. Bolsonaro não dispõe de nenhum
dos dois.
Sempre que uma oportunidade de baixar a temperatura política lhe bate à porta, o capetão reclama do barulho. E eleva a fervura.
Estimula divisões. Submetidos à sua dinâmica, cidadãos não se enxergam, não se
ouvem. Tratam-se como inimigos. Muitos começam a se dar conta de que não são
rivais. São brasileiros.
O lógico seria que, depois de eleito, o amálgama de mau soldado e parlamentar medíocre virasse um presidente de todos, inclusive dos que não votaram nele. Mas ele sempre
fez questão de governar para um terço da população, espalhando raiva e
desinformação.
Sem enxergar nada de muito atraente à sua frente, um pedaço
do eleitorado observa o retrovisor. Materializa-se na política brasileira um
fenômeno descrito no mesmo livro de Eclesiastes, no capítulo 1,
versículo 9. Diz o seguinte: "O que foi tornará a ser; o que foi feito
se fará novamente; não há nada novo debaixo do Sol."
Ao apostar na divisão, Bolsonaro como que convidou o eleitorado a reviver 2018 no ano de 2022, só que com o sinal trocado. O antipetismo ficou menor do que o antibolsonarismo. Estalando de pureza moral, o ex-presidiário de Curitiba, ora beneficiado pela anulação de sentenças por questões processuais, fala em ressurreição.
A pretexto de ironizar o jantar em que Lula e Alckmin
desfilaram juntos, Bolsonaro deixou-se filmar dançando funk a bordo de uma lancha. A canção tem a suavidade de um porco-espinho. Num
trecho, compara mulheres de esquerda a cadelas. Os filhos do presidente e seus
devotos bolsonaristas cuidaram de espalhar as imagens pelas redes sociais.
A aparência de despreocupação se desfez em outras postagens
dos filhos do presidente. Carlos e Flávio reproduziram um vídeo
da campanha de 2018 em que Alckmin declara que, "depois de ter
quebrado o Brasil, Lula diz que quer voltar ao poder", para "voltar
à cena do crime." Em outro post, Eduardo perguntou por que Alckmin
"se aproxima de um condenado".
Os membros da família da rachadinha confundem amnésia com consciência limpa. Esquecem de lembrar — ou lembram de esquecer — que na mesma campanha de 2018 Bolsonaro agradeceu a Alckmin por ter "unido" em sua coligação "a escória da política".
Estavam
com Alckmin o PL de Valdemar Costa Neto, estrela do
escândalo do mensalão; e o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira,
destaques do petrolão. Hoje, o PL é o partido de Bolsonaro, e o PP
tomou de assalto o Gabinete Civil e o balcão das emendas em troca segura os
pedidos de impeachment contra o presidente.
O ano de 2022 mal começou e já exala um insuportável fedor
de podre. O Brasil testemunhará uma campanha eleitoral violenta e suja. As
ideias dos candidatos ainda não estão claras. Por ora, a única certeza
disponível é a seguinte: seja quem for o próximo presidente, o Centrão estará
fechado com ele.
Bom ano novo a todos.