Em setembro do ano passado, Jair Bolsonaro chamou o ministro Alexandre de Moraes de “canalha” e avisou que não iria cumprir suas decisões. Intimado por Moraes a depor, Bolsonaro não deu as caras. Se a única resposta à desobediência for o processo por crime de responsabilidade, como previu o ministro Luiz Fux há quatro meses, o Supremo flerta com a desmoralização. Há no gavetão de pendências do réu que preside a Câmara mais de 140 pedidos de impeachment. Remunerado por um orçamento secreto que recebeu o aval da própria Corte, o Centrão, em vez de derrubar o mandatário de fancaria, prefere controlar o cofre.
Mas tem mais: Segundo apurou a CPI do Genocídio, o capitão deu de ombros para a denúncia feita pelo deputado Luís Miranda e seu irmão, Luís Ricardo, que flagrou a tentativa de pagamento antecipado de US$ 45 milhões pela vacina indiana Covaxin. Diante do escândalo, o ministro Onyx Lorenzoni e o coronel Elcio Franco, número 2 da gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde, acusaram os irmãos Miranda de usar uma nota fiscal falsa. Quando se soube que o documento era autêntico, alegou-se, que Bolsonaro avisara Pazuello sobre os malfeitos às vésperas da saída do general do ministério da Saúde. Não convenceu. Informou-se na sequência que o ministro demissionário encarregara seu segundo de tomar providências. Com a velocidade de um raio, Franco constatou que não havia irregularidades na compra das vacinas que custariam R$ 1,6 bilhão ao governo. Posteriormente, alegando “irregularidades insanáveis”, o ministro Marcelo Queiroga anunciou a anulação do contrato.
Agora a cereja do bolo: O delegado federal William Marinho chegou à inusitada conclusão de que presidente da República não comete crime de prevaricação quando ignora uma denúncia de corrupção que lhe chega ao conhecimento, podendo ser acusado, no máximo, de descumprir um "dever cívico". No final de um processo com mais de 2 mil páginas, o policial — que dispensou até o depoimento de Bolsonaro — anotou que “não faz parte do "dever funcional do presidente comunicar eventuais irregularidades de que tenha tido conhecimento a órgãos de investigação como a Polícia Federal”. Em prevalecendo essa posição, ficará entendido que todo funcionário público tem o dever de agir quando souber de irregularidades, sob pena de prevaricar. Mas o presidente, servidor número um do país, pode ignorar os malfeitos ao redor. Não será acusado senão de desatenção com o seu "dever cívico".
Não é que o crime não compensa. A questão é que, quando compensa, é chamado de descuido cívico.
Do Gênesis bíblico à teoria do Big Bang, diversos povos construíram versões próprias da origem do universo. Na maioria delas, o Caos é tido como uma matéria sem forma definida, mas nenhuma delas menciona que foram os políticos que criaram tanto o caos quanto a corrupção.
Não sei como eram as coisas por aqui antes
da chegada
de Cabral e sua trupe, mas sei que o primeiro registro de corrupção em
solo tupiniquim foi anotado por Pero Vaz de Caminha no último
parágrafo de sua “Carta
de achamento do Brasil”, quando o escriba rogou ao rei de Portugal que intercedesse
pelo marido de sua única filha.
Também não sei qual foi a duração
do castigo imposto ao genro de Caminha, ou mesmo se D.
Manuel atendeu seu pedido (uma vez transitada em julgado, a sentença
só podia ser comutada pelo monarca, que tinha poderes previstos em lei para
conceder indulto aos apenados). Mas sei que a epístola foi subscrita em 1º de
maio de 1.500, de modo que essa é a data em que a praga da corrupção foi
semeada na terra em que “em
se plantando tudo dá”. E como deu!
Mem de Sá, governador-geral do Brasil
entre 1558 e 1572, foi acusado de enriquecimento ilícito, e o governador
da capitania do Rio de Janeiro, de cobrar
propina dos mercadores de escravos que saíam da África rumo ao Rio
da Prata e lá paravam para abastecer. O contrabando foi, de longe, a prática
ilícita que mais lucro deu às “elites”, e El-Rei fazia vistas grossas,
já que a corrupção tinha efeito benéfico para Portugal. Talvez os hábitos
nacionais fossem outros se o Brasil tivesse sido
“descoberto” pelos ingleses ou se a
colonização do nordeste pelos holandeses tivesse prosperado.
Embora seja um problema mundial, a corrupção teve maior
destaque no Brasil-colônia, onde as “elites” se especializaram em passar a
perna nos portugueses — que só apareciam para cobrar impostos e barrar a iniciativa
privada. Como o que menos presta costuma ser o
que mais dura, os políticos de hoje continuam praticando os mesmos atos
espúrios que seus antepassados praticavam no século XVI.
A corrupção continua firme e forte porque está profundamente
enraizada na sociedade. Em setembro do ano passado, referindo-se à economia
mundial, Bolsonaro nos ensinou que “não
há nada tão ruim que não possa piorar”. Seu governo (ou desgoverno,
melhor dizendo) é a prova provada de que ele está coberto de razão. Até porque
os estratagemas usados pela elite colonial persistem até hoje nas práticas
ilícitas daqueles que se dizem representantes do povo — haja vista o mensalão
petista e o “orçamento secreto” da atual gestão, como já foi detalhado em outras oportunidades.
Até 2019, apenas duas ações penais da Lava-Jato haviam sido julgadas no Supremo. Numa delas — que investigou a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e seu ex-marido, Paulo Bernardo —, os réus foram absolvidos. Por 3 votos a 2, prevaleceu o entendimento de que os elementos eram “apenas indiciais”, sem comprovação efetiva.
Quando condenaram o primeiro parlamentar no âmbito da Lava-Jato —
o deputado federal Nelson Meurer —, os supremos togados
declararam a extinção de punibilidade de Cristiano Augusto Meurer,
filho do dito-cujo, por prescrição. Entenderam os eminentes ministros que a
única conduta que geraria a sanção penal seria de junho de 2008, e que o Estado
já não teria mais o direito de puni-la.
Segundo matéria
publicada na revista Exame em março de 2019, quando a Lava-Jato
colocou o ex-presidente Temer atrás das grades, o único ex-mandatário
da “Nova República” que não corria risco iminente de ir parar na cadeira
era Fernando Henrique (em que pese o escândalo
da compra de votos pela aprovação da PEC da Reeleição).
Naquela época (bons tempos, aqueles), Lula estava
cumprindo pena em Curitiba, Sarney era alvo de duas denúncias
no âmbito da Lava-Jato; Collor respondia a sete
inquéritos no STF (e havia se tornado réu num deles em 2017); Dilma era
ré por corrupção e lavagem de dinheiro; e o vampiro do Jaburu, tetra réu (duas
vezes no Rio, uma em São Paulo e outra no DF). E deu no que
deu.
Depois que o Legislativo deixou de ser
confiável — dado o número significativo de deputados e senadores que, mesmo
enrolados na Justiça, continuavam (e continuam) transitando livremente pelos
corredores do Congresso —, o Judiciário se tornou o último
bastião dos brasileiros de bem. Mas alegria de pobre dura pouco, diz o ditado,
e também deu no que deu.
Cooptado pela “maritaca
de Diamantino”, o STF formou maioria para exumar
e ressuscitar uma jurisprudência que vigeu durante míseros 7 anos ao longo das
últimas 8 décadas. Em novembro de 2019, graças ao voto de Minerva do
então presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, ficou decidido
que condenados em segunda instância que deveriam
permanecer em liberdade até o trânsito em julgado de suas sentenças.
Com quatro instâncias e um formidável cardápio de recursos,
apelos, embargos e toda sorte de chicanas criadas sob medida para impedir que
corruptos poderosos vejam o sol nascer quadrado, o trânsito em julgado da
condenação de corruptos de alto coturno só se dá (e quando se dá) no Dia
de São Nunca. Para piorar, na improvável hipótese de um caso fugir à regra,
sempre haverá um magistrado de bom coração pronto a conceder de ofício um alvará de
soltura “por razões humanitárias” (como
Dias Toffoli concedeu a Paulo Maluf)
Nossas leis são criadas pelo Congresso Nacional,
que é formado pela Câmara Federal (composta por 513 deputados)
e pelo Senado da República (composto por 81 senadores). Em
2017, nada menos que 238
parlamentares eram investigados ou respondiam a processos no STF. E quando
são as raposas que tomam conta do galinheiro e investigam eventuais sumiços de
galinhas.... Deu pra entender ou quer que eu desenhe?
A corrupção é um problema endêmico, mas o fato de sermos obrigados a conviver com essa dura realidade não significa que devamos aceitá-la passivamente. Lula não aceitava. Tanto que fundou o PT para implementar “uma maneira diferente de fazer política”. Faltou combinar com a quadrilha do Mensalão. Quando a roubalheira veio à público, o guerrilheiro de araque José Dirceu, então braço direito do picareta dos picaretas, disse em entrevista ao Roda-Viva: “Este é um governo que não rouba, não deixa roubar e combate a corrupção“.
Pausa para as gargalhadas (ou para as lágrimas, a critério do freguês).