quarta-feira, 2 de março de 2022

AINDA SOBRE OS BASTIDORES DA INVASÃO

 

A pandemia de Covid ainda não acabou, mas as menções a ela nos noticiários vêm escasseando desde que o caldo entornou no leste europeu. Do surto de H3N2, então, já não se ouve um pio. Sobre Bolsonaro, pipocam aqui e acolá manifestações de repudio a seu alinhamento com Putin (que alguns chamam de "indecisão" ou "falta de posicionamento"). Dizem às más-línguas que ele está de mudança para o PSDB — ficar em cima do muro, no cenário político-partidário tupiniquim, é coisa de tucano —, já tem até gente jurando que o viu de braço dado com Aécio Neves.

Observação: Segundo O Antagonista, Sergio Moro postou no Twitter: “Venezuela, Nicarágua e Cuba apoiam a agressão Russa à Ucrânia. Alinhados com estas ditaduras estão também Bolsonaro e o PT. Nós estamos do outro lado. Não apoiamos a guerra, a violência, as ditaduras e o autoritarismo. E você?

A invasão da Ucrânia já resultou na morte de centenas de militares e civis, tanto do lado invasor quanto do invadido. Putin disse que a imprensa internacional mente, que sua "operação militar" poupa vidas civis, mas, entre outras atrocidades, a Rússia bombardeou uma maternidade ucraniana.

Na manhã da última segunda-feira (28), Volodymyr Zelensky disse que a delegação de seu país “não impôs precondições” para o começo das conversas, mas exigiu que aviões, helicópteros e mísseis em Belarus permanecessem em terra até o retorno dos representantes ucranianos. Até então, o ucraniano relutava em negociar naquele país (que é aliado à Rússia), mas acabou cedendo depois que Putin pôs em alerta suas forças nucleares em resposta às retaliações econômicas aplicadas pelos Estados Unidos e a União Europeia.

Observação: Falando em aviões, no último domingo, após uma série de desmentidos, foi confirmada a destruição do Antonov An-225 (que até então era o avião do mundo) num importante centro aeronáutico em Gostomel, a 40 km da capital da Ucrânia. 

Também nesta segunda-feira teve início a sessão emergencial da Assembleia Geral da ONU (é a primeira vez desde 1982 que esse instrumento é utilizado). A Rússia foi contra a convocação (para surpresa de ninguém), mas não pôde usar seu poder de veto como fez no Conselho de Segurança. A ofensiva contra o país vizinho deve ser rechaçada pela maioria dos 193 membros (bastam dois terços de votos a favoráveis à Ucrânia para condenar a sandice do presidente russo, mas a decisão não é vinculativa, conquanto tenha peso político).

Mario Sabino diz que Putin acha que cercou Kiev, mas foi Zelensky que cercou Moscou. Diante da derrota moral, da ruína econômica que se avizinha e do risco nuclear, a Rússia tem de enxotar o carniceiro do Kremlin — que esperava fazer uma blitzkrieg na Ucrânia, mas encontrou uma resistência feroz, comandada por um presidente que conta hoje com a aprovação de 94% dos ucranianos e se tornou um símbolo de coragem e resiliência para os seus compatriotas e para o mundo. O Ocidente, temeroso de uma guerra prolongada que também lhe seria custosa, ofereceu-lhe uma rota de fuga, mas ele se recusou a abandonar a luta, como Putin esperava que fizesse — e, com o seu comportamento inspirador e impressionante capacidade de comunicação nas redes sociais, obrigou os líderes ocidentais a mostrar os dentes para a Rússia, seja na forma de sanções econômicas mais duras do que as previstas, seja por meio de ajuda militar efetiva.

Ainda que o rolo compressor russo atinja os seus objetivos militares, já está claro que os ucranianos, entre militares e civis, não se dobrarão aos invasores. Na Europa, a cifra fornecida por Kiev — de que os ucranianos mataram 3.500 soldados russos em cinco dias de conflito —, antes considerada mera propaganda, começou a ser levada a sério. A título de comparação, em 10 anos de guerra, os russos perderam 14,5 mil homens no Afeganistão.

Com um simples celular, Zelensky, um ex-comediante subestimado no Kremlin e no Ocidente, derrotou Putin e a sua máquina de censura e fake news. O carniceiro perdeu a batalha de comunicação, como demonstram as manifestações de rua (que vêm ocorrendo nos países ocidentais e na própria Rússia), os boicotes esportivos de imensa repercussão e as sanções ocidentais aos canais de notícias falsas patrocinados pelos russos, que vinham operando livremente no Ocidente. O mundo livre e moderno constata a diferença entre um presidente que transmite de lugares públicos de Kiev e sabe se comunicar pelo Twitter (quase 4 milhões de seguidores neste momento) e pelo Instagram (quase 13 milhões de seguidores), e outro presidente isolado no cavernoso Kremlin e que faz uso apenas de uma TV estatal — que lhe é inteiramente submissa —, da censura e das fake news. 

Putin, de olho em sua biografia, vê a perda da Ucrânia como inadmissível, mas deve estar se mordendo ao ver Zelensky se tornar um herói mundial, o líder forte e corajoso que se eleva moralmente sobre o pária russo (o que torna o destino do ucraniano ainda mais precário e a situação de seu país ainda mais preocupante). Ex-agente da KGB e no comando da segunda maior potência bélica do planeta, o russo achou que poderia cancelar a Ucrânia como nação com um discurso montado numa retórica velha da época da Guerra Fria, mas acabou fortalecendo o sentimento nacional ucraniano expresso admiravelmente pelo presidente ex-comediante. 

Hoje, enquanto a Ucrânia é objeto de solidariedade e ajuda financeira e militar, a Rússia se vê sob um genocida sanguinolento que, roído pela vaidade, pela inveja e pela vingança, ameaça não apenas a Ucrânia, mas a humanidade como um todo, ameaçando lançar mão de armas nucleares para liquidar um mundo que não reflete a imagem que ele acha que tem.

Só há um caminho a seguir para a Rússia depois dessa degradação da imagem do país: derrubar o carniceiro. Zelensky é um líder admirável na sua modernidade; Putin é um ditador covarde e perigoso no seu anacronismo, e foi longe demais para que a sua palavra possa ser crível em qualquer negociação.