O indulto individual (ou “graça”) concedido a Daniel Silveira tem um viés claríssimo de desvio de finalidade, já que fere os princípios da impessoalidade e da moralidade. Se esta republiqueta de bananas fosse um país sério, só o fato de o beneficiado ser aliado do mandatário e amigo do clã presidencial tornaria o ato inconstitucional, nulo de pleno direito e, consequentemente, sem efeito. Mas estamos no Brasil, onde a inelegibilidade chapada do ex-presidente-presidiário no pleito de 2018 precisou ser discutida por meses a fio e decidida pelo plenário do TSE, embora um servidor do cartório eleitoral pudesse ter dito exatamente a mesma coisa em menos de dois minutos.
O esbirro agraciado pelo capetão é ex-PM. Antes de entrar para a polícia, ele trabalhou como cobrador de ônibus e se valia de atestados médicos falsos para faltar ao serviço. Durante os seis anos que passou na corporação, puxou 26 dias de xadrez e colecionou 14 repreensões e duas advertências. Um sujeito assim podia ser enviado para muitos lugares, exceto para o Congresso.
Ao condenar Silveira, o Supremo usou o caso para cientificar o bolsonarismo petulante de que seus excessos, quando descambam para o ódio e passam a ameaçar a democracia, dão cadeia. O aviso foi extensivo ao Legislativo, onde o Conselho de Ética da Câmara já havia aprovado a suspensão do parlamentar por seis meses e o cumprimento dependia apenas do aval do plenário, mas o réu que preside a Casa, movido a orçamento secreto e rendido às conveniências de Bolsonaro, não incluiu a encrenca na pauta de votação.
A cassação do mandato transformou em piada a ideia de premiar Silveira com uma folga hipertrofiada de seis meses. Lira encaminhou ao STF uma petição sustentando que a última palavra sobre a cassação cabe à Câmara, não à Corte. Um detalhe adiciona escárnio no teatro: réu, Lira manobra para proteger um condenado que avilta o Legislativo cada vez que cospe na democracia que alimentou suas pretensões políticas.
Bolsonaro e seus devotos apostavam que o ministro André Mendonça pediria vista do processo, engavetando-o por tempo suficiente para que o réu chegasse até as urnas de outubro. Deu errado. Além de não travar o julgamento, o ministro "terrivelmente evangélico" compôs a maioria, isolando-se apenas quanto à dosimetria da pena. Já Nunes Marques, descrito por Bolsonaro como "10% de mim dentro do Supremo", votou pela absolvição. Segundo ele, Silveira teria pronunciado "bravatas" sem "credibilidade", coisas "incapazes de intimidar quem quer que seja".
Cármen Lúcia ironizou o voto do colega. Disse que, se o Supremo aguardasse pela concretização das ameaças, o julgamento de Silveira não ocorreria, pois o deputado arguiu a suspeição de nove dos 11 ministros da Corte. Se prevalecesse o entendimento de Nunes Marques, o réu seria apenas um inofensivo neurótico que constrói castelos no ar.
PDT, Rede e Cidadania protocolaram ações no Supremo, e parlamentares de partidos como PSOL, MDB, PT e da própria Rede entraram com Projetos de Decreto Legislativo para anular o ato de Bolsonaro no Senado e na Câmara. Resta saber como o plenário se pronunciará. Em análise preliminar, as togas concluíram que o decreto não alivia todas as aflições do deputado, já que não anula a cassação do mandato e a inelegibilidade que o impedirá de concorrer ao Senado.
Nesse entretempo, Silveira afronta a Corte desfilando pelo Congresso sem tornozeleira. Questionado por jornalistas, o parlamentar disse que "nem era" para ele ter utilizado o equipamento. Segundo a Gazeta do Povo, o ministro Alexandre determinou que a defesa do réu se manifeste sobre o indulto e indicou a possibilidade de impedir a concessão imediata do perdão caso a PGR recorra da condenação.Se o indulto individual está previsto na legislação brasileira, por que nenhum presidente tinha utilizado esse instrumento sob a Constituição de 1988? Para a socióloga Amanda Evelyn, a resposta está no custo político de desrespeitar o STF e no risco de iniciar uma crise institucional, mas no governo Bolsonaro essa crise existe desde o princípio. O indulto é a cereja do bolo, disse Evelyn em entrevista à Folha. “O presidente precisa confrontar, precisa dar resposta, precisa se posicionar.”
Contribuiu para jogar mais lenha na fogueira o ministro Barroso ter dito que as FFAA estariam “sendo orientadas a atacar o processo [eleitoral] e tentar desacreditá-lo”. O comentário gerou forte reação dos militares, que o qualificaram de “ofensa grave” — um estrelado chegou mesmo a afirmar que o magistrado teria cometido crime militar — como se passar pano para o Bolsonaro fosse a coisa mais natural desse mundo.
Bolsonaro vem agindo como uma criança birrenta, que faz o diabo para testar os limites da paciência paterna. Já flertou, namorou e noivou com o autogolpe inúmeras vezes. Se o casamento ainda não aconteceu, foi por mera falta de oportunidade. O "mito" que afundou o Brasil e contribuiu para a morte de 660 mil cidadãos foi acusado de inúmeros crimes (comuns e de responsabilidade), mas comprou (com o orçamento secreto) os favores do réu que preside a Câmara e das marafonas do Congresso e prometeu o reino dos céus, em troca da vassalagem, ao passador-de-pano-geral da República.
Em sua penúltima aleivosia, Bolsonaro afirmou que "Não podemos jamais ter eleições no Brasil que sob ela paire o manto da suspeição. E esse compromisso é de todos nós, presidentes dos Poderes, comandantes de Força, aqui obviamente direcionado ao trabalho do senhor ministro da Defesa".
Cabe perguntar: desde a redemocratização e a primeira eleição direta à Presidência da República, em 1989, qual o pleito que "pairou o manto da suspeição?" Nenhum! Mais ainda: o que dizer que, além dos três Poderes, temos também as "Três Armas"? São seis os Poderes? Bolsonaro é o Montesquieu miliciano?
Na segunda-feira, Bolsonaro bradou: "Vai me prender, Alexandre"? No dia seguinte, eivado de ambiguidades, manteve os ataques ao TSE. Sem sequer ruborizar, afirmou que o ministro Barroso "convidou as Forças Armadas a participar de todo o processo eleitoral". Mas isso não é verdade. O convite foi para as FFAA participarem da Comissão de Transparência das Eleições. Quando fala em "participar de todo o processo eleitoral", Bolsonaro deixa implícito que caberá aos militares dizer se as eleições serão ou não válidas.
"As Forças Armadas não dão recados. Elas estão presentes. Elas sabem como proceder. Sabem o que é melhor para o seu povo, o que é melhor para seu país", disse o sultão no Bananistão. Se isso não for uma ameaça, então eu não sei o que poderia ser. Um chamamento ao golpe de Estado, talvez? E isso é linguagem de um presidente que respeita o Estado democrático de Direito?
Bolsonaro deixou claro pela enésima vez que não aceitará o resultado das urnas. Se perder — o que é quase que certo —, vai tumultuar ainda mais o país até o final do ano e, tudo indica, se recusar a transferir a faixa presidencial. Aguardem.