segunda-feira, 11 de abril de 2022

AS ELEIÇÕES E O DESTINO DO BRASIL

 

 

Há perguntas fáceis de fazer e difíceis de responder. Por exemplo: como alguém em sã consciência pode querer reconduzir ao Planalto o articulador do Mensalão que tropeçou no Petrolão, teve a ficha imunda lavada pela Justiça “cumpanhêra” e, de volta ao xadrez (sem trocadilho) da reeleição, se vende como o melhor mandatário desde Tomé de Souza? 

 

Outro exemplo: como alguém em sã consciência não vê que o “mito” dos bolsomínions não passa de um santo de pés de barros (e sujos), e que lhe conceder um segundo mandato é agir como o sapo da fábula do escorpião


Mais um: como votar em parlamentares que aprovam um fundo eleitoral de R$ 4,9 bi (e o Supremo diz que está tudo certo) quando 15 milhões de brasileiros não fazem três refeições por dia?

 

Uma república onde votar é um direito que o cidadão é obrigado a exercer sob pena de multa pecuniária (além de outras sanções) não é uma democracia como manda o figurino. Para além disso, nosso “eleitorado”, que jamais foi brilhante, exsuda polarização e se divide em duas facções de apedeutas fanáticos (o número de integrantes de cada facção varia conforme a empresas de pesquisas e o escopo de quem paga pela enquete). 


Diante disso, como reclamar de um Congresso onde metade dos parlamentares tem contas a acertar com a Justiça Criminal — aquela que é cega no mundo inteiro, mas no Brasil parece ser paga para não ver?

 

Isso me faz lembrar da anedota siciliana em que o pai dá ao filho uma lupara, o garoto troca a arma por um relógio com um coleguinha de escola e o pai, ao saber do fato, pergunta: “Agora, se alguém diz que tua mamma è una putanna, você faz o quê? Diz que são oito e meia?

 

Mudando da anedota para a lenda, sempre fui fã de Sherazade e admirador da obra de Malba Tahan — pseudônimo do professor de matemática e escritor carioca Júlio Cesar de Mello e Souza. Seu livro mais famoso é O homem que calculava, onde o fictício escritor árabe narra as aventuras de Beremiz Samir e brinda o leitor com uma coletânea de problemas e curiosidades matemáticas à maneira dos contos das Mil e Uma Noites


A lenda eu transcrevo a seguir integra o livro Maktub (termo que significa “estava escrito”, mas é usado para expressar o tradicional fatalismo dos muçulmanos).

 

Há muitos anos, quando voltava de Bagdá, encontrei, num caravançará (albergue) próximo a Damasco, um velho árabe de Hedjaz muito me chamou a atenção. Ele falava agitado com os mercadores e peregrinos, gesticulando e praguejando sem cessar; fumava uma mistura forte de tabaco e haxixe, e quando ouvia de um dos companheiros uma censura qualquer, exclamava, apertando o turbante esfarrapado entre as mãos ossudas:

 

— Mac Allah! (por Deus!) ó muçulmanos! Eu já fui poderoso! Eu já tive o Destino nesta mão!

 

— É um pobre diabo — diziam. — Não bate bem da bola! Que Allah o proteja!

 

Eu, porém, sentia irresistível atração pelo desconhecido, e assim procurei me aproximar dele discretamente e conquistar sua confiança, o que consegui ao cabo de poucos dias.

 

— Os homens da caravana me tomam por doido — disse-me ele certa noite, enquanto cavaqueamos a sós. Não querem acreditar que já tive nas mãos o destino da humanidade inteira. Sim, senhor: o destino do gênero humano!

 

Esbugalhei os olhos assombrado. Aquela afirmação insistente de que havia sido senhor do Destino era característica do seu pobre estado de demência. Mas ele insistiu:

 

— Segundo ensina o Alcorão — o livro de Allah — a vida de todos nós está escrita — Maktub! — no grande Livro do Destino, onde cada homem tem uma página com tudo o que de bom ou de mau lhe vai acontecer. Todos os fatos que ocorrem na terra, do cair de uma folha seca à morte de um califa, estão fatalmente escritos no Livro do Destino! Sem esperar que eu o interrogasse, ele me narrou o seguinte:

 

— Em viagem pelo deserto salvei certa vez com um velho feiticeiro que ia ser enforcado. Em sinal de gratidão, ele me deu um talismã raríssimo que possuía, uma pedra maravilhosa que permitia a entrada livre na famosa Gruta da Fatalidade, onde se acha — pela vontade de Allah — o Livro do Destino.

 

Depois de sugar longamente a piteira do seu narguilé, velho prosseguiu:

 

─ Viajei dois anos a fim de chegar à gruta encantada. Um djinn (gênio benfazejo) que estava de sentinela à porta me deixou entrar, avisando, porém, que eu só poderia permanecer na gruta pelo espaço de poucos minutos. Era minha intenção alterar o que estava escrito na página e fazer de mim um homem rico e feliz. Bastava acrescentar com a pena (que eu já levava): “Terá muito dinheiro!” Lembrei-me, porém, dos meus inimigos. Poderia, naquele momento, fazer grande mal a todos eles. Movido pela ideia única do ódio e da vingança, abri a página de Ali Ben-Homed, o mercador. Li o que ia acontecer a esse meu rival e acrescentei embaixo, cheio de rancor: “Morrerá pobre, sofrendo os maiores tormentos!” Na página de Zalfah-el-Abarj escrevi, impiedoso, alterando-lhe a vida inteira: “Perderá todos os haveres; ficará cego e morrerá de fome e sede no deserto!” E assim, sem piedade, arrasei, feri, retalhei a todos os meus desafetos!

 

— E na tua vida? — indaguei, curioso. — Que fizeste, ó muçulmano, na página em que estava escrita a tua própria existência?

 

— Ah, meu amigo! ─ prosseguiu o ancião, cheio de mágoa. — Nada fiz em meu favor. Preocupado em lazer o mal aos outros, esqueci-me de fazer o bem a mim mesmo. Agi como um miserável. Semeei largamente o infortúnio e a dor e não colhi a menor parcela de felicidade. Quando me lembrei de mim, quando pensei em tornar feliz a minha vida, estava terminado o meu tempo. Sem que eu esperasse, um efrite (gênio do mal, que se opõe ao djinn) me agarrou fortemente e, depois de me arrancar o talismã, expulsou-me da gruta. Caí entre as pedras e, com a violência do choque, perdi os sentidos. Quando recuperei a razão, achei-me ferido e faminto, muito longe da gruta, junto a um pequeno oásis do deserto de Omã. Sem o talismã precioso, nunca mais pude descobrir o tortuoso caminho da Gruta do Destino.

 

E concluiu, entre suspiros, numa atitude de profundo e irremediável desalento:

 

— Perdi a única oportunidade que tive de ser rico e feliz!

 

Seria verdadeira essa estranha aventura? Até hoje ignoro. O certo é que o triste caso do velho árabe de Hedjaz encerrava grande e precioso ensinamento: Preocupados em levar o mal a seus semelhantes, quantos homens se esquecem do bem que poderiam fazer a si próprios...

 

O que tem isso a ver com a sucessão presidencial? Nada. Ou tudo. Deixo a conclusão por conta do leitor.