segunda-feira, 9 de maio de 2022

A COREOGRAFIA DA ENPULHAÇÃO

A decisão do ministro Alexandre de Moraes de prorrogar por 60 dias o inquérito sobre violações ao monitoramento eletrônico do deputado Daniel Silveira é uma inutilidade a serviço da desmoralização do STF. Ao desprezar o uso da tornozeleira, o troglodita sapateia sobre a autoridade do ministro; ao protelar a reação, o togado transforma a ordem judicial que emitiu num fator de desmoralização de sua toga. 

Silveira descumpre também, e às escâncaras, a ordem judicial de não participar de atos políticos. Mas discursou em três atos antidemocráticos no 1º de Maio, dois no Rio, um em São Paulo. No dia seguinte — durante debate promovido pelo PTB paulista —, foi indagado sobre o adereço: “Qual tornozeleira?”, troçou o deputado, e, escorando-se em Bolsonaro: “Estou sem ela. Não existe mais nada, ainda mais depois de ter sido perdoado. [...] Presidente perdoou, acabou!

O perdão se encontra pendente de apreciação no plenário do STF, em ações relatadas pela ministra Rosa Weber. Mas o desprezo do parlamentar já produziu reações. Em petição endereçada a Moraes, a Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal pediu a devolução da tornozeleira. Recordou que o apetrecho não é gratuito. Não faz nexo pagar diárias por um equipamento desligado.

Quando o deputado se refugiou no plenário da Câmara para impedir que a PF grampeasse seu tornozelo, o ministro Alexandre determinou o bloqueio de seus bens e fixou multa diária de R$ 15 mil diários pelo tempo que durasse a desobediência: "Não só estranha e esdrúxula situação, mas também de duvidosa inteligência a opção do réu, pois o mesmo terminou por cercear sua liberdade aos limites arquitetônicos da Câmara dos Deputados, situação muito mais drástica do que àquela prevista em decisão judicial", afirmou o magistrado. Mais esdrúxula tornou-se sua situação. É como se Silveira tivesse colocado uma tornozeleira metafórica em seu algoz, cerceando-lhe a liberdade de movimentos. 

Mas o poder não aceita desaforos. E quem tem poder precisa exercê-lo na medida exata. Se exorbita, erra o alvo. Se claudica, vira o alvo. Acabou que o togado apresentou ao bolsonarista insurreto — com pelo menos 16 dias de atraso — a conta do escracho: R$ 405 mil. E mandou notificar a Câmara para proceder ao desconto da dívida no contracheque, na proporção de 25% do salário até a quitação. Resta agora ressuscitar o axioma segundo o qual ordem judicial se cumpre.

Perde seu tempo que vem acompanhando o noticiário produzido na Praça dos Três Poderes, nos últimos dias. A menos que aprecie uma coreografia desconexa, onde elefantes da República giram a redor de uma agenda fabricada por um despresidente que dá as costas para as prioridades do brasileiro. Nos penúltimos movimentos, o chefe dos togados se reuniu com o mandarim do Senado e com o ministro da Defesa. Conversaram sobre a eletrificação da democracia e o risco de crise institucional, como se não se dessem conta de que o Brasil real está em outra dimensão.

ObservaçãoApós a reunião com Fux, Pacheco disse considerar "anomalias graves" — como declarações sobre intervenção militar, fechamento do STF ou frustração de eleições — precisam ser combatidas e contestadas "a cada instante".  O jornalista e colunista Valdo Cruz escreveu no g1 que Fux decidiu buscar no Senado o apoio necessário para tentar "esfriar" e contornar a crise provocada por Bolsonaro. Após a conversa, o STF informou, em nota, que Fux e Pacheco falaram sobre o compromisso de ambos para a harmonia entre os poderes, com o devido respeito às regras constitucionais.

São três os principais tópicos da agenda que desafia a sanidade nacional: 1) A discussão sobre a segurança de urnas eletrônicas que funcionam há 26 anos sem jamais ter apresentado um mísero caso de fraude; 2) A interpretação delinquente do artigo 142 da Constituição, que faria das Forças Armadas uma espécie de Poder Moderador da República, com poderes para realizar uma apuração paralela das urnas de 2022; 3) O debate para decidir se Daniel Silveira é um cupim da colônia bolsonarista, do tipo que rói a democracia por dentro, ou se é um herói da resistência contra a tirania do Judiciário.

Numa conjuntura em que faltam dinheiro, emprego e alimentos baratos, Bolsonaro fabrica confusões para desviar as atenções da crise real. Mas a demonização do presidente tornou-se desimportante. Ainda que um mandatário oposicionista seja eleito em outubro (e o candidato à reeleição aceite o resultado das urnas), as dívidas dos brasileiros não sumirão, os empregos não aparecerão e os supermercados não remarcarão os preços para baixo apenas porque o eleito fala mal do antecessor.

Coube ao abafador de pedidos de impeachment esclarecer o sentido do balé que a politicalha de Brasília oferece ao país. "Vamos encontrar uma saída negociada para aliviar um momento de pressão e tensão", disse Lira. Depois que Bolsonaro entregou ao Centrão a alma do governo e a chave dos cofres, as ameaças de ruptura institucional tornaram-se um grande negócio para os operadores do grupo. Ou seja: os elefantes da República dançam a coreografia da empulhação.

Entrementes, em entrevista publicada como matéria de capa pela revista americana TIME, o ex-presidiário ungido à esdrúxula condição jurídica de “ex-corrupto” escalou um salto agulha bem mais alto do que recomendaria a prudência. Ao longo da conversa, oscilou entre o vexame, o desastre e a premonição. Foi vexaminoso ao falar sobre a guerra na Ucrânia. Sobre economia, foi desastroso. Soou premonitório ao desqualificar a ONU, uma organização que o afagaria dias depois. A certa altura, Lula declarou o seguinte: “A gente não discute política econômica antes de ganhar as eleições. [...] Quem tiver dúvida sobre mim olhe o que aconteceu nesse país quando eu fui presidente da República: o crescimento do mercado. [...] Ao invés de perguntar o que é que eu vou fazer, olhe o que eu fiz.” 

Nesse trecho, a manifestação foi burra, presunçosa e ofensiva. Burra porque a história ensina que, numa campanha eleitoral, uma dose de humildade não faz mal a nenhum candidato. Presunçosa porque todo mundo percebe que alguma coisa está muito errada quando um ex-presidente diz ter feito tudo sempre certo. Ofensiva por imaginar que pode reivindicar a Presidência de um país assolado por grave crise econômica sem dizer ao eleitorado o que pretende fazer com a economia.

Entre os erros cometidos durante sua gestão, o mais escandaloso foi a derrama de verbas públicas do BNDES na caixa registradora de empresas campeãs nacionais que depois se converteriam em financiadoras da corrupção. O erro mais pernicioso foi a expansão dos gastos públicos, no final do segundo mandato, para erguer um palanque vistoso, e o mais ruinoso foi a eleição de Dilma, a inolvidável saudadora da mandioca. Entre 2013 e 2016, sob a dita-cuja, a economia encolheu 6,8%, a taxa de desemprego saltou de 6,4% para 11,2%, foram ao olho da rua cerca de 12 milhões de trabalhadores, e o governo abusou das isenções e subsídios tributários. A despeito disso, os únicos empreendimentos que bombavam no país eram a corrupção e a estagnação.

Observação: Sabe-se pouquíssimo do que Lula planeja fazer se for eleito para um terceiro mandato. Ele estimula a crença de que haverá probidade e prosperidade a partir de 1º de janeiro de 2023. Foi assim, na base da empulhação, que Dilma prevaleceu em 2014. Deu no que está dando.

Ao falar sobre a guerra na Ucrânia, Lula navegou sobre um mar de obviedades para naufragar numa temeridade. Agarrado ao óbvio, flutuou ao mencionar a precariedade do populista Zelensky. Continuou flutuando ao criticar a imprudência dos Estados Unidos e da União Europeia por cutucar Putin com a OTAN para ver se ele mordia. Afundou no instante em que declarou categoricamente que o presidente ucraniano “quis a guerra”. Nesse ponto, a condenação retórica do petralha à invasão da Ucrânia ficou muito parecida com à do sociopata. Se dissesse que é “solidário” com a Rússia, ficaria idêntica. 

A caminho do fundo, Lula ainda teve tempo de desqualificar a ONU. A pretexto de defender a criação de um novo modelo de “governança mundial”, afirmou que a Organização de hoje não representa mais nada. Outra obviedade. Que, no seu caso, acabou soando também como uma declaração premonitória. Lula falou à TIME no final de março. Na semana passada, o Comitê de Direitos Humanos da organização que, segundo ele, “não representa mais nada”, deu uma paulada em Sergio Moro ao concluir, com seis anos de atraso, que o morubixaba do PT teve seus direitos políticos supostamente violados pela Lava-Jato

Quem lê a entrevista fica sem saber se o entrevistado faz campanha para si mesmo ou se virou cabo eleitoral de Bolsonaro. Julgando-se invulnerável, o “grande estadista” escalou o salto agulha como se desejasse ficar mais perto de Deus, mas só encurtou a distância que o separa do capetão.

Costuma-se dizer que o diabo mora nos detalhes, mas alguém já escreveu que é Deus quem está nos detalhes. No Brasil, além do Todo-Poderoso e do Tinhoso, a história também está nos detalhes. A história do favoritismo de Lula, por exemplo, pode ser outra se o picareta dos picaretas não começar a reparar no chão que o seu salto alto pisa. Ou ele se convence de que também está sujeito à condição humana, passando a medir as palavras, ou logo estará bem mais próximo do fiasco.

No palanque do 1º de Maio, soube-se mais adiante, Lula sapateou em cima de verbas públicas. Só o show de Daniela Mercury custou R$ 160 mil ao contribuinte paulistano — dinheiro despejado no ato político por emendas que três vereadores companheiros penduraram no Orçamento municipal. 

Bolsonaro já havia ironizado o evento estrelado pelo rival. Disse que o ato exalava um cheiro de mortadela — referência ao tempo em que esse tipo de evento era bancado pelo imposto sindical. O capitão decerto não perderá a oportunidade de realçar que o embutido das centrais agora é defumado e aromatizado dentro dos cofres públicos. Lula e seus aliados consolidam-se como principais fornecedores da matéria prima usada por Bolsonaro para reduzir a diferença que ainda o separa do líder nas pesquisas. O PT parece desprezar não só os detalhes onde mora o diabo como também a hipótese de Deus estar nos detalhes. O petismo imagina que Deus está em Lula.

Enquanto assistimos embasbacados a essa sucessão de despautérios, o autoproclamado “centro democrático” — ou “terceira via”, tanto faz — não consegue chegar ao tão desejado candidato único. Ao sepultar a pré-candidatura de Moro a pretexto de lançar a de Luciano Bivar, o União Brasil provou que, em política, a união faz a farsa. Bivar explicou que MDB e PSDBnão tiveram a mesma unidade”, daí ter optado por uma “chapa pura”, para “sermos eleitos presidente desse país.” O caso não é de hospício, mas de Procon, pois trata-se de um flagrante de propaganda enganosa.

A unidade do União Brasil é ficção. Um pedaço da sigla preferia Moro. Outra ala quer ser liberada para aderir a Bolsonaro, Lula e até Ciro — o que atrapalhar menos em cada estado. Bivar, que não tinha chances sequer de se reeleger deputado por Pernambuco, exposto na vitrine nacional ganha uma aparência de McBivar, o presidenciável sem picanha. Ou sem votos. 

Numa grande empresa, esse sujeito seria enxotado pelos acionistas; no UB, não corre riscos: embora não contenha um mísero miligrama de interesse público, sua candidatura é 100% financiada pelo contribuinte, já que seu partido abocanha a maior fatia dos fundos partidário e eleitoral, de R$ 956 milhões.

Com a implosão da terceira via, McDoria e McTebet continuarão fazendo pose de presidenciáveis. A dupla tem mais consistência do que Bivar, embora padeça da mesma carência de votos. Ou ambos reagem nas pesquisas, ou PSDB e MDB tendem a transformá-los em suco. Um suco que Lula e Bolsonaro beberão de canudinho. Triste Brasil.

Com Josias de Souza