Todos sabemos que é e como se comporta o presidente que elegemos em 2018 para evitar a volta do lulopetismo ao poder. O que não se mostra evidente à primeira vista é a seletividade de sua ousadia: quando sente o perigo, Bolsonaro recua para simular trégua; se avalia o risco como de baixo custo com possibilidade de alto ganho, avança para o confronto, como fez ao se escudar na Constituição para derrubar uma decisão de 10 das 11 supremas togas. Ele age assim, inclusive recusando de maneira debochada o recuo sugestão do ex-presidente Michel Temer — a quem o capitão ouviu após o Sete de Setembro — porque só se interessa pelo próprio destino. A República que se dane.
Se recuou depois dos discursos golpistas do feriado da Independência, Bolsonaro o fez por saber que as togas estavam dispostas a endossar um pedido de impeachment, tornando difícil a inação protetora do réus que preside a Câmara, o que daria ao requerimento um peso diferente em relação aos mais de 140 aos quais Arthur Lira dedicava — e ainda dedica — a mais completa indiferença. Passados sete meses e faltando menos de cinco para as eleições, porém a conjuntura é outra.
Além de não comportar condições objetivas para processo de impedimento, a maior parte do Congresso está dominada pela entrega do manejo do Orçamento da União aos parlamentares do Centrão, hoje ampliado e majoritário. Bolsonaro deixou isso muito claro quando explicou a seus interlocutores nas internas no Palácio que um dos fatores para a concessão da “graça” foi a certeza de que o Legislativo “não teria força para reagir”. Força teria se houvesse vontade, mas na ausência desta prevalece a fragilidade conveniente evidenciada pela via da omissão.
Sem a sombra da mais ínfima dúvida, o presidente da República é o principal responsável pelo ambiente de confrontação institucional que se caracteriza pelo desequilíbrio entre os três poderes, seja por ações ou omissões lastreadas no excesso. Mas a alta ansiedade que assola o país tem razões que, além do Executivo, o Legislativo e o Judiciário não poderiam desconhecer pela própria razão de suas atribuições.
Há disputa onde a Constituição manda que impere a equivalência das potências de cada um sob o rito da harmonia. A necessidade de respostas firmes do Judiciário e a conveniência da cautela do Legislativo não justificam o embarque na onda do presidente sem o devido senso tático sobre os efeitos dessa ou daquela atitude. O STF clama por respeito e reclama de ser desrespeitado — e com razão, mas nem sempre contribui para se dar ao respeito.
Diferentemente do Legislativo e do Executivo, o Judiciário deve (ou deveria) ser o menos falante fora dos limites dos autos, até pelo seu poder de dar a última palavra. A despeito dos méritos do embate que trava sozinho na defesa do estado de direito, as togas têm se deixado atrair por aquilo que o ministro Barroso chamou recentemente de “fogueira das paixões políticas” para apontar um desvio institucional que muitas vezes a corte tem cometido, dando combustível ao confronto. Isso expõe o caráter autoritário do governo, mas chega a lugar nenhum — ou, por outra, senta praça no centro do terreno do conflito, quando seu papel é o de promover o entendimento conforme o imperativo da lei.
O desmonte da Lava-Jato, a revisão de condenações anteriormente confirmadas por três instâncias, ministros absolutamente parciais anulando decisões por alegada ausência de imparcialidade, nada disso ajuda o STF a atrair a confiança da sociedade. Pior, alimenta a desconfiança. Reagir, sim, é preciso, mas é imprescindível ter frieza e consciência sobre o papel de cada um, sob pena de cair numa dinâmica de extrapolações mútuas, cujo produto é a instituição de um cenário de incivilidade geral com resultados nefastos ao bom andamento dos trabalhos democráticos.
Voltando a Silveira, enquanto abre as portas de cinco comissões permanentes — entre as quais a de Constituição e Justiça — ao vassalo do mandatário, a Câmara mantém fechada (há nove meses) a entrada no Conselho de Ética (como nossos conspícuos parlamentares conhecessem o significado da palavra “ética”) de um pedido de abertura de processo contra o deputado troglodita por quebra do decoro parlamentar — um exemplo da trajetória decadente (por ação e/ou omissão) a que o Congresso tem se imposto ultimamente.
Curiosamente, quanto mais concentra poder com o manejo total do Orçamento da União e o controle dos recursos para financiamento de campanhas, menos prestígio o Parlamento parece interessado em conquistar. Qual a necessidade de prestar esse tipo de homenagem a um deputado flagrantemente indecoroso e que está no centro de um indevido embate entre os Poderes? Nenhuma, a não ser surfar na onda de Bolsonaro, no intuito de “dar uma resposta ao STF”. Esse tipo de reação seria boba não fosse, sobretudo, nefasta ao mandamento constitucional de equilíbrio e harmonia entre os Poderes da República. Um papel lamentável da Câmara ao qual se associa o Senado por fingir que não tem nada com isso, embora tenha, sim. E muito.
Na teoria das fotos e poses, os Poderes Legislativo e Judiciário exercitaram nos últimos dias a harmonia exigida pela Constituição. Na prática, porém, a teoria é outra. Nas conversas desta semana faltou a participação do Executivo. O ministro da Defesa dialoga com os presidentes do STF e do Congresso. Mas ele não representa a Presidência, nem menos as Forças Armadas são um Poder constituído. Mau sinal quando se pretende que o general substitua o presidente nas cenas de entendimento, que a ausência do Executivo signifique recusa ao diálogo direto, tenha partido de uma parte ou de outra.
Uma falta de respeito que se materializa em ações concretas. Da parte do Judiciário quando extrapola os limites dos autos e faz política dando margem a suspeições sobre a função do julgador, e da parte do Legislativo quando ignora as decisões judiciais. Dois exemplos: a indiferença à ordem de prestação de informações sobre o Orçamento Secreto e a omissão às repetidas violações à lei e ao decoro cometidas pelo deputado Daniel Silveira. Harmonia é prática sem a qual a foto não passa de cenografia.
Com Dora Kramer