sexta-feira, 1 de julho de 2022

COM A CARA NO FOGO E A CAMINHO DO INFERNO

 

Pode-se morrer de tudo no jornalismo, menos de tédio”, costumava dizer o saudoso Ricardo Boechat — que, por uma ironia do destino, perdeu a vida num surreal acidente — no qual o helicóptero em que voltava de Campinas (SP) para a capital paulista colidiu com um caminhão. 


Observação: Cito essa frase porque estou redigindo este texto seis dias da data prevista para sua publicação, de modo que é bem provável que o escândalo envolvendo o dublê de pastor e ex-ministro da Educação tenha tido novos desdobramentos (vide atualização no final da postagem). 

 

Na avaliação do comitê de campanha de Bolsonaro, a prisão de Ribeiro e dos pastores lobistas do MEC tem alto potencial destrutivo. Montou-se às pressas uma operação para tentar reduzir os danos, mas em cima de um paradoxo: em público, tenta-se distanciar Bolsonaro de Ribeiro. Nos bastidores, o Planalto envia ao ex-ministro a mensagem de que ele não será abandonado. Bolsonaro precisa agora rezar para que o ex-auxiliar se disponha a colocar a cara no fogo por ele.

 

Observação: No último dia 24, o pastor Arilton Moura, apontado como um dos líderes do gabinete paralelo no MEC, disse a um de seus advogados: “Eu preciso que você ligue para a minha esposa... acalme minha esposa... porque se der qualquer problema com a minha menininha, eu vou destruir todo mundo". O trecho do diálogo, e que consta nas investigações, foi divulgado naquele dia pelo jornal O Globo.

 

A 100 dias da eleição, injetou-se uma crise ética dentro da campanha de Bolsonaro num instante em que o capitão já arrasta pela conjuntura a bola de ferro da crise econômica. Elegeu-se como prioridade a preservação de três pilares da estratégia eleitoral traçada anteriormente. Num esforço para manter a pregação anticorrupção, decidiu-se aprofundar a tática de rememorar os escândalos da era petista. Imagina-se que isso inibirá a exploração do escândalo pelo PT e por Lula. 

 

Mobilizaram-se pastores amigos para tentar evitar prejuízos à aliança mística que Bolsonaro cultiva com a religiosidade — donos de 32 milhões de votos, os evangélicos genuínos não costumam compactuar com transgressões éticas. De resto, o comitê do presidente busca informações que permitam à campanha caminhar adiante dos investigadores. Dando de ombros para o fato de que o processo corre em sigilo, Bolsonaro encomendou ao Ministério da Justiça dados detalhados sobre o inquérito da PF.

 

Fiel escudeiro do pai e um dos principais articuladores de sua campanha à reeleição, o senador Flávio Bolsonaro divulgou um vídeo em que compara os casos de corrupção do governo paterno com os escândalos das gestões petistas. “Enquanto no governo Bolsonaro, quando há um caso isolado de suspeita de alguma coisa, a pessoa tem que ser investigada e ela tem que provar sua inocência, nos governos passados, como da Dilma e do Lula, havia um esquema geral de corrupção em que já foram devolvidos muitos bilhões de reais desviados de várias áreas, em especial da Petrobras.”

 

Ao contrário do que o menino de ouro tenta fazer parecer, a corretagem de verbas públicas do MEC por pastores não é um caso isolado, mas o assalto à Petrobras nas gestões petistas teve, de fato, proporções amazônicas — balanço da estatal divulgado em 2014, sob Dilma Rousseff, anotou que o roubo foi de R$ 6,2 bilhões (em valores da época). O grosso desse dinheiro foi recuperado, o que apenas reforça a falta nexo da pureza moral que o filho do presidente atribui à gestão do pai. Primeiro porque Flávio substitui o discurso da “corrupção zero” pela tese segundo a qual agora os desvios são mais comedidos. Segundo porque os bandoleiros da caravana petista estão ao lado de Bolsonaro. 

 

O FNDE, fonte das verbas agenciadas pelos pastores, é controlado por prepostos de Ciro Nogueira — atual ministro-chefe da Casa Civil —, cujo partido, o PP, estrelou o escândalo do petrolão, e pelo ex-mensaleiro e ex-presidiário Valdemar Costa Neto, presidente do partido ao qual Bolsonaro se filiou, no final do ano passado, para disputar a reeleição. O réu que preside a Câmara, Arthur Lira, que é do mesmo partido de Ciro Nogueira, comanda o rateio do orçamento secreto, que financia desvios em série — da compra de kits de robótica para escolas que não dispõem nem de água potável ao superfaturamento de ônibus escolares e de asfalto. É como se Flávio Bolsonaro, coordenador da campanha do pai, desejasse transformar a polarização com Lula numa gincana de sujos e mal lavados travada numa colônia de nudismo.

 

O presidente, seus filhos e todos os bumbos da banda do bolsonarismo se referiram à prisão de Ribeiro como uma evidência de que o governo não interfere no trabalho da Polícia Federal. Numa correspondência de nove parágrafos, o delegado federal Bruno Calandrini, responsável pelo inquérito sobre o pastoreio de verbas no MEC, triturou essa versão. Numa espécie de desabafo para os colegas que participaram das batidas de busca e apreensão e das prisões, ele sustenta que houve “interferência na condução da investigação”. Espanto! Anota que o ex-ministro “foi tratado com honrarias não existentes na lei”. Pasmo!! Declara que a apuração foi “prejudicada”. Assombro!!! Avalia que não dispõe de “autonomia investigativa para conduzir o inquérito deste caso com independência e segurança institucional”. Estupefação!!!

 

Como evidência da interferência, Calandrini menciona o fato de o ex-titular do MEC não ter sido transferido da cidade de Santos para Brasília, como havia determinado inicialmente o juiz da 15ª Vara Federal do Distrito Federal. Ribeiro acabou sendo conduzido para a carceragem da PF em São Paulo. Segundo a versão oficial, “riscos e dificuldades financeiras” impediram transferência, mas o delegado insinua que as razões foram outras e lamenta a perda da chance de interrogar o ex-ministro nas pegadas de sua detenção. 


Surpreendido, Ribeiro poderia tropeçar na língua, mas o efeito surpresa virou fumaça com a retenção do preso em São Paulo e a posterior ordem de soltura emitida pelo desembargador Ney Bello, do TRF-1. A repórter Malu Gaspar informa no jornal O Globo que Bello — magistrado favorito a assumir uma das vagas à espera de preenchimento no STJ — coleciona um histórico de decisões que ornam com os interesses do Planalto.

 

A propósito da correspondência do delegado Calandrini, a Polícia Federal informou por meio de nota que abrirá apuração “para verificar a eventual ocorrência de interferência, buscando o total esclarecimento dos fatos”. Resta saber quem investigará a apuração da PF.


Atualização: As manifestações de Bolsonaro sobre o escândalo do MEC evoluíram do temerário para o ridículo. O presidente soava temerário quando dizia que colocaria a cara no fogo pelo ministro. Descambou para o ridículo ao sustentar que Milton Ribeiro é perseguido por gente interessada em constranger o governo. O capitão relança a surrada tese da perseguição política. Fala sobre as mazelas criminais ao redor não como presidente, mas como comentarista inocente do seu próprio governo. O comentarista não diz nada sobre o grampo legal que permitiu à PF escutar Ribeiro contando à mulher que o ex-chefe lhe telefonara dos Estados Unidos para avisar sobre a operação de busca e apreensão que acabou ocorrendo 13 dias depois. Finge não existir a gravação em que o ex-ministro declara que abriu as portas do MEC para os pastores traficantes de verbas atendendo a um "pedido especial" dele, Bolsonaro. O presidente comentarista se refere ao relaxamento da prisão do ex-ministro como suposta evidência de que nada foi descoberto sobre ele. Tolice. Bolsonaro ajusta o discurso. Na primeira hora, declarou coisas assim: "Se a Polícia Federal prendeu, tem um motivo." Agora, diz que a cana foi injusta. Bolsonaro faz de conta que ignora o fato de que a decisão provisória que soltou o ex-ministro e os demais integrantes do grupo que a PF chama de "organização criminosa" não tem nada a ver com o conteúdo cabeludo do inquérito. As celas foram abertas porque um desembargador do TRF-1 entendeu que os acusados poderiam responder em liberdade sem interferir na investigação. É bem mais fácil e confortável para o presidente sustentar a tese da formação de um complô urdido por um juiz de primeira instância, procuradores, agentes federais e repórteres comunistas para transformar um capitão modelo em corrupto. A alternativa seria admitir que tudo o que está na cara não passa de uma conspiração da lei das probabilidades contra um comentarista inocente. Bolsonaro evoluiu da temeridade para o ridículo justamente num instante em que o processo foi remetido para o Supremo por conta da suspeita de que o presidente interveio na PF para obstruir a investigação. O presidente e seus operadores contam com a impunidade proporcionada pela blindagem do procurador-geral Augusto Aras.

 

Com Josias de Souza