sábado, 2 de julho de 2022

TÁ CHEIRANDO A SACANAGEM

 

Pelo menos cinco funcionárias da Caixa Econômica Federal denunciaram o presidente da empresa, Pedro Guimarães, por assédio sexual. Os relatos escancaram crime por qualquer ângulo que se observe. O Brasil é um país que maltrata mulheres desde sempre, mas vivemos tempos especialmente cafajestes. Nosso presidente acha que ter filha mulher é “fraquejar”, diz a uma mulher que “não te estupro porque você não merece” e muito mais. Seu exemplo é seguido em vários lugares, não só na CEF.


Bolsonaro está mal nas pesquisas e tem o desafio de reverter a enorme rejeição que sofre por parte das mulheres. Pois essas mulheres acabam de descobrir que Guimarães é um misógino e assediador contumaz, que isso é sabido no governo há tempos, e que mesmo assim era habitué das lives do capitão. 


Nos últimos dias, vazaram a gravação de Milton Ribeiro e a mensagem de Roberto Castello Branco, ambas incriminando o presidente; pedidos de investigação contra ele foram encaminhados ao STF; a CPI do MEC passou com folga; e já há quem fale em CPI da Petrobras. Não é coincidência. 


As revelações contra o mandatário e seu entorno estão vindo à tona porque há uma percepção generalizada de que o governo está fragilizado, vulnerável, sem condições de reagir, e cada novo escândalo torna ainda mais difícil reverter a situação. E — pode escrever — vem mais por aí.


Numa entrevista que concedeu às vésperas de completar os primeiros 100 dias de governo, Bolsonaro declarou que “a reeleição causou uma desgraça no Brasil”, porque “prefeitos, governadores e até o presidente se endividam, fazem barbaridades, dão cambalhotas” para permanecer no Poder. Uma semana atrás, quando começou a contagem regressiva de 100 dias para o encontro dos brasileiros com as urnas, Bolsonaro, rejeitado por 55% do eleitorado e sob a ameaça de amargar uma derrota no primeiro turno para Lula, fazia “barbaridades” e dava “cambalhotas” dentro dos cofres públicos por uma reeleição que as pesquisas apontam como improvável: se a eleição fosse hoje, Lula venceria no primeiro turno com 53% dos votos válidos. 

 

Embora esteja distante da reeleição, Bolsonaro exibe uma resistência notável, que lhe permite cultivar a perspectiva de levar a disputa para um segundo turno. É nisso que apostam seus operadores ao transformar o Tesouro Nacional num puxadinho do comitê de campanha. Entre os eleitores que ganham até dois salários-mínimos, que respondem por 52% dos votos, o ex-presidiário prevalece sobre o ex-capitão por uma diferença de 34 pontos. Como esse pedaço majoritário do eleitorado não só define os rumos da eleição, mas também é o que mais sofre os efeitos da inflação, é para esse público que Bolsonaro exibe suas “cabriolas”. O Bolsa Caminhoneiro de R$ 400, engavetado há oito meses por falta de recursos, ressurge agora como um PIX de R$ 1.000. Reajustado para R$ 400 numa cambalhota do ano passado, o Auxílio Brasil é turbinado para R$ 600, como queria a oposição, e o vale-gás mixuruca de R$ 53 dobra de valor.

 

As benesses de última hora são traçadas num pavimento superior ao teto de gastos e à revelia da lei eleitoral, que proíbe a criação de novas despesas na antessala das eleições. Mas a responsabilidade fiscal e a legalidade tornam-se fatores irrelevantes na fase das “piruetas” do capitão. Se tudo correr como deseja o comitê da reeleição, sua alteza irreal iria ao segundo round para ser surrado pelo sumo pontífice da Petelândia. Num cenário (desalentador) em que Ciro Gomes rala na casa dos 8% e Simone Tebet murcha para 1%, apenas o Senhor Imponderável poderia bagunçar as previsões eleitorais de 2022. Em 2018, essa entidade deu as caras duas vezes: quando o petralha foi preso e quando o dublê de mau militar e parlamentar medíocre levou a famosa facada. Afora o imprevisto, restam as acrobacias. Quanto mais “cambalhotas”, pior será a herança a ser deixada por Bolsonaro para 2023.

 

Em tempos de festas juninas, Bolsonaro continua pulando a fogueira. Com as bochechas carbonizadas, disse ter exagerado quando declarou que “colocaria a cara no fogo” por Milton Ribeiro. Mas afirmou que ainda põe “a mão no fogo” pelo ex-auxiliar, que se encontra bem passado na frigideira do inquérito conduzido pela PF. Na administração pública, as queimaduras podem ser de primeiro, de segundo ou de terceiro escalão. Bolsonaro apresenta reações epidérmicas de terceiro grau desde que solicitou ao então ministro que abrisse as portas que conduziram pastores de sua predileção ao FNDE, um cofre de terceiro escalão fornido com mais de R$ 50 bilhões e gerido pelo indefectível Centrão. 

 

Bolsonaro não é alvo da investigação que corre na primeira instância, mas a gravação em que Ribeiro lhe atribuiu o envio dos pastores ao MEC continua ressoando como um prenúncio do que está por vir, caso o projeto de reeleição naufrague. É graças ao áudio tóxico do ex-ministro que o mandatário mede as palavras ao se referir ao ex-auxiliar. No dia da prisão, tomou distância: “Ele que responda”, mordeu, antes de enaltecer a ação da PF como uma suposta evidência de que não interfere no órgão. “Se prendeu, tem motivo.” Abertas as celas, Bolsonaro soprou: “Nem devia ter sido preso”. A prisão preventiva passou a ser uma “maldade”.

 

A decisão do TRF-1 que levou à libertação dos presos é monocrática e provisória. Terá de ser analisada por uma turma composta por três desembargadores. A discussão não envolve o mérito do processo, que está apinhado de indícios de crimes. Discute-se apenas se os acusados deveriam ou não permanecer presos para não prejudicar a produção de provas. De resto, o bumbo da alegada independência da PF foi silenciado por uma carta do delegado responsável pelo caso, Bruno Calandrini (vide capítulos anteriores). Com Bolsonaro é assim: surge um escândalo dentro do outro.

 

O presidente me ligou, ele tá com um pressentimento...”, disse Ribeiro à filha. Que antevisão teria tido Bolsonaro? “Eles podem querer atingi-lo através de mim... É que eu tenho mandado versículos pra ele, né?”, disse o pastor à filha que, estranhou: “Ah... Ele quer que você pare de mandar mensagens?”, como se já tivesse ciência do teor dos “versículos” que seu pai despejava dentro do WhatsApp do presidente. O problema não estava no envio de trechos do novíssimo Testamento que inspira a relação do ex-ministro com o ex-chefe. 

 

A questão era que Bolsonaro pressentira que o sacrossanto relacionamento estava prestes a ser devassado: “Ele acha que vão fazer uma busca e apreensão... Em casa... Sabe?” Por alguma misteriosa razão, a filha de Ribeiro sentiu a necessidade de dar um aviso: “Eu tô te ligando de um celular normal viu, pai?” Era como se a moça, contagiada pelos pressentimentos de Bolsonaro, intuísse que a polícia poderia estar na escuta. O pai, também infectado pelo vírus da premonição, compreendeu rapidamente os temores da filha: “Ah é? Ah, então... Depois a gente fala, então, tá?” Foi nesse ponto que o pastor se apegou à fé como náufrago que agarra o jacaré imaginando que é um tronco. “Deus vai cuidar”, declarou, antes de mudar o rumo da prosa. O religioso parece não levar em conta que, embora Ele esteja em toda parte, o demônio ainda controla o imponderável e alguns setores da Polícia Federal

 

Era 9 de junho quando Bolsonaro disparou o telefonema que ora ex-ministro relatava para a filha. O mandatário se encontrava nos Estados Unidos, participando da Cúpula das Américas, mas o Tinhoso estava no comando. Com os instintos premonitórios aguçados pela companhia do chefe da pasta da Justiça, superior hierárquico da PF, Bolsonaro foi tomado de assalto (ops!) por um desejo irrefreável de conversar com o pastor, embora tivesse acabado de fazer uma viagem transoceânica e sua agenda incluísse um encontro com o presidente dos EUA. Mesmo assim, ele decidiu desperdiçar um naco do seu tempo para avisar o ex-ministro de que ele deveria se preparar para a visita da polícia. Treze dias depois, o presságio do capitão se materializaria na porta do apartamento do ex-ministro, na cidade de Santos. Depois de varejar gavetas e armários, os agentes federais levaram Ribeiro preso. Mas a prisão foi relaxada no dia seguinte. 

 

Perdeu-se algo essencial numa operação policial: o fator surpresa. “No fundo, ele não queria acreditar, mas ele tava sabendo”, declarou Myriam Ribeiro, mulher do pastor, noutro diálogo captado pelos grampos da PF. "Pra ter rumores do alto, a coisa... É porque o negócio já tava certo." Outros membros do grupo que os agentes classificaram como “organização criminosa” foram submetidos, em outras praças, ao mesmo ritual litúrgico. Foram à garra, por exemplo, os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura, corretores de verbas do MEC junto a prefeituras. 

 

Milton, Gilmar e Arilton são exemplos acabados de uma mutação genética do espécime chamado “pastor bolsonarista”. Milton é pastor da Igreja Presbiteriana. Tem a admiração da primeira-dama. Ascendeu ao MEC por indicação do ministro “terrivelmente evangélico” André Mendonça, outro pastor presbiteriano. Gilmar achegou-se a Bolsonaro como presidente da Convenção Nacional de Igrejas e Ministros das Assembleias de Deus no Brasil e chefe do Instituto Teológico Cristo para Todos. A credencial de Arilton era de assessor de assuntos políticos da Convenção Nacional das Igrejas. Suponha-se que os três tenham sido devotados servos de Deus. É o que de melhor se pode fazer por eles. Quando se deu a mutação de pastores para alvos de batidas policiais? Infelizmente, o fenômeno da involução moral é infenso a respostas com precisão científica. Poder e dinheiro, naturalmente, contam. Mas como identificar o momento exato em que as portas da tentação se abriram?

 

Para efeito da investigação em curso, a coisa desandou quando a conversão ao bolsonarismo e o culto ao “mito” viraram a cabeça dos pastores e as maçanetas dos gabinetes do Planalto e da Esplanada. Os grampos da PF foram precedidos de gravação na qual a língua de Ribeiro, num movimento diabolicamente celestial, admitiu que os cofres do MEC foram destravados para os pastores graças a “um pedido especial” de Bolsonaro. Para desassossego do presidente, a língua do ex-ministro revelou-se uma venenosa produtora de incontinências verbais. Primeiro, ela, a língua, colocou o capitão na posição de patrono de traficantes de verbas para a construção e aparelhamento de creches e escolas. Agora, a língua exibiu-se para os grampos da PF. Os investigadores constataram que a “organização criminosa” dispunha de linhas telefônicas desconhecidas da polícia. Mas a língua traiu o dono nas conversas com “celulares normais”.

 

Na primeira hora do escândalo, há três meses, Bolsonaro disse que levaria sua cara de pau ao fogo por Milton Ribeiro. Não se deu conta do alto teor de combustão do óleo de peroba. Jogando lenha na fogueira, prefeitos achacados contaram que os pastores do MEC cobravam um pixuleco que variava de R$ 15 mil a R$ 40 mil para franquear o acesso às arcas bilionárias do FNDE. Num dos achaques, o irmão Arilton rogou que a propina fosse liquidada em ouro; noutro, pediu que lhe comprassem mil Bíblias superfaturadas. Numa fase em que ainda era socorrido pelo benefício da dúvida, o então ministro justificou-se alegando que já havia encaminhado as denúncias à CGU. Verdade. O diabo é que Milton não retirou os pastores de sua agenda. E as verbas do FNDE, convenientemente geridas pelo Centrão, continuaram saindo pelo ladrão.

 

Na origem, o inquérito sobre o escândalo do MEC começou a tramitar no STF. Mas Bolsonaro, com as bochechas carbonizadas, viu-se compelido a estimular o pedido de demissão de Milton Ribeiro. Sem mandato, o pastor virou matéria-prima para a primeira instância. O envolvimento de Bolsonaro manteria o caso na Corte Suprema. Entretanto, o departamento de blindagem da PGR sustentou que não havia o que investigar em relação ao presidente, e o caso desceu para o primeiro grau. Deu no que está dando.

 

Bolsonaro agora diz que leva ao fogo por Milton apenas a mão, não a cara. Demora a perceber que entrou processo de autocombustão. Vangloria-se da independência da sua PF. É desmentido pelo delegado que cuida do caso, segundo o qual não só houve interferência como o ex-ministro foi tratado com honrarias não existentes na lei. O delegado lamentou a perda da “autonomia investigativa para conduzir o inquérito com independência e segurança institucional.”

 

A pedido do Ministério Público, o caso subiu novamente para o Supremo, agora puxado pela suspeita de que o “pressentimento” de Bolsonaro é um eufemismo para o crime de obstrução de Justiça. O silêncio dos bumbos do Centrão indica que os pastores não estão sozinhos. O escândalo do MEC, apenas o mais recente de uma série, expõe outros personagens. O espécime “pastor bolsonarista”, em simbiose com uma fauna aliada que —manjada desde a chegada das caravelas— dispensa mutações, faz do governo “sem nenhum caso de corrupção” um antro de perver$ão. Sob Bolsonaro, não há inocentes. Há apenas suspeitos, investigados, denunciados e cúmplices. A corrupção tornou-se parte do sistema do presidente “antissistêmico”. O bolsonarismo está tonto. Antes, guerreava para retirar Bolsonaro da encrenca, empurrando Milton Ribeiro e Cia. para a primeira instância. Agora, questiona a legitimidade do inquérito que instalou grampos na língua dos pastores.

 

Com a experiência de quem matou as provas de sua rachadinha nos tribunais superiores, Zero Um rosnou nas redes sociais: “Então havia gravação do ex-ministro falando que 'ele' achava que poderia ter busca e apreensão? Se 'ele' era Bolsonaro, porque o juiz e o procurador do Ministério Público Federal não remeteram os autos ao Supremo Tribunal Federal ao invés de prender o ex-ministro. Tá cheirando a 'sacanagem', além de crime, claro”. O primogênito parece carregar no DNA o talento do pai para a premonição. 

 

No primeiro ano de governo, numa crise em que levou à frigideira o então chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni, Bolsonaro disse que enxergava os seus ministros como fusíveis. Eles queimam para evitar que o presidente e o sistema entrem em curto-circuito. O problema de um presidente que fabrica crises é a quantidade de fios desencapados que ficam pelo caminho. No dia em que a “organização criminosa” do MEC foi em cana, o pastor Arilton Moura telefonou para um advogado. Escutado pela PF, ele soou assim: “Preciso que você ligue para minha esposa... Porque se der qualquer problema com a minha menininha, eu vou destruir todo mundo! 

 

Todos os cristãos genuínos devem orar para que o irmão Arilton leve às últimas consequências o seu plano de Apocalipse. A essa altura, uma nova operação abafa, com a condescendência do Supremo, autorizaria os contribuintes em dia com o fisco a ecoar Flávio Bolsonaro: “Tá cheirando a 'sacanagem'.” 


Com Ricardo RangelJosias de Souza