domingo, 3 de julho de 2022

HOJE É O AMANHÃ DE ONTEM E O ONTEM DE AMANHÃ

 

No apagar das luzes de junho de 2018, eu escrevi que a libertação do delinquente José Dirceu, condenado em segunda instância a 30 anos e 9 meses de prisão, escancarou uma verdade inverossímil: a sala ocupada pela 2ª Turma do Supremo se transformara numa gigantesca porta de saída da cadeia. 

 

Essa bofetada na cara do país que presta foi desferida a seis mãos — por Gilmar MendesRicardo Lewandowski e Dias ToffoliGilmar inaugurou (e comanda) a primeira usina de habeas corpus do planeta, Lewandowski ganhou a toga porque era filho de uma vizinha da ex-primeira-dama Marisa Letícia, e Toffoli, por ser uma alma subalterna a serviço de Dirceu. Disfarçados de juízes, os três agem como cúmplices de bandidos de estimação — e enxergam no povo brasileiro um bando de otários que só explodem de indignação quando a seleção vai mal numa Copa do Mundo.

 

Como bem pontuou J.R. Guzzo em Veja, os eminentes togados têm o poder de aplicar ou não as leis e, para além disso, de decidir quais leis são válidas. Dizem, é claro, que suas sentenças estão de acordo com a legislação — mas são eles, e só eles, que decidem o que as normas jurídicas querem dizer. 


Não existe em lugar nenhum do mundo, e nunca existiu, uma democracia em que a última instância do Poder Judiciário faz uso da lei para impedir a prestação de justiça. Se as atuais leis brasileiras, como garantem os nobres ministros sempre que soltam um ladrão de dinheiro público, os obrigam a transformar o direito de defesa em impunidade, então todo o sistema de justiça está em colapso, e o que existe é um Estado de exceção, onde as pessoas que mandam valem mais que todas as outras. 

 

Faz sentido um negócio desses? Claro que não. Mas a questão, à esta altura, já não é o que os corruptos fizeram ou foram acusados de fazer, mas os julgadores estão fazendo ao abrir as celas de quem roubou o erário neste país. Pelo que escrevem em suas sentenças, os magistrados decidiram na prática que ninguém mais pode ser preso no Brasil por cometer crimes de corrupção. É possível existir democracia num país onde os membros da mais alta cúpula do Judiciário, com a ajuda de algumas nulidades assustadas e capazes de tudo para remar a favor da corrente, decidem o que é permitido e o que é proibido para 219 milhões de pessoas?

 

Quando ainda comemorávamos a derrota do bonifrate do presidiário mais famoso do Brasil pelo presidente eleito em 2018 — e que viria a ser o pior mandatário desta banânia desde Tomé de Souza —, surgiram os primeiros indícios das "movimentações financeiras atípicas" de Fabrício Queiroz, amigo de longa data de Jair Bolsonaro e factótum do clã do ex-capitão. A primeira notícia foi publicada em 6 de dezembro de 2018 no Estadão. A partir daí, Jair Flávio Bolsonaro tentaram se manter a uma distância segura do amigo de três décadas do primeiro e dublê de motorista e assessor parlamentar do segundo.

 

Corrupção, como se sabe, é uma doença que demanda cuidados médicos intensivos. Tanto que uma "inesperada crise de saúde" impediu Queiroz de prestar esclarecimentos ao MP-RJ em duas oportunidades. Perguntado sobre as suspeitas que recaíam sobre se ex-assessor, o ex-deputado estadual e então senador eleito Flávio Bolsonaro disse que era ele (Queiroz) quem deveria esclarecer os fatos. "Pela enésima vez, não posso ser responsabilizado por atos de terceiros e não cometi nenhuma ilegalidade. O ex-assessor é quem deve dar explicações. Todos da minha equipe trabalham e a prova de que o gabinete funciona bem são minhas crescentes votações", postou Zero Um no Twitter. 

 

Quando há justificativa, os fatos falam. Quando não há, as versões sussurram e as suspeitas prosperam. Queiroz — que, segundo Flávio, teria uma “história plausível”, foi submetido a uma cirurgia no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e virou fumaça tão logo teve alta médica. No dia seguinte ao do Natal de 2081, Queiroz reapareceu tão misteriosamente quanto havia sumido e falou em público pela primeira vez. Em entrevista ao SBT, negou ser laranja e atribuiu o dinheiro a negócios com venda de carros, mas não explicou os depósitos feitos em sua conta por funcionários do gabinete e familiares empregados por Flávio Bolsonaro e pelo presidente eleito. E então desapareceu de vez.

 

Em setembro de 2019, uma reportagem de Veja revelou o paradeiro de Queiroz, mas o espírito que anda voltou a tomar chá de sumiço e permaneceu desaparecido até meados do ano seguinte, quando foi localizado e preso em Atibaia (SP) — não no famoso sítio Santa Bárbara, que Lula frequentava amiúde e que lhe rendeu uma pena de 12 anos e 11 meses de prisão (posteriormente anulada pelo ministro Edson Fachin), mas num imóvel pertencente a Frederick Wassef, o folclórico dublê de mafioso de comédia e "consiglieri" da Famiglia Bolsonaro. 

 

Após passar três semanas no Complexo Penitenciário de Gericinó, na Zona Oeste do Rio, Queiroz foi beneficiado por um habeas corpus deferido pelo ministro João Otávio Noronha, do STJ, e seguiu para prisão domiciliar. Dizendo-se "grande admirador de Roberto Jefferson" (cujo nome dispensa apresentações), o ex-fantasminha tenciona se candidatar a deputado federal nas eleições deste ano. 

 

Observação: Durante a cerimônia de posse de André Mendonça como ministro da Justiça e de José Levi como AGU, o capitão disse a Noronha, então presidente do STJ, que sua relação com ele era um caso de amor à primeira vista. E não é para menos. Além de conceder a Queiroz o mimo da prisão domiciliar, o magistrado estendeu o benefício à esposa do ex-Gasparzinho — que estava foragida e, segundo as más-línguas, flertava com a delação. Detalhe: Assim como Augusto Aras, o procurador-geral que não procura, o ministro do STJ acalenta o sonho de ter os ombros recobertos por uma suprema toga. Foi preterido nas duas indicações feitas por Bolsonaro, mas quem sabe se numa próxima... 

 

Bolsonaro faz no governo o que ele e seus filhos sempre fizeram na vida pública: explorar mecanismos de liberação de dinheiro do povo para atender a interesses privados. Zero Um e Zero Três tiveram cargos remunerados em Brasília enquanto faziam faculdade no Rio de Janeiro. A caseira do imóvel de veraneio da família também tinha. E o próprio presidente, como confirmou o Ministério Público em ação contra ele por improbidade administrativa, fez os brasileiros pagarem durante 15 anos por uma "assessora parlamentar" fantasma (Wal do Açaí), registrada em seu gabinete de deputado federal, enquanto ela dava água para o cachorro em Angra dos Reis (RJ).

 

Depois de comprar o apoio do Congresso com o orçamento secreto, de emissoras de rádio e TV com a liberação obscura de verbas de publicidade federal, de parte da população de baixa renda com o que ele próprio chamava de "Bolsa Farelo", e de pastores aliados com o perdão da dívida de igrejas com o Estado, Bolsonaro mandou o ministro-pastor Milton Ribeironas palavras do próprio Ribeiro — atender aos interesses específicos de Gilmar Santos e Arilton Moura, dois pastores mui suspeitos. De acordo com Felipe Moura Brasil, o sacrilégio bolsonarista chegou ao cúmulo da aparente lavagem de dinheiro sujo em livros bíblicos. É a imagem mais emblemática até hoje da exploração da religião por interesses escusos e para fins criminosos, ambos condenados pela doutrina cristã. A propaganda do "governo sem corrupção" apenas encobre a corrupção sem governo.

 

Um dia depois de quatro ministros do STJ indicados pelo PT terem condenado Deltan Dallagnol a indenizar Lula pelo powerpoint da denúncia contra o petista, o outro Gilmar — o Mendes, aliado de Lula e Bolsonaro na vingança do sistema — revelou ter dito ao capitão que seu legado é "nomear Sergio Moro e devolvê-lo ao nada". Moro, ao contrário de Ribeiro, se recusou a compactuar com a perversão privada do Estado, de modo que ele próprio se devolveu a um "nada" de cargos em troca de princípios, muito mais digno que o "tudo" por poder e impunidade. 


Mas o legado real de Bolsonaro vai além da blindagem geral. Ao transformar o debate público em guerra de gangues, onde, em nome de Deus, os crimes de um lado — e em benefício deste lado — são relativizados e legitimados pela comparação com os crimes do outro, o presidente, seus filhos e sua claque — para a qual o problema é ser pego — corrompem não só as tradições liberal e conservadora, como também a moral cristã, anestesiando a população com o conformismo em ser roubada. Em outubro, os eleitores vão decidir se querem ser assim "a vida toda". 

 

Infelizmente, a alternativa que se coloca a Bolsonaro é a pior possível. Rezemos para que o imponderável tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, pois, sem Lula no páreo, Simone Tebet tem chance de derrotar o capetão no segundo turno (como também teriam Moro e Doria se não tivessem sido elididos da disputa). 


Triste Brasil.