A crise gerada por Dilma remonta ao processo de criação de um Estado de modelo absolutista, no qual o chefe do Executivo sobrepõe seus interesses aos interesses dos cidadãos, escala auxiliares tão inábeis quanto ele próprio e não presta contas a ninguém.
Governos assim são bombas-relógio, desastres anunciados, cataclismas à espera o momento de acontecer. No "presidencialismo de coalizão" (ou de cooptação, como queira o leitor), o mandatário é um "gigante de pés de barro", pois depende da base aliada, de acordos com as oligarquias e do dinheiro das empresas para "governar". Em outras palavras, ao invés vez de mandar no sentido absolutista, presidente é mandado. Se tiver capacidade política e diplomática, ele até pode se sair razoavelmente bem, mas nem Dilma nem Bolsonaro jamais tiveram essas virtudes e sempre escolheram mal seus assessores.
Collor granjeou grande impopularidade com o sequestro das poupanças — que arruinou seu relacionamento com todas as classes brasileiras. Seu minúsculo partido (PRN) dependia vitalmente das demais legendas e jamais teve uma base sólida como a do MDB (que então atendia por PMDB; a sigla só perderia o "P" em 2017), e por isso foi impichado (não que não houvesse motivos de sobra para penabundar o caçador de marajás de festim, mas isso é outra conversa).
Dilma recebeu de FHC e de Lula a capacidade de aliança com grandes partidos, mas a inabilidade de seus negociadores não permitiu que ela a levasse adiante. Na verdade, a erosão do governo da presidanta teve início no segundo mandato de seu antecessor e mentor, quando a aliança com o PMDB começou a fazer água. Ao fim e ao cabo, a arrogância e a falta de jogo de cintura no trato com o Parlamento (e não as tais pedaladas fiscais, que não passaram de um simples pretexto) desencadearam seu impeachment.
O Estado brasileiro funciona desde sempre à base de corrupção. A negociação entre o Executivo e o Legislativo acontece na maioria das democracias, mas no Brasil isso ocorre de uma maneira absolutamente delirante. Não se nega que a Constituição de 1988 seja eminentemente parlamentarista, e que o parlamentarismo foi descartado no plebiscito de 1993 pelo esclarecidíssimo eleitorado tupiniquim, que preferiu o presidencialismo de coalizão. E deu no que deu. Nosso Executivo é quase irresponsável, e nosso Parlamento não é responsável. O princípio da responsabilidade não existe no Brasil. O Congresso não assume a plena responsabilidade pela governança e, quando não chantageia o mandatário de turno, é subserviente a ele.
No artigo intitulado "Lula, o senhor da razão", de 1987, o doutor em filosofia e professor de Ética Política na Unicamp Roberto Romano salientou que Lula sempre adotou uma postura extremamente conservadora e intimamente ligada à sua pessoa, que não orna com um país democrático. Desde a greve do ABC, o sapo barbudo sempre foi protegido, e sempre lhe faltou a característica de um líder colegiado ― tanto é que o PT só tem Lula, e em seu favor foram abortadas todas as tentativas de lideranças regionais; quando ele for chamado a despachar com o capiroto, o partido do qual ele é o eterno presidente de honra ficará sem alternativa.
Um slogan muito usado na campanha petista era "a esperança venceu o medo". Mas o medo voltou e a esperança chegou ao fundo do poço, como demonstrou a impopularidade da "papisa da subversão" (detalhes mais adiante) e a derrocada do PT nas eleições municipais. O diabo é que o desgoverno de Bolsonaro reavivou a chama (então bruxuleante) do lulopetismo, fazendo com que o desempregado que deu certo renascesse, tal e qual a mitológica Fênix.
Para quem tem ao menos dois neurônios funcionais, escolher entre Nhô-Ruim e Nhô-Pior será uma missão ingrata. Mas os sucessivos boicotes à tão sonhada "terceira via" — que obrigaram Doria a desistir e impediram Moro de seguir adiante —, somados ao fato de Simone Tebet ter dormido no ponto e de Ciro Gomes estar fadado a amargar sua quarta derrota, colocaram-nos numa extraordinária sinuca de bico.
Os motivos pelos quais eu repudio o lulopetismo atávico são basicamente os mesmos que me levam a rejeitar o bolsonarismo boçal. Só que o fato de o ex-capitão ser o pior mandatário desde Tomé de Souza não justifica apoiar a volta de Lula. Lamentavelmente, as pesquisas indicam que o eleitorado age como o sujeito que vai almoçar, vê que as únicas opções do cardápio são merda à parmegiana e bosta à moda da casa e fica em dúvida sobre o que pedir, quando deveria ir comer em outro lugar.
Desde que deixou a prisão e recuperou seus direitos políticos, o petralha vem defendendo o "restabelecimento" da democracia no Brasil. Resta saber com que autoridade, considerando que escândalos de corrupção marcaram suas gestões, sem falar em sua notória simpatia por regimes e líderes autoritários mundo afora e suas tentativas de “regulamentar” os meios de comunicação — incluindo, agora, as mídias sociais.
E não me venham com a falácia de que a anulação dos processos e o "reconhecimento" da parcialidade do ex-juiz Sergio Moro significam que Lula foi perseguido, condenado e preso injustamente. Ao longo dos últimos anos, ele respondeu a mais 20 ações criminais e foi absolvido em apenas três. As demais tiveram a tramitação interrompida por tecnicidades ou reviravoltas resultaram em seu arquivamento.
No caso do tríplex, que rendeu 580 dias de férias compulsórias em Curitiba, a pena de 9 anos e meio de reclusão aplicada por Moro foi aumentada para 12 anos, 1 mês e 10 dias pelos desembargadores da 8ª Turma do TRF-4 e reduzida para 8 anos, 10 meses e 20 dias pelos ministros da 5ª Turma do STJ — instância na qual a condenação transitou em julgado depois de pouco mais de 2 anos de tramitação e cerca de 400 recursos apresentados pela defesa. No caso do sítio, a pena de 12 anos e 11 meses de reclusão foi determinada pela juíza substituta Gabriela Hardt e aumentada para 17 anos, 1 mês e 10 dias pelo TRF-4. Mas o ventos mudaram, e uma curiosa "epifania" revelou ao ministro-relator dos processos da Lava-Jato no STF que a 13ª Vara Federal de Curitiba não tinha competência territorial para processar e julgar o petralha.
Comenta-se que Fachin tomou sua teratológica decisão para evitar que Moro fosse declarado suspeito. Verdade ou não, o resultado foi que os quatro processos que tramitavam contra Lula em Curitiba voltaram à estaca zero e Moro passou de herói nacional a juiz parcial. Isso levou o PT a lançar uma peça publicitária — intitulada “Memorial da Verdade” — que elenca os processos nos quais Lula foi "inocentado" ou "absolvido". Mas é importante não confundir discurso político com discurso jurídico.
Dos 19 casos em que os petistas dizem que seu amado líder foi inocentado, dois são trancamentos de investigações, quatro são denúncias rejeitadas, quatro são decisões anuladas — em virtude da "suspeição" de Moro —, dois são arquivamentos, um prescreveu e em outro as palestras do palanque ambulante foram consideradas "legais". Tecnicamente, pelo menos dois desses processos poderiam ser retomados, uma vez que o próprio STF não apontou ausência de provas, mas sim erros processuais. O problema é que o prazo prescricional é reduzido pela metade quando o réu é septuagenário. Considerando a celeridade da Justiça tupiniquim, Lula precisaria reencarnar meia dúzia de vezes para ser julgado, condenado e preso novamente, e o dito popular que atribui sete vidas aos gatos não contempla gatunos.
Em face do exposto, Lula posa de inocente sem ter sido inocentado. Mal comparando, sua conversão a “ex-corrupto” é tão esdrúxula quanto a soltura de um criminoso preso em flagrante pela Guarda Civil Metropolitana porque a prisão deveria ter sido feita pela Polícia Militar. Triste Brasil!
Continua...