terça-feira, 27 de setembro de 2022

A MALDITA POLARIZAÇÃO (TERCEIRA PARTE)

Na definição de um ministro palaciano, Bolsonaro foi a Londres e a Nova Iorque para "cumprir suas obrigações de chefe de Estado". Nessa versão, ele seria "espinafrado pela imprensa" se tivesse se ausentado dos funerais da rainha e da abertura da Assembleia-Geral da ONU. Pode até ser, mas um presidente que, não tendo nada a dizer, se abstivesse de demonstrar seu vazio com palavras despejadas a esmo na conjuntura internacional sairia mais barato para o Tesouro Nacional. 
 
Durante quase 20 minutos, Bolsonaro converteu a tribuna da ONU em puxadinho do horário político. Falou bem de si mesmo e mal do adversário. Expôs a roubalheira petista e ocultou a corrupção do orçamento secreto. Enalteceu a pujança exportadora do agronegócio sem mencionar a fome no Brasil. Bateu o bumbo dos indicadores econômicos e repetiu fabulações conhecidas sobre pandemia e meio ambiente.
Disse inverdades e meias verdades — enfatizando sempre a parte mentirosa, mas evitando o timbre radical que pontuou os pronunciamentos dos anos anteriores.

ObservaçãoNo sistema comandado por Bolsonaro, chefe de uma organização familiar com fins lucrativos, não há corruptos, apenas pessoas movidas pela ideologia da rachadinha. Com o aval do Planalto, pastores plantaram bananeira dentro dos cofres do MEC. As verbas federais continuaram saindo pelo ladrão porque os ladrões foram enfiados dentro do orçamento, agora qualificado de secreto.

Esse Bolsonaro da ONU declarou que não poupou esforços para salvar vidas e preservar empregos durante a pandemia. Nada a ver com o negacionista do ano anterior, que foi obrigado a comer pizza numa calçada de Nova Iorque por não estar vacinado. Um sujeito muito diferente também do candidato que, dias atrás, tentou conter os danos eleitorais da "gripezinha" ao admitir que "deu uma aloprada" quando afirmou "não sou coveiro". A pretexto de fazer média com o eleitorado feminino, enalteceu na ONU "o trabalho de voluntariado" da primeira-dama, omitindo nesse trecho o capitão "imbrochável" que utiliza sua "princesa", uma "ajudadora" contumaz, como bibelô eleitoral. A alturas tantas, deu um jeito de injetar no discurso uma menção aos mega comícios que obteve ao sequestrar o Dia da Pátria e recriou as imagens que o TSE proibiu sua campanha de usar na propaganda eleitoral. 
 
O vexame da ONU foi menos estridente do que o aparelhamento eleitoral dos funerais da rainha, sepultada na véspera, em Londres, mas Bolsonaro não seria Bolsonaro se passasse por NYC sem flertar com o Apocalipse: "Essas pesquisas não valem de nada", disse a um repórter da BBC que ousou questioná-lo sobre o favoritismo de Lula. "Se você acredita em pesquisas, não vou falar contigo." Perguntado se deixará o cargo caso perca as eleições, respondeu: "Não vou falar em hipóteses. Vamos ganhar no primeiro turno." 

Observação: Em entrevista ao SBT, o presidente disse que "se não vencer a eleição presidencial no 1º turno com mais de 60% dos votos, 'algo de anormal' terá acontecido no TSE (essa declaração foi dada menos de uma semana após a Justiça Eleitoral aprovar uma proposta das Forças Armadas para incluir a biometria no teste de integridade das urnas realizado no dia das eleições). 
 
Ficou boiando na atmosfera uma interrogação: a 12 dias da eleição, um discurso sem novidades, pronunciado em ambiente internacional por um presidente que as pesquisas dizem estar em apuros, produzirá a desejada virada eleitoral? Parece improvável. A clientela dos programas sociais do governo, majoritariamente fechada com Lula, prefere um prato feito a um discurso malfeito. Com uma taxa de rejeição rodando os 50%, Bolsonaro precisa atenuar a aversão do eleitorado para obter votos novos e elevar o índice de rejeição de Lula. Mas seu pronunciamento na ONU expôs mais do mesmo. 
 
Um presidente da República não é apenas um paletó, uma faixa e meia dúzia de poses. É preciso que exista por trás da indumentária, da faixa e das poses uma noção qualquer de ética e decoro. Ao injetar sua campanha eleitoral nos funerais da rainha e na programação da ONUBolsonaro exibiu um comportamento de vereador. Recebido como astro pop por cerca de duas centenas de pessoas, o capitão subiu numa cadeira como um edil que escala o caixote em praça pública — ou como um presidente que confunde sacada de embaixada londrina com palanque. Sob ovação e gritos de "mito", declarou-se "imorrível", pois sobreviveu à facada de 2018; e "imbrochável", pois resiste às provações do trono presidencial. 

Esse Bolsonaro genuíno, puro em sua desqualificação, repetiu que não errou em nenhuma das declarações que vez durante a pandemia. Referiu-se ao Brasil como "terra prometida". Mas o leite e o mel ainda não escorreram nessa Canaã bolsonarista. Ao contrário, o país está de volta ao mapa da fome. Mas o capitão se considera reeleito.
 
Bolsonaro levou palanque eleitoral ao exterior. No caso de Londres, a reação dos jornais ingleses foi ainda mais negativa, pois o presidente se aproveitou de um momento solene para fazer comício. O resultado da corrida presidencial depende basicamente da profundidade com que o eleitor olha para o país. Se olhar com meio centímetro — a mesma profundidade dos discursos do candidato à reeleição —, a vitória de Bolsonaro estaria assegurada. 

O problema é que a maioria pobre que mantém o favoritismo de Lula mora em profundezas abissais. E esse tipo de eleitor não está interessado nos vexames que o presidente dá no exterior, e sim à procura de algo que o atual presidente não foi capaz de prover em quatro anos: esperança.

Com Josias de Souza