quarta-feira, 2 de novembro de 2022

JUS SPERNIANDI — QUANDO O INCONFORMISMO SE TORNA ABUSO DO DIREITO DE RECORRER


Bolsonaro venceu em 13 Estados e no DF, mas não se reelegeu por uma diferença de pouco mais de 2 milhões de votos. Parece pouco diante de um universo de 118.552.353 votos válidos, mas é muito se considerarmos que apenas 17 municípios brasileiros têm mais de 1 milhão de habitantes. A derrota não foi acachapante, mas decretou o fim da mais abjeta gestão desde a redemocratização, ainda que não o fim do bolsonarismo. Até o fechamento deste texto, o prolongado silêncio do "mito" já o tornava o candidato derrotado que mais demorou a falar depois de uma eleição no qual saiu perdedor.

Atualização: Aleluia! Also sprach Bolsonaro"Quero começar agradecendo os 58 milhões de brasileiros que votaram em mim no último dia 30. Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral. As manifestações pacíficas sempre são bem-vindas, mas nossos métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedade, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir", disse sua alteza irreal num pronunciamento de 2 minutos e digno de um estadista como manda o figurino (como todas as ironias de estilo). Ou, na avaliação de Josias de Souza, "uma pantomima deplorável e deprimente"Apesar de ter criticado os bloqueios, Bolsonaro atribuiu as manifestações anti-democráticas à "indignação e sentimento de injustiça em relação ao processo eleitoral". Um pronunciamento deplorável, seja porque chegou tarde, seja porque chegou mal.
 
O encastelamento desse senhor evidenciava a intenção de não dispensar a seu sucessor a mesma deferência que lhe foi dispensada por Michel Temer há quatro anos. Não fosse assim, o Tribunal de Contas da União (TCU) não teria anunciado a criação de um comitê para garantir a transição do governo — com duração de 90 dias contados do último dia primeiro. Demais disso, desde o anúncio do resultado do pleito que caminhoneiros vêm organizando bloqueios em protesto contra o resultado das urnas. 
 
Um grupo majoritário de ministros do STF firmou um acordo tácito para reagir com rapidez a qualquer movimento que ameace a transição de governo e o processo democrático. Disseminou-se entre as togas a convicção de que a Polícia Rodoviária Federal faz corpo mole diante dos bloqueios — coisa deliberada, com o aval do Planalto. O entendimento resultou no referendo relâmpago à ordem do ministro Alexandre de Moraes, que também preside o TSE, para que a Polícia Rodoviária Federal cumprisse o dever legal de liberar o tráfego. Nas palavras desse ministro, há "um desejo coletivo de evitar que ocorra no Brasil algo parecido com um Capitólio". 
 
De acordo com a decisão avalizada pelo plenário do Supremo, a desobediência pode custar o cargo ao diretor bolsonarista da PRF, além de prisão em flagrante e multa de R$ 100 mil por hora de omissão. A Corte determinou também que o ministro bolsonarista da Justiça adotasse as providências cabíveis. Na manhã desta terça-feira, Anderson Torres informou que os policiais rodoviários estavam trabalhando "ininterruptamente" para desbloquear as estradas. Mas ainda havia 271 trechos bloqueados em rodovias de 14 estados.
 
Bolsonaro se espelha em Donald Trump e nunca disfarçou a intenção de protagonizar uma versão tabajara da invasão do Capitólio. Fora do poder, o ex-presidente dos EUA conseguiu manter o trumpismo vivo e, como força política, segue em plena forma. No Brasil, a antipolítica se mostrou forte nestas eleições — embora não tão forte quanto foi em 2018 —, e o bolsonarismo se consolidou como opção popular de direita num país dividido, apesar de sua ficha-corrida de má governança e das bizarrices ideológicas resumidas nas ações armadas de aliados nesta semana que passou.
 
Observação: A ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanas, ora senadora eleita pelo DF, afirmou que o presidente "deixará o cargo, em janeiro, de cabeça erguida, com a certeza de dever cumprido" — pausa para as gargalhadas.
 
Bolsonaro poderia simplesmente gastar os dias que lhe restam até a transmissão do cargo dedicando-se ao ócio que tanto aprecia, mas prefere pôr e risco a frágil estabilidade do país demonstrando inconformismo com a vitória do adversário. Isso é que é patriotismo, mais é prosa.
 
Uma medida provisória editada por FHC em 2002 (e convertida na lei 10.609) garante ao presidente eleito o direito de exigir, inclusive judicialmente, a integração de sua equipe de transição à administração federal. Mesmo que Lira e Aras deixassem de blindar o ainda chefe do Executivo, não haveria tempo hábil para um impeachment ou um processo por crime comum resultar em deposição. A partir de janeiro, com o fim do foro privilegiado, as ações que tramitam contra ele no STF baixarão para a primeira instância, e procuradores dos Ministérios Públicos dos estados onde os supostos crimes foram cometidos também poderão indiciar o já ex-mandatário. Mas é improvável que Bolsonaro acabe na cadeia.
 
Processos envolvendo ex-presidentes eleitos pelo voto direto desde a redemocratização renderam 580 dias de "férias compulsórias" a Lula e míseros 5 dias de prisão preventiva a Temer — que foi solto por uma liminar concedida monocraticamente por um desembargador que J.R. Guzzo classificou magistralmente como “especialista em libertar ladrões do erário que ficou sete anos afastado da magistratura por acusações de praticar estelionato”. Já Lula, em seu périplo rumo à canonização, voltará ao Planalto no dia 1º de janeiro de 2023. 
 
Não era esperado que Bolsonaro cumprimentasse Lula pela vitória, mas daí a não se pronunciar sobre sua derrota por quase 48 horas, dando azo a ações espúrias como a dos caminhoneiros — que vão muito além das tais "4 linhas da Constituição" —, vai uma longo distância. 

De acordo com a coluna de Andréia Sadi no g1, Bolsonaro não está em silêncio nem tampouco nega a aliados a vitória de Lula. Ele está inconformado com sua primeira derrota nas urnas desde que disputou uma eleição para vereador nos anos 1980. O que ele quer, na avaliação da colunista, é mais tempo como “presidente do caos”. Em grupos de WhatsApp com militares reformados e integrantes do governo, circulam mensagens de bolsonaristas comemorando os bloqueios que atrapalham a vida da população.
 
Bolsonaro conta com aliados como os ministros da Justiça e do GSI, diz Sadi, mas não conta com o Centrão. Ainda no domingo, ao ser informado de que a fiscalização de militares nas urnas do segundo turno não havia encontrado nada de errado, o presidente foi dormir. Na segunda, iniciou o processo da sua transição particular: tentar prorrogar seus últimos dias na presidência fazendo o que sabe de melhor: muito barulho sob o signo do caos.