sexta-feira, 31 de março de 2023

MAIS SOBRE A VOLTA DE QUEM DEVERIA TER IDO DE VEZ

 

Bolsonaro se articulou com o ex-presidiário do mensalão e dono do PL para transformar em comício a cena do seu retorno ao Brasil. Embora o esquema de segurança implementado pelo governo do DF estimasse que pelo menos 10 mil devotos se mobilizariam para recepcionar o fujão, o que se viu foram apenas algumas centenas de gatos pingados gritando "mito". 
 
A Polícia Federal marcou para quarta-feira o depoimento do ex-presidente no inquérito sobre as joias sauditas. Isso exigirá que ele interprete simultaneamente dois personagens conflitantes: o do capitão fortão, com musculatura de líder da direita nacional, e o da vítima fraquinha, que se referirá aos inquéritos e processos na Justiça como parte de um grande complô (nada muito diferente do que Lula fez antes, durante e depois de sua prisão). Vale destacar que a teoria do complô deve reconfortar os bolsonaristas convictos, para quem o país está diante de uma sequência impressionante de coincidências maliciosamente interpretadas que tornaram um político exemplar parecido com um ladrão de joias.
 
O retorno à cena do crime trouxe à baila um problema que estava exilado há três meses nos domínios do Pateta. Ninguém sabe muito bem como tratar o personagem. Por precaução, o esquema de segurança empurrou o viajante para uma porta lateral, para que eventuais apoiadores não o estimulassem a fazer os truques que lhe renderam, na família, a fama de "mito".
 
A tolerância vigiada concede a Bolsonaro uma respeitabilidade democrática que os responsáveis pelos inquéritos e processos que o envolvem sabem que ele não merece. A provável decretação de sua inelegibilidade fará com que ele esteja dormindo antes do início da festa de 2026, provavelmente com um sobrinho-neto — ou com Valdemar Costa Neto — no colo. Mas a PF conhece seu hábito de afanar joias da penteadeira, daí ter marcado para a semana que vem sua oitiva sobre a muamba das arábias. Nesse entretempo, o TCU determinou a devolução do Rolex de outro branco cravejado com brilhantes, da caneta Chopard e dos outros objetos de luxo desencavados na penúltima descoberta da imprensa.
 
Observação: Considerando que Bolsonaro se orgulhava de usar canetas Bic (até que a crise diplomática com a França o levou a trocá-las por esferográficas da marca Compactor) e exibia no pulso um prosaico AQUA GP477 — imitação barata de um modelo da Casio, vendida pelos camelôs por R$ 30 —, causa estranheza o fato de seu acervo pessoal incluir 44 relógios e não sei quantas canetas de grife, entre os quais modelos caríssimos das marcas Rolex, Hublot e Chopard (só o Chopard L.U.C. Tourbillon Qualité Fleurier, que teve apenas 25 unidades produzidas, vale cerca R$ 800 mil)
 
Desonestos convencionais escondem a sujeira embaixo do tapete. Pelas bordas do tapete de Bolsonaro vazam diamantes. A dois dias de seu retorno terra do Pateta, descobriu-se um terceiro embrulho de joias sauditas — coisa fina, avaliada em R$ 500 mil. Neste episódio em particular, ele recebeu as joias pessoalmente, durante uma visita que realizou à Arábia Saudita em 2019, o que lhe poupou o inconveniente de ter que esconder a prenda como muamba na bagagem da comitiva presidencial.
 
Até recentemente, Bolsonaro era visto sobretudo como um punguista ideológico. Mastigava votos conservadores e arrotava arcaísmo. Dizia ser liberal e enricava com o empreendimento da rachadinha. Fazia pose de político antissistema enquanto entregava os cofres do Estado ao patrimonialismo corrupto. De repente, evoluiu para a incômoda posição de ladrão de joias. A questão agora é saber quantas joias terão que vazar pelas bordas do tapete para que ele seja responsabilizado criminalmente pelo saque. 
 
Valdemar Costa Neto — o ex-presidiário do mensalão que administra o PL como dono, dispensa atestado de honra, já que Bolsonaro ocupará a presidência de honra do partido. Serão R$ 42 mensais (pagos com verba pública do fundo partidário) em troca de ociosidade remunerada. Aliás, a ex-primeira dama
 receberá (da mesma fonte) R$ 33,7 mil para exercer a função decorativa de presidente da sessão feminina da legenda. Juntos, eles receberão do Tesouro Nacional R$ 117 mil por mês. Como se vê, a ex-presidência converteu-se num empreendimento muito rentável para o capitão, que já belisca R$ 11,9 mil como militar reformado e R$ 30 mil referentes à aposentadoria de ex-deputado.

Bolsonaro espeta sua sobrevivência — e a de seus familiares — no bolso do contribuinte desde os 18 anos, quando entrou para o Exército. Expurgado da força, ele foi eleito vereador e passou 27 anos no baixo clero da Câmara Federal até uma trapaça do destino alçá-lo ao Planalto, onde produziu mentiras, crises, baixarias e tuítes. E tudo indica que continuará se dedicando à fabricação do mesmo tipo de material, com a diferença de que será hiper remunerado sem precisara simular o derramamento de suor num cargo público.
 

Observação: Ex-presidentes não recebem salário (essa "aposentadoria” até existiu, mas foi suspensa no final dos anos 1980. Sem embargo, suas excelências têm direito a quatro servidores para segurança e apoio pessoal, dois veículos oficiais (com os respectivos motoristas) e assessoramento de dois servidores ocupantes de cargos em comissão, gastos com diárias de hotel, passagens de avião, combustível e seguros, tudo pago com dinheiro dos contribuintes. Menos mal que esses benefícios não sejam estendidos à família após a morte do ex-mandatário.
 
Bolsonaro revelou-se um personagem complexo. Por inglória, nefasta e abjeta, sua passagem pelo Planalto mostrou que ele não serve de exemplo. E o quebra-quebra de 8 de janeiro o transformou num fantástico aviso. Nesse contexto, oferecer cordialidade e condescendência a quem merece interrogatório pode ser um erro capital.
 
Com Josias de Souza