quinta-feira, 2 de março de 2023

SEM INTERMEDIÁRIOS

É próprio de governos autoritários querer uma ligação direta com a população, prescindindo dos canais comuns em regimes democráticos, como partidos políticos e imprensa livre. Na sua forma mais radical, a democracia direta se vale de plebiscitos — que podem ser manipulados — para consultar o povo sobre decisões importantes.
 
Quando é usado localmente — como nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, para decidir questões que atingem o dia a dia de uma comunidade —, o plebiscito é um instrumento democrático eficiente. Mas, quando se quer informar à população só o que interessa ao governo, a comunicação direta se transforma em mera ação de propaganda.
 
Foi por isso que nasceu a “Voz do Brasil” — propaganda política do governo Getúlio Vargas coordenada pelo tristemente famoso Departamento de Imprensa e Propaganda da ditadura da ocasião. Com os modernos meios de comunicação — primeiro a televisão, depois as mídias digitais —, a tentação de atingir milhões de cidadãos cresceu, e no primeiro governo Lula foi criada a Empresa Brasileira de Comunicação.
 
Em tese,  a EBC seria uma rede de comunicação pública, com emissoras de televisão, rádio e programação de internet, mas, na prática, virou instrumento de propaganda política, e teve no governo Bolsonaro seu ápice oficialista, transmitindo todas as ações do mandatário, com destaque para seus discursos em formaturas de militares — já indicando o caminho de politização das Forças Armadas que o ele forjava desde o início do mandato. 
 
Um exemplo de como a ideia de empresa pública se diferencia da máquina de propaganda governamental é a decisão da nova direção da EBC de adotar a tese petista de que o impeachment de Dilma foi um golpe parlamentar. Bolsonaro conseguia atingir seu público pelas lives transmitidas às quintas-feiras, que viraram um instrumento eficaz de propaganda política e mobilização de apoiadores. Foi por meio delas que alimentou as golpistas de 8 de janeiro. Agora, anuncia-se que Lula pretende adaptar a seu estilo a comunicação governamental, usando podcasts para se dirigir diretamente ao eleitorado.
 
Há diversas maneiras de presidentes de países democráticos se dirigirem aos cidadãos, da requisição de cadeia nacional de rádio e televisão para pronunciamentos importantes até entrevistas coletivas (ou mesmo individuais). O mandatário pode ainda se valer de um assessor de imprensa, ou porta-voz, para relatar diariamente as atividades do governo e dar a palavra oficial sobre temas de interesse público.
 
Líderes personalistas abrem mão desse tipo de assessor, como fez Bolsonaro ao dispensar o general Otávio do Rêgo Barros, que tentou organizar o contato do presidente com jornalistas. O capitão preferia o contato pessoal no “cercadinho” do Alvorada, onde falava o que queria a alguns seguidores fanáticos. Lula teve bons porta-vozes nos mandatos anteriores, mas agora parece disposto a ser se próprio porta-voz, falando quando quiser e sobre o que quiser.
 
O podcast a ser criado é uma consequência dessa decisão de não ter intermediários na comunicação com o povo. Uma das principais armas de Lula é a oratória, daí o tratamento de sua doença ter sido adaptado para ele não correr o risco de perder a voz. Nos podcasts, o petista poderá desenvolver essa aptidão e também aparecer com imagens no YouTube durante a gravação. No fim das contas, o formato é outro, mas o conceito é o mesmo: falar o que quiser, na hora que quiser, sem contestação.
 
Com Merval Pereira