quarta-feira, 20 de setembro de 2023

NO TEMPO EM QUE A TERRA AINDA ERA REDONDA...

 
No tempo em que a Terra ainda era redonda, os valores pareciam mais nítidos. Na hierarquia militar, o presidente da República, comandante-em-chefe das Forças Armadas, era superior a tenente-coronel, e ajudante de ordens cumpria ordens. 

Na Presidência da Terra plana, Bolsonaro — que o general Ernesto Geisel definiu como "um mau militar" — disse que o tenente Mauro Cid "tinha autonomia", contrapondo-se ao fator da subordinação alegado pela defesa. O acordo de colaboração do ex-esbirro está sob sigilo, mas as investigações apontam o ex-amo como mentor e beneficiário de um esquema internacional de venda de joias e o ex-vassalo e seu papai como os principais operadores. 

Em privado, o imbrochável diz que não contava com a "deserção" do ajudante, mas seu abatimento — comparável ao da derrota nas urnas — surpreendeu apoiadores. Em meio a esse breu, o PL encomendou uma pesquisa para estimar os danos, e o "mito", que que sempre falou dez vezes antes de pensar, passou a medir as palavras, como se tivesse uma régua no lugar da língua. O problema é que a língua de Cid se desprendeu da coleira.

Em algum momento, Bolsonaro terá que decidir se quer ser um capitãozinho-poodle ou o velho pitbull de sempre. Quando da prisão de Cid, ele afirmou que cada um deveria seguir a sua vida. Quando a PF escancarou o comércio das joias, disse que o ex-auxiliar tinha autonomia. Agora, com os dois pés na ficção, afirma não ver a hora de abraçá-lo — mas não esclarece se será um abraço de urso ou de tamanduá.

Quem ouve dizer que o 8 de Janeiro não foi uma tentativa de golpe fica com a sensação de um passageiro que sobrevoa a história sabendo que sua bagagem viaja em outro avião. Com as sentenças draconianas impostas aos três primeiros condenados pelos atos terroristas, o STF como que unificou o voo da história, colocando os brasileiros e a carga radioativa do governo anterior na mesma aeronave. Para nove das 11 togas, o objetivo da turba era reverter o resultado das urnas mediante um golpe de Estado (foram empurrados para a borda da Terra plana os ministros bolsonaristas Nunes Marques e André Mendonça).

Foi fácil militarizar a política; difícil, agora, é desbolsonarizar os militares. Segundo o Datafolha, 6 em cada dez brasileiros acreditam que as Forças Armadas meteram-se em irregularidades, e a reversão de uma urucubaca tão disseminada exige mandinga mais forte do que o lero-lero de "separar o joio do trigo". Os resultado da pesquisa faz sentido, pois os fardados se deixaram cavalgar por um capitão que o general-ditador que começou a desmontar a ditadura definiu como "um mau militar". 

Hoje, a vida pública se reduz novamente a uma dimensão de caserna. Altas nomeações políticas dependem da confiança num antigo companheiro de guarnição. Sob Bolsonaro, o Estado tornou-se quartel, e o pedaço que viu no mandatário de fancaria a chance de "salvar a sociedade do comunismo" conferiu péssima fama à ala da Caserna que manteve os pés na democracia. 

O 8 de Janeiro entra para os compêndios de história como o golpe que falhou porque o candidato a tiranete não conseguiu o apoio de "seu Exército" e de "suas Forças Armadas." Mas há mãos fardadas em todas as cumbucas — da trama golpista ao comércio de joias; da pazuellização da Saúde à falsificação de cartões de vacina; do ataque sistemático ao sistema eleitoral às visitas do picareta de Araraquara à pasta da Defesa. Ao testemunhar em silêncio as extravagâncias de Bolsonaro, a banda muda do Alto-Comando das FFAA como que se aliou às multidões que acamparam na porta dos quartéis para pedir intervenção militar. 
 
É natural que o brasileiro tenha dificuldade para distinguir general de generalidades. Especula-se que as desculpas esfarrapadas das Forças Armadas não conseguirão vestir nem 5% dos segredos que o tenente-coronel Mauro Cid deve incluir em sua delação. 

Aos olhos da população, os milicos ficaram muito parecidos com um típico político brasileiro .

Com Josias de Souza