domingo, 24 de setembro de 2023

SÓ FALTOU O PAPAGAIO


As evidências sobre o escândalo das joias sauditas, a falsificação de cartões de vacinas e a tentativa de golpe de Estado vêm trazendo alguns bolsonaristas fanáticos de volta à realidade. Ainda que timidamente e a contragosto, eles reconhecem que o “mito” era de barro e representava (e ainda representa) uma ameaça real à democracia brasileira, como a delação de Mauro Cid (ou o que já se conhece de seu conteúdo) deixa evidente.

Cid detalhou o plano de golpe pretendido por Bolsonaro e colocou o então comandante da Marinha, Almir Garnier, no topo da cadeia de comando dos golpistas ao afirmar que o militar aceitou participar da tomada ilegal de poder. Disse ainda
 que "um monte de maluco" incitava o ex-presidente a usar o Artigo 142 das Constituição para permitir que as Forças Armadas tomassem o poder, prender Moraes, convocar novas eleições e ordenar o uso do voto impresso, e que a recusa do Exército em embarcar no golpe deprimiu seu ex-chefe, que esperava contar com o apoio dos generais. 

Alegando qualquer tentativa fora da Constituição seria golpe, a alta cúpula do Exército rejeitou a proposta, mas a escumalha bolsonarista (a exemplo da patuleia, por época da condenação de Lula) argumenta que "é apenas uma delação; cadê as provas?", e que "para sair da prisão o cara fala qualquer coisa!". Ocorre que, para ser aceito, um acordo de colaboração precisa conter provas ou elementos que levem a elas, e o que veio à tona sobre a delação de Cid confirma o "passo a passo" que se observou desde a derrota de Bolsonaro no segundo turno.
 
O que mais chama a atenção no capítulo sobre a tentativa de golpe são as revelações inacreditavelmente críveis. Ligando-se os segredos testemunhados pelo ex-ajudante aos episódios que marcaram o isolamento do ex-presidente, constata-se que o Alvorada foi convertido numa espécie de chocadeira do ovo da serpente que tentou dar o bote no fatídico 8 de Janeiro. 

Observação: No final de novembro, o general Braga Netto, vice na chapa derrotada, pediu paciência aos bolsonaristas, deixando implícito que o bunker do Alvorada planejava um Apocalipse. Um dia depois, Valdemar Costa Neto revelou ter sido pressionado por Bolsonaro a ingressar com ação no TSE questionando cerca de 250 mil urnas antigas usadas no pleito. Protocolada na semana seguinte, a ação foi rejeitada e rendeu uma multa de R$ 22,9 milhões ao partido. 
 
Na live que levou ao ar na véspera de sua fuga para a Flórida, Bolsonaro soou como se lamentasse não ter conseguido apoio para o golpe: "Eu busquei dentro das quatro linhas se tinha alguma alternativa para isso aí", disse ele. E completou: "Certas medidas têm que ter apoio do Parlamento, do Supremo, de outros órgãos e instituições". 
 
Cid coloca nas mãos do ex-chefe uma minuta golpista que previa a prisão de adversários e a convocação de novas eleições — coisa muito parecida com o documento apreendido na casa do ex-ministro Anderson Torres. Segundo o delator, Bolsonaro sondou a cúpula militar sobre a viabilidade da virada de mesa, mas somente o comandante da Marinha aderiu explicitamente ao golpe (daí o timbre lamurioso da live que antecedeu a fuga). 

Torres tratou a minuta que previa intervenção militar no TSE como uma bobagem que lhe foi entregue e que ele pretendia jogar no lixo. Mas texto ganhou sentido quando visto como segunda etapa da decretação de uma GLO prevista na minuta encontrada anteriormente pela PF no celular de Cid, que foi citada pelo ministro Benedito Gonçalves (relator do processo que resultou na inelegibilidade de Bolsonaro). Essa minuta constava das mensagens trocadas entre Cid e o sargento Luís Marcos dos Reis, que discutiam como convencer a cúpula do Exército a embarcar na empreitada. Se for confirmado que se trata da mesma minuta encontrada com Torres, o motivo que levou os bolsonaristas a se esgoelarem em praça pública para atacar o documento ficará evidente (a PF não poderia dispor de um roteiro de investigação mais nitidamente esboçado). 

Inelegível, Bolsonaro já não via 2026; agora, começa a enxergar as grades e, às voltas com a síndrome do que está por vir, faz declarações esquisitas: "Eu posso discutir qualquer coisa, posso pensar qualquer coisa, mas se não botar em prática não tem problema", comportando-se mais ou menos como um sujeito que, flagrado quando tenta assassinar os pais, pede ao juiz clemência para um pobre quase órfão.

A impressão que se tem é de que só faltou o papagaio para completar a piada do golpe, mas o fato é que a democracia brasileira (ou o que sobrou dela) escapou por um triz. Reta saber como se posicionará o Judiciário — a julgar pelo caso de Lula, é possível que as esperanças dos verdadeiros patriotas morram na praia.
 
Com Josias e Souza e Leonardo Sakamoto