quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

O SAPATEIRO, AS SANDÁLIAS E A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

SATOR, NE ULTRA CREPIDAM.

Na mensagem Inteligência Artificial e Paz, o Papa Francisco alertou para os numerosos riscos associados ao desenvolvimento da IA e clamou pela regulação da tecnologia "em busca da paz e do bem comum". Até onde eu sei, o sumo pontífice não é especialista em TI, e muito menos em IA. Então, "sator, ne ultra crepidam". 
 
Observação: Conta-se que o famoso pintor grego Apeles, a quem devemos o retrato de Alexandre, o Grande, costumava expor seus quadros e se esconder para ouvir a opinião dos passantes. Quando o sapateiro da aldeia apontou um defeito qualquer numa sandália, Apeles fez as devidas alterações. Empolgado com a importância que lhe foi dada pelo pintor, o lambe-sola passou a sugerir outras correções na pintura, e ouviu do artista a famosa frase "sator, ne ultra crepidam" ("não vá o sapateiro além das sandálias").
 
De acordo com um levantamento feito pela Ipsos, 51% dos 
com 21,8 mil entrevistados acreditam que a IA deve agravar a disseminação de fake news e 74%, que essa tecnologia contribui para a criação de imagens e histórias falsas. Ainda assim, 72% se dizem capazes de diferenciar uma notícia verdadeira de uma falsa. Outra pesquisa revela que a maioria dos alunos que precisam usar computadores nas escolas desconhecem atalhos de teclado essenciais, como CTRL+Z (desfazer ações), CTRL+C (copiar), CTRL+X (recortar) e CTRL+V (colar). Apesar de 94% dos entrevistados disporem de desktops ou notebooks em casa, somente os entusiastas de games sabem usar minimamente o teclado.
 
Com a popularização das redes sociais, a mídia deixou de dominar as massas e passou a ser controlada por elas. Isso trouxe dois problemas: 1) as massas são despreparadas, ignorantes, rudes e perniciosas; 2) quando se dá voz aos burros não se pode reclamar dos zurros. De acordo com José Saramago, "a cegueira é um assunto particular entre as pessoas e os olhos com que nasceram; não há nada que se possa fazer a respeito". 

Observação: O escritor português joga com a diferença entre as palavras "ver" e "olhar", onde a primeira remete ao ato de enxergar, e a segunda à capacidade de observar, de analisar uma situação. Assim, a "cegueira mental" — dificuldade em conseguir enxergar além do superficial — pode ser definida como a alienação do homem em relação a si mesmo.
 
Como bem frisou o também escritor Umberto Eco, "o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade". Crítico do papel das novas tecnologias na disseminação de informações, 
o autor de O Nome da Rosa enfatizou que "eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel". Para o pensador italiano, antes das redes sociais os "idiotas da aldeia" tinham direito à palavra somente "em um bar, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade".
 
O Ludismo foi um movimento social que surgiu no início do século 19, durante a Revolução Industrial. Defensores ferrenhos do
 anarcoprimitivismo, os luditas se opunham à automação, que viam como uma ameaça a seus empregos, e destruíam as máquinas industriais como forma de resistir às mudanças tecnológicas.
 
Não existe até o momento uma definição única de inteligência artificial no mundo da ciência e da tecnologia — o próprio termo abrange uma variedade de ciências, teorias e técnicas destinadas a fazer com que as máquinas emulem as capacidades cognitivas dos seres humanos. É fato que a capacidade dos chatbots de executar as tarefas que lhes são atribuídas vem avançando a passos largos, e que a tomada de decisões éticas é mais que uma coleção complexa de algoritmos. Mas cercear o avanço do progresso é um retrocesso, pouco importa se defendido pelo Papa, pelo presidente da República ou pelos "idiotas da aldeia". 
 
O impacto de qualquer dispositivo de inteligência artificial depende não apenas de sua concepção técnica, mas também dos objetivos e interesses de seus criadores e das situações em que serão utilizados. O resultado positivo só será alcançado se todos forem capazes de agir de forma responsável, até porque a liberdade e a coexistência pacífica são ameaçadas sempre que as pessoas cedem à tentação do egoísmo, do interesse próprio, do desejo de lucro e da sede de poder. 
 
A inteligência artificial se tornará cada vez mais importante, e os desafios que se colocam não são apenas técnicos, mas também antropológicos, educacionais, sociais e políticos. A aprendizagem automática enseja questões que têm a ver com a compreensão mais profunda do significado da vida e a construção do conhecimento humano, transcendendo, portanto, os domínios da tecnologia e da engenharia. E ainda há muito a evoluir, até porque a capacidade dos bots de produzir textos sintática e semanticamente coerentes não é garantia de sua confiabilidade, e o uso da IA em campanhas de desinformação resulta numa desconfiança crescente nos meios de comunicação. 

A interferência em eleições e a ascensão de uma sociedade de vigilância tendem a alimentar conflitos e dificultar a paz, ainda que nem mesmo os algoritmos mais avançados ofereçam previsões garantidas do futuro, até porque nem tudo pode ser previsto nem calculado. Máquinas inteligentes tendem a executar as tarefas que lhes são atribuídas com eficiência cada vez maior, mas o propósito e o significado de suas operações continuam (e continuarão) sendo determinados ou possibilitados por seres humanos. Propor a superação de todos os limites através da tecnologia, num desejo obsessivo de controlar tudo, implica o risco de sermos escravizados por uma "ditadura tecnológica", na qual erros sistêmicos podem produzir injustiças individuais e formas reais de desigualdade social. 
 
Num mundo perfeito, as aplicações tecnológicas mais avançadas não seriam usadas na resolução violenta de conflitos, e sim para pavimentar o caminho da paz. Mas não vivemos num mundo perfeito; nas mãos de um psicopata homicida, um martelo ou uma prosaica faca de cozinha se transformam em armas letais (vale lembrar que armas não matam pessoas; pessoas matam pessoas).  
 
Acidentes aéreos, fluviais, ferroviários e rodoviários acontecem com frequência e não raro produzem vítimas fatais, mas nem por isso cogita-se trocar os automóveis por veículos de tração animal ou transatlânticos movidos a diesel pelas jurássicas caravelas. Mas há quem diga que os computadores vieram para resolver todos os problemas que não tínhamos quando eles não existiam, e que os egípcios alinharam as pirâmides de Gizé com os pontos cardeais e a constelação de Orion valendo-se de ábacos, do "olhômetro" e da sombra projetada por uma haste como a dos antigos relógios de sol.
 
Como dizia minha finada avó, nem tanto ao mar, nem tanto à terra.