A Themis de pedra que decora a entrada do STF tem os olhos e os ouvidos cobertos por uma venda, talvez para ser poupada do constrangimento produzido pelo ministro Dias Toffoli. Depois de anular provas e suspender o pagamento das multas bilionárias impostas à Odebrecht e à J&F, o nobre magistrado (que, nunca é demais lembrar, bombou em dois concursos para juiz de primeira instância) volta a atacar em pleno Carnaval, agora para acudir o ex-presidente e ex-senador Fernando Collor, que foi condenado em maio de 2023 a 8 anos e 10 meses de reclusão.
Quase 8 anos separa a denúncia da condenação, e mais um transcorreu até os embargos de declaração do caçador de marajás de festim começarem a ser apreciados no escurinho do plenário virtual, longe dos refletores da TV Justiça.
Observação: Embargos declaratórios destinam-se a esclarecer pontos obscuros, contraditórios ou omissos numa decisão judicial, mas não têm o condão de reabrir a discussão do mérito. Alegando problemas na dosimetria e a prescrição de delitos, a defesa de Collor pediu a redução da pena pela metade e contestou o pagamento de R$ 20 milhões por danos morais coletivos, que foge do escopo de uma ação penal.
Na última sexta-feira, assim que o ministro Alexandre de Moraes votou pelo indeferimento dos embargos, Toffoli vestiu a fantasia de paladino e emperrou o julgamento com um pedido de vista.
Observação: Os ministros pedem vista a pretexto de precisarem de mais tempo para formar seu entendimento, mas na prática eles utilizam esse instrumento para empurrar o julgamento com a barriga até que a maioria formada não faça mais sentido, ou que alguns de seus pares sinalizem a intenção de mudar o voto.
Até 2022, o ministro que pedisse vista devolver os autos na segunda sessão subsequente à do pedido, ms essa regra era solenemente ignorada — basta lembrar que o ministro Nelson Jobim (aposentado em 2014) levou quase mil dias para devolver uma ação de reintegração posse. Em 2022, a Emenda Regimental nº 58 fixou o prazo de 90 dias úteis para a devolução dos autos, sob pena de o caso retornar à pauta do plenário ou da turma automaticamente, mesmo sem o voto do ministro que pediu vista.
Em maio do ano passado, oito dos dez ministros (Lewandowski se aposentou um mês antes e Zanin só foi empossado três meses depois) votaram a favor da condenação de Collor. As excessões foram Gilmar Mendes e Nunes Marques. Fachin propôs 33 anos, 10 meses e 10 dias de prisão em regime inicialmente fechado, mas a proposta de Moraes prevaleceu. Quatro dos oito ministros que votaram pela condenação converteram a acusação de organização criminosa em associação criminosa (crime que prevê pena menor), e o empate resultou na pena mais branda. O detalhe — e o diabo mora nos detalhes — é que o prazo prescricional corre pela metade quando o réu é septuagenário. E Collor tinha 73 anos à época de sua condenação.
Observação: No jargão jurídico, o termo prescrição designa a perda de uma pretensão pelo decurso do tempo, como a perda da pretensão punitiva estatal em razão do decurso do lapso temporal previsto em lei. Daí os criminalistas chicaneiro "empurrarem com a barriga" o andamento processual mediante a interposição de recursos eminentemente procrastinatórios.
A PGR sustentou que Collor tenta "reabrir a discussão da causa, promover rediscussão de premissas fáticas e provas, além de atacar, por meio de via indevida, os fundamentos do acórdão condenatório". Em seu voto, Moraes anotou que a defesa tenta "rediscutir pontos já decididos" durante o julgamento da ação penal. Já o pedido de vista de Toffoli obstruiu a manifestação dos colegas, retardando o encarceramento do condenado. E mesmo que o ministro respeite o regimento interno e devolva os autos em até 90 dias úteis, ainda será preciso reagendar o julgamento e, na sequência, esperar publicação do acórdão para só então dar início à execução da pena.
O contribuinte, que paga os régios salários dos togados e banca suas mordomias, não tem os olhos e ouvidos cobertos pela grossa venda que o escultor Alfredo Ceschiatti grudou em sua versão da Deusa da Justiça. Assim, a desmoralização da Corte é testemunhada por uma sociedade estupefata.
Impune, Collor frequenta os salões de Brasília como se nada tivesse sido decidido sobre o seu passado criminal, chegando mesmo a dar as caras no Planalto, por ocasião da posse de Lewandowski no ministério da Justiça, e agora ameaça transformar o inusitado em escárnio desfilando sua face brilhante de óleo de peroba e sua ficha corrida quilométrica na cerimônia de posse de Flávio Dino no Supremo, que deve ocorrer no dia 22.
Com sua intervenção ofensiva, vergonhosa e inútil, Toffoli insultou a sociedade ao subverter o brocardo, reforçando a sensação de que a Justiça no Brasil tarda, mas não chega, e envergonhou o STF ao associaR o Tribunal à percepção de que depois da impunidade vem a bonança. A inutilidade de sua decisão monocrática decorreu do fato da pretensão de Collor não ter a mais remota chance de prosperar.
Em outras palavras, o Maquiavel de Marília apenas favoreceu o propósito protelatório de um criminoso condenado que, pelo andar da carruagem, pode estar livre, leve e solto para comparecer à canonização de São Lula (em data ainda não fixada pelo Vaticano).
Triste Brasil.