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sexta-feira, 12 de julho de 2019

A PEC PREVIDENCIÁRIA, A INTELLIGENTSIA E A BURRITSIA


A sessão de ontem na Câmara entrou pela madrugada, mas foi encerrada sem que a análise em primeiro turno da reforma previdenciária fosse concluída. Rodrigo Maia trabalha com a possibilidade de estender os trabalhos até sábado, se necessário, mas os líderes dos partidos estão divididos sobre a votação em segundo turno: uma ala quer liquidar essa fatura antes do recesso, outra prefere deixar para agosto (seria um balde de água fria no mercado financeiro, mas na prática nada mudaria, uma vez que o Senado só deve votar o texto depois do recesso). A sessão de hoje está marcada para começar às 9h, mas os trabalhos terminaram tarde, e não deve haver quórum antes do final da manhã

Bolsonaro vem se equilibrando sobre duas frágeis pernas-de-pau. No campo moral, escora-se no prestígio de seu ministro da Justiça; na seara econômica, sustenta-se no destemor liberal do ministro da Economia. Se um dos dois abandonar o barco, a vaca fica perneta e saltita em direção ao brejo. O primeiro já ameaçou fazer as malas se a reforma previdenciária virar uma "reforminha" no Congresso, e o segundo disse não ter apego ao cargo e que o deixará se surgirem provas de falta de lisura na maneira como conduziu os processos da Lava-Jato em Curitiba.

Uma parte considerável dos votos que promoveram o capitão de deputado a presidente proveio de antipetistas, e nem todo antipetista é bolsonarista convicto. Sua gestão é aprovada por 33% dos brasileiros (ou pelo menos é o que afirmam Ibope, Datafolha e companhia limitada) e rejeitada por outros 33%. Basta fazer uma simples conta de padeiro para concluir que 1/3 de aprovação não é uma situação confortável para um presidente que fala em disputar a reeleição.

Na avaliação de Josias de Souza, engana-se quem acha que Guedes aderiu à cruzada de Bolsonaro contra o Congresso. O endereço da advertência do superministro é o Palácio do Planalto, não o Legislativo. Até porque há dois governos em Brasília; no oficial, o capitão ataca "o grande problema" do Brasil, que é a nossa classe política, e no alternativo, Guedes, faz política.

Enquanto o presidente atiça uma manifestação hostil ao Congresso, o ministro pede ajuda aos congressistas para retirar sua agenda reformista do incêndio. Nessa antessala do inferno, em vez de se preocupar em granjear aliados, descartar amigos inconvenientes e evitar bate-bocas midiáticos contraproducentes, o capitão mantém sua usina de crises operando a todo vapor.

Ainda em campanha, Bolsonaro admitiu que não entendia nada de economia, mas tranquilizou o eleitorado pensante com seu Posto Ipiranga. Uma vez eleito e empossado, revelou-se um personagem indomável. Agora, ou começa a agir com serenidade, ou se arrisca a entrar para a história não como outro “pato manco” — como os americanos se referem a políticos que chegam ao fim mandato desgastados a ponto de os garçons palacianos demonstrarem seu desprezo servindo-lhes o café frio —, mas como o primeiro Saci-Pererê a habitar o Alvorada. E se for mesmo necessário substituir Guedes ou Moro, não há — pelo menos até onde a vista alcança — alternativa que não resulte num governo ainda pior que o atual.

Segue mais um texto de J.R. Guzzo, que nos brinda semana sim, semana não com sua pena invejável — e cuja coluna se tornou uma dos poucos conteúdos da revista VEJA que ainda valem a leitura.

A elite pensante do Brasil, que se imagina capaz de saber o tempo todo o que é o melhor para cada um de nós, frequentemente lembra o personagem do samba “Mocinho Bonito” — o clássico pé rapado de uma Copacabana de outras eras, que passa a vida fingindo ser o que não é. O mocinho, para quem nunca ouviu a história, é o “perfeito improviso do falso grã-fino”, que no “corpo é atleta, no crânio é menino”, e “além do ABC nada mais aprendeu”. Como conta a letra da canção, ele tem “pinta de conde” — mas nessa pinta só “se esconde um coitado, um pobre farsante que a sorte esqueceu”. Olha a nossa elite aí. Ela convenceu a si própria, e tenta convencer o resto do Brasil, que é a única classe de gente neste país realmente capacitada a pensar — e, por via de consequência, como gostava de dizer um antigo político de Minas Gerais, a responsável exclusiva por definir o que é virtude e vício, e separar o certo do errado. Mas na vida real não é nada disso. As cabeças que hoje pretendem falar por todos os brasileiros são puro dinheiro falso; por trás da sua pose de conde o que existe é apenas a média da mediocridade nacional vigente.

O que é, na prática, essa elite — ou quem faz parte dela? Não é, com certeza, a “zelite” do ex-presidente Lula, um ente em estado gasoso que ele mesmo jamais conseguiu definir. (Como não explica, supõe-se que a “zelite” seja apenas o conjunto dos seres humanos que não esteja de acordo com ele — porque milionário, gente que manda, empresário “campeão”, empreiteiro de obra e o resto dessa turma nunca tiveram um amigo de fé-irmão-camarada tão dedicado quanto Lula.) 

Também não é aquilo que os livros de sociologia definem como “burguesia nacional”, nem o pessoal que vai à shopping center, nem a “classe A” dos institutos de pesquisa, ou, simplesmente, quem tem mais dinheiro que você. A elite a que se refere este artigo é a classe social descrita por ela mesma como civilizada, instruída, progressista, “antenada” — as pessoas que se consideram habilitadas, em suma, a dizer como o Brasil deve ser governado e como o brasileiro deve se comportar. Antigamente, nos países considerados cultos, esse bioma social era chamado de intelligentsia. Aqui, considerando-se a soma do que pensam, querem e dizem, formam a burritsia.

Basicamente, faz parte da elite pensante quem influi em alguma coisa, ou se acha capaz de influir. É quem aparece no jornal, fala no rádio e dá entrevista na televisão. É o “especialista” — quer dizer, o sujeito que se especializa, quase sempre, em dizer aquilo que os comunicadores sociais querem que ele diga. É quem dá aula na universidade — ou, pelo menos, está em sua folha de pagamento. Em geral consideram-se “europeus”, embora tomem Nova York, Harvard e as vanguardas americanas do que se chama “diversidade” como santuários da civilização moderna. Acham que o povo brasileiro é altamente insatisfatório. Gosta de combate à corrupção, quando deveria gostar da OAB. Gosta de político ladrão na cadeia, quando deveria gostar do Congresso. Gosta da polícia, quando deveria gostar da Anistia Internacional, da CNBB e do STF. Não sabe votar, quando elege candidatos proibidos por quem tem qualificação para pensar corretamente em política; por conta de sua ignorância, despreparo e maus hábitos, acaba escolhendo gente errada para governar o país. Têm horror a Donald Trump. Vivem preocupados com o avanço da direita mundial. Nunca vão a manifestações de rua desautorizadas — ou seja, tidas como ameaça potencial às instituições.

Qual a utilidade de se falar disso? Uma delas é sugerir uma regra que pode ajudar o leitor a economizar tempo e ansiedade: se a maioria da elite pensante, a autoridade intelectual e os “especialistas no assunto” estão dizendo alguma coisa, pela mídia ou em seus discursos, acredite no exato contrário. Dificilmente você estará errado. Na mesma linha, quando lhe disserem que 2 mais 2 são 22, coisa que acontece com frequência cada vez maior, não se impressione; estão dizendo apenas um disparate. Continue acreditando que são 4 — é garantido que você vai se dar bem. Nove vezes em dez, o que parece ser a lógica será mesmo a lógica. É bom sempre ter em mente, enfim, quem está dizendo uma boa parte do que se ouve o tempo todo por aí. Parecem figuras muito sérias. Mas são apenas o perfeito improviso do falso entendido, que por trás da pose de conde nada têm a oferecer de útil a alguém. Enquanto o mundo avança cada vez mais em busca da inteligência artificial, nossa elite está fazendo o possível para descobrir justo o contrário.