A origem do termo "conto do vigário" ilustra essa prática. Uma das versões mais conhecidas remonta a Ouro Preto, onde um pároco propôs amarrar uma imagem de Nossa Senhora a um burro, sugerindo que o animal decidisse para qual paróquia a santa deveria ir. O burro foi direto para a igreja de Pilar, que ficou com a imagem até que se descobriu que o dono do burro era o próprio pároco que havia dado a sugestão.
Embora política e religião não sejam mutuamente excludentes, a influência da religião na política cria uma via de mão dupla que fomenta a instrumentalização recíproca. Reivindicando uma suposta interlocução divina, padres, pastores e assemelhados (dentro ou foram dos parlamentos) exercem forte influência sobre a população, que, fragilizado pelo temor do fogo do inferno, se deixa manipular pela verborragia desses mestres do proselitismo. O truque é velho como o diabo, mas funciona, pois oferece conforto diante das incertezas do porvir.
Em contraste, a fé individual não depende de rituais, hierarquias ou dogmas. Ela surge espontaneamente, movida por experiências profundas e pessoais — como um momento inesperado de conexão com a existência — e se desenvolve sem a necessidade de intermediários ou tradições rígidas. Em tempos de desconfiança nas instituições, muitos encontram na espiritualidade independente uma forma de se conectar com uma força maior. Para alguns, a fé é uma confiança silenciosa em algo transcendente; para outros, uma aceitação do mistério sem precisar de "explicações definitivas".
Nesse sentido, ciência e filosofia têm colaborado para uma nova visão: a complexidade do universo pode ser contemplada e apreciada mesmo sem uma explicação finalista. Ao afirmar que somos "poeira das estrelas", o físico Carl Sagan não só descreveu uma conexão física entre nós e o cosmos como abriu uma janela para que muitos vejam no vasto universo um sentido de "sagrado", ainda que sem figura divina.
Curiosamente, a ciência não invalida a fé; ao contrário, ela a expande. A fé moderna é, muitas vezes, uma admiração pelo universo, uma disposição para o questionamento e uma abertura ao desconhecido. Essa perspectiva vê na dúvida e na busca por novas respostas uma maneira de honrar o mistério da existência. Grandes pensadores, como Einstein e Spinoza, viam no universo uma ordem tão majestosa que, mesmo sem acreditar em um "Deus pessoal", sentiam-se conectados a uma força criadora, e consideravam a busca pelo conhecimento como um ato quase espiritual. Einstein chegou a dizer que o mistério é a fonte de toda verdadeira arte e ciência.
A busca pelo autoconhecimento — que algumas correntes psicológicas e filosóficas incentivam — mostra que a espiritualidade livre pode ser um caminho para nos conectarmos com nós mesmos e com o mundo, sem a necessidade de um conjunto de crenças formais. A fé, nesse contexto, se torna uma prática interior, uma jornada de descoberta pessoal que aceita as incertezas da existência.
Diferente de muitas religiões tradicionais, que impõem normas e rituais rígidos, a espiritualidade pessoal se ajusta aos valores e necessidades de cada um. Meditação, contemplação da natureza ou mesmo o simples exercício de gratidão são maneiras de alinhar a vida com uma ordem maior. Essa é uma fé que é, ao mesmo tempo, íntima e universal, uma prática de fé que respeita o mistério.
Vale destacar que essa fé, que não se prende a religiões formais, não rejeita as tradições; em vez disso, reflete uma busca por autenticidade espiritual. É uma fé que aceita respostas parciais, valoriza o caminho e celebra o mistério. Para muitos, é um retorno ao sentido mais original da espiritualidade: uma ligação com o que nos transcende sem precisar de explicações definitivas, e uma confiança de que, mesmo sem respostas absolutas, nossa existência carrega propósito — ainda que esse propósito seja simplesmente a busca por entender o insondável.