sexta-feira, 26 de abril de 2024

COISAS DO BRASIL

 

Na madrugada do domingo de Páscoa, a Porsche dirigida pelo empresário Fernando Sastre de Andrade Filho abalroou o Renault dirigido pelo motorista de aplicativo Ornaldo da Silva Santana, que não resistiu aos ferimentos. O laudo da Polícia Técnico-Científica divulgado no último dia 23 atestou que o carro do empresário estava a 156 km/h no momento do acidente. 

Em outras palavras, levaram três semanas para concluir o que ficou evidente no vídeo exibido pelos telejornais com a notícia do acidente, ou seja, que o motorista sobrevivente dirigia o esportivo numa velocidade muito superior ao limite permitido na avenida Salim Farah Maluf, que é de 50 km/h.
 
Mudando de um ponto a outro, hoje é sexta-feira, sexta-feira é de pizza, e nada como o aroma de uma pizza assando no forno para nos deixar com água na boca. Noves fora quando se trata do forno metafórico da Justiça tupiniquim, onde as pizzas fedem como um esgoto a céu aberto. 

Observação: A expressão "tudo acaba em pizza" com o sentido de impunidade surgiu nos anos 1960, ganhou popularidade durante o impeachment de Fernando Collor e é usada até hoje para aludir ao vício nacional de manter impunes políticos corruptos e/ou que praticam outros tipos de crime. Falando no Rei-Sol, em maio do ano passado o STF o sentenciou a 8 anos e 10 meses de reclusão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mas ele continua livre, leve e solto graças a um pedido de vista providencialmente apresentado pelo nobre ministro Dias Toffoli na véspera do Carnaval, que suspendeu o julgamento dos embargos declaratórios-protelatórios interpostos por sua defesa. 
 
Em meados do mês passado, a PF concluiu o relatório sobre o caso da "fraude em certificado vacinal", e indiciou Jair Bolsonaro, Mauro Cid e outros 15 investigados pelos crimes de inserção de dados falsos em sistemas de informação, falsidade ideológica e associação criminosa. A pretexto de "não deixar nenhuma porta aberta para a defesa técnica do ex-presidente", a PGR determinou o aprofundamento da investigação. Isso me lembra a anedota do sujeito que estava viajando com a esposa quando foi notificado da morte da sogra. Perguntado se a falecida deveria ser sepultada ou cremada, ele baixou a voz (para não ser ouvido pela patroa) e respondeu: "primeiro crema e depois enterra; com essa velha não se brinca".
 
Comenta-se que o procurador Paulo Gonet acalenta a esperança de obter uma confissão escrita de próprio punho e
 assinada por Bolsonaro com a caneta Compactor substituiu a velha Bic depois da troca de farpas entre o então presidente e seu colega francês Emmanuel Macron. Mas isso não passa de maledicência, a exemplo do que vem sendo dito sobre Alexandre de Moraes ter "amarelado" diante das manifestações bolsonaristas no último domingo em Copacabana.
 
Ao mandar arquivar o
 caso dos pernoites na embaixada da Hungria sem impor novas sanções cautelares ao ex-mandatário, Moraes levou água ao moinho do bolsonarismo. Josias de Souza anotou em sua coluna no UOL que, segundo um parlamentar bolsonarista, o encerramento do caso foi uma "autocontenção" produzida pelo "fator rua", e que "encarcerar Mauro Cid é uma coisa, ou coisa bem diferente é prender Bolsonaro sem uma sentença, pois o barulho seria grande".

ObservaçãoEm janeiro de 2018, quando o TRF-4 se preparava para julgar o recurso de Lula contra a condenação imposta por Sergio Moro no caso do tríplex do Guarujá — que culminaria com a prisão do petista em abril — a então senadora Gleisi Hoffmann deu uma verdadeira aula de selvageria durante uma entrevista ao site Poder 360, do companheiro Fernando Rodrigues: "Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente". Lula gozou 580 dias de férias compulsórias na carceragem da PF em Curitiba e não houve qualquer "comoção social" — afora o grupelho autodenominado "Vigília Lula Livre", que montou acampamento nas imediações para desejar "bom dia, boa tarde e boa noite" ao então presidiário mais famoso desta banânia. 
 
Escorando sua decisão nos mesmos argumentos técnicos expostos em parecer da PGR, Moraes anotou em seu despacho: "Não há 'elementos concretos' que indiquem 'efetivamente' que o ex-presidente buscou asilo político ao passar duas noites na embaixada da Hungria em fevereiro, e, portanto, não violou a medida cautelar que o proíbe de se ausentar do país". Lembrou que, embora tenham proteção especial, os locais das missões diplomáticas não são considerados extensão de território estrangeiro, donde "não se vislumbra qualquer violação a medida cautelar de "proibição de se ausentar do País".

Observação: Não é bem isso que diz o art. 22 da Convenção de Viena, da qual o Brasil é signatário, mas Moraes deve saber o que está fazendo. Né?
 
O arquivamento do caso indica que Moraes só determinará a prisão do ex-mandatário quando houver elementos suficientes para condená-lo com base nas investigações, e não por descumprimento de medidas cautelares. Nos bastidores, o arquivamento vem sendo comparado com a decisão da PF de não pedir o indiciamento de Bolsonaro na investigação que apurava suposta importunação a uma baleia jubarte em 2023.
 
Ao conter sua poderosa Montblanc, Moraes sinaliza a intenção de customizar seus embates conforme as especificações do cliente e estimulou nos devotos do "mito" a ilusão de que o investigado mais ilustre realizará, em algum momento, a grande façanha de desfritar todos os ovos que a PF levou à frigideira dos inquéritos. Paralelamente, a defesa do capetão planeja apresentar um novo pedido de liberação do passaporte de seu cliente.

Observação: Rápido no gatilho, Mauro Cid pediu a revogação da sua prisão preventiva. O ex-ajudante de ordens voltou para a cadeia após criticar em áudios o modo como sua delação premiada foi conduzida pela PF. Na ocasião, Moraes entendeu que o investigado teria descumprido as medidas cautelares e agiu para obstruir as investigações ao não preservar o sigilo de sua colaboração (ele havia sido preso pela primeira vez em maio do ano passado e deixou a cadeira seis meses depois, arrastando medidas cautelares como uso de tornozeleira eletrônica, apreensão de passaporte, proibição de se comunicar com outros investigados e ter de se apresentar semanalmente à Justiça.

O bolsonarismo elevou ao estado de arte o que o PT de Lula fazia — e voltou a fazer — quando no poder. Se Bolsonaro é um democrata, eu sou o Coelho da Páscoa, mas bolsonaristas e petistas têm em comum a noção de que liberdade de expressão só vale para quem os apoia. Como escreveu Mario Sabino em O Antagonista, o brasileiro não gosta de liberdade de expressão porque, em sua ignorância abissal, não entende do que se trata. Mas isso é outra conversa. Nossa gente é ignorante no mais básico, inculta no mais alto e abominável de todos os lados porque não está disposta a aprender com os próprio erros — e nem com os acertos, que, embora sejam incomuns, às vezes acontecem.
 
Observação: Por mais defeitos que tivesse — e ele os tinha aos montes — , FHC, que era constantemente alvejado em reportagens e artigos, nunca pediu a cabeça de um jornalista, nunca cortou verbas publicitárias de revista nem fez ameaças contra o dono. Se ligava quando era desagradado, era para conversar e argumentar. Infelizmente, hoje temos o exato oposto em todas as esferas de poder.

Aliados de primeira hora do verdugo do Planalto ficaram insatisfeitos com a baixa adesão ao ato do último domingo no Rio (cerca 18% do público que foi à Avenida Paulista em fevereiro). Tanto a data quanto o horário foram criticados (o domingo em questão era véspera de feriado e fazia muito calor às dez da manhã). Mas a ordem foi minimizar publicamente a frustração. A preocupação com o número de participantes foi levada a Bolsonaro dias antes do ato, mas o "mito" estava seguro de sua capacidade de "mover multidões".

Resumo da ópera: O quebra-quebra de 8 de janeiro e os dias que o antecederam confirmaram que a extrema-direita retirada do armário por Bolsonaro é arcaica nos modos mas violenta nos métodos, e essa atmosfera de anormalidade contribuiu para tirar da garrafa o gênio de Alexandre de Moraes ao longo da disputa presidencial de 2022. Ocorre que certas excepcionalidades deixarem de ser vistas como coisas excepcionais depois que os riscos iminentes à democracia se dissiparam. Mesmo no STF, onde cresce nos bastidores a percepção de que a instrumentalização do direito em busca de resultados efetivos prática associada a Moraes é uma exceção que não pode virar regra, sob pena de transformar as críticas ao xerife-geral da República num processo de questionamento do próprio Supremo.


Tirar gênios da garrafa é mais fácil do que convencê-los a entrar de volta. O próprio Moraes sinaliza a intenção de refinar procedimentos, selecionar brigas e encaminhar processos para a fase de encerramento. Depois de avalizar a decisão da PGR que, em vez de denunciar Bolsonaro no caso da falsificação de cartões de vacina, pediu diligencias complementares à PF, preferiu não impor sanções cautelares ao dito-cujo pelos excessos cometidos na manifestação do último domingo, além de mandar arquivar a investigação dos pernoites na embaixada da Hungria. 


Moraes parece ter se dado conta que até ele está sujeito à condição humana. Portando-se como uma espécie de "ex-Xandão", resguarda-se para o julgamento que grudará sentenças condenatórias nas biografias de Bolsonaro e dos integrantes do alto-comando do golpe. 


A conferir.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

BURROS, ZURROS E WHATSAPP

A JUVENTUDE É DESPERDIÇADA NOS JOVENS, E O TEMPO NEM SEMPRE TORNA AS PESSOAS EXPERIENTES: ALGUMAS SIMPLESMENTE FICAM VELHAS.
 
Sob a batuta de Renato Feder, a Secretaria da Educação de São Paulo informou que passará a utilizar o ChatGPT para produzir aulas digitais, e que os professores, responsáveis pela formulação do conteúdo, irão apenas a "avaliar" as aulas geradas pela IA. Receoso da má repercussão da novidade, Tarcísio de Freitas declarou que "não se pode deixar de usar a tecnologia por preconceito", mas que "nada vai substituir o papel do professor. O histórico da administração de Feder aconselha a plateia a tomar as declarações do governador bolsonarista com a "parcimônia" e "todas as reservas necessárias." 
Em agosto, ao anunciar abriria mão dos "rasos e superficiais" livros didáticos distribuídos pelo MEC, o secretário se absteve de informar em que parecer técnico escorou sua avaliação, limitando-se a dizer que o material impresso seria substituído por slides de produção própria. Mas a realidade prevaleceu ante a fantasia: dezenas de milhares de alunos da rede pública não têm como acessar o conteúdo eletrônico e a maioria da escolas não tem como imprimir as apostilas. 
Descobriu-se também que os tais slides, além de "rasos e superficiais", continham erros crassos, como atribuir a Lei Áurea a D. Pedro II e informar que em 1961, quando era prefeito de São Paulo, Jânio Quadros "assinou um decreto vetando o uso de biquínis nas praias da cidade" (Jânio era presidente da República, e não e não existem praias paulistanas.
Contra esse histórico marcado pela desinteligência, a adoção IA na produção de material didático digital para os estudantes paulistanos pode ser apenas mais um convite para o exercício da ignorância natural.

Com a popularização das redes sociais, a mídia deixou de dominar as massas e passou a ser controlada por elas. O problema é que as massas são despreparadas, ignorantes, rudes e perniciosas. 

O escritor português José Saramago ensinou que "a cegueira é um assunto particular entre as pessoas e os olhos com que nasceram; não há nada que se possa fazer a respeito". Seu colega italiano Umberto Eco, crítico do papel das novas tecnologias na disseminação de informações, lecionou que "o drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade".
 
Observação: O autor de O Nome da Rosa enfatizou ainda que "eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel", e que, antes das redes sociais, "os idiotas da aldeia tinham direito à palavra somente em um bar, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade."
 
Quando se dá voz aos burros, perde-se o direito de reclamar dos zurros. Mas pelo menos se pode calar os chatos que invadem nosso WhatsApp e disparam frases de autoajuda ou de cunho religioso, correntes da felicidade, piadas sem graça, vídeos e outras mensagens indesejáveis e incomodativas — e cobram resposta se a gente não se manifesta prontamente. 

Fazer uma faxina na lista de contatos pode não ser a solução para o problema, mas ajuda a reduzir a aporrinhação. Então, abra o WhatsApp, localize o contato (in)desejado, abra uma conversa, toque nos três pontinhos para acessar as configurações (no canto superior direito da janela) e toque em Silenciar notificações — ou chute o balde de uma vez tocando em Mais e depois em Bloquear. 
 
Aproveite o sossego (enquanto puder).

quarta-feira, 24 de abril de 2024

DA MITOLOGIA GREGA À FÍSICA QUÂNTICA

O PRÓPRIO VIVER É MORRER, PORQUE NÃO HÁ UM ÚNICO DIA EM NOSSA VIDA QUE NÃO SEJA UM DIA A MENOS NELA.

presidente do IBGE Marcio Pochmann abandonou o didatismo da convenção internacional que tem no meridiano de Greenwich o divisor das duas metades longitudinais do planisfério e colocou o Brasil no centro do mapa-múndi. Três dias depois do lançamento da aberração, Lula postou no Twitter: A Terra é redonda
Recriar o que não serviu e criar o que claramente não vai servir parece ser a especialidade do atual governo (não que o anterior fosse melhor, longe disso)É a ideologia do vácuo absoluto demonstrando que se pode emburrecer ainda mais o Brasil — o centro imaginário de um mundo que não existe. A pergunta é: qual será o próximo passo? Substituir o sistema métrico-decimal eurocentrista por outro nativo? 
Quando for entregue às escolas na qualidade de 9ª edição do Atlas Geográfico Escolar, a aberração petista servirá apenas para confundir os estudantes, que já penam para fazer contas banais e escrever frases com sujeito, verbo e predicado.
Pensando bem, Dilma também penava para juntar lé com cré numa frase que fizesse sentido, e hoje embolsa cerca de R$ 300 mil mensais (noves fora as mordomias) para brincar de presidente do Banco do Brics. E os discursos de seu criador e mentor — que se orgulha de ter preguiça de ler — continuam sendo garranchos verbais. Triste Brasil.

Segundo a mitologia grega, Urano devolvia os filhos ao útero de Gaia para evitar que um deles o destronasse. Mas Gaia escondeu Chronos e o encarregou de castrar o pai. Quando o pimpolho cresceu e atendeu ao pedido da mãe, foi confinado pelo genitor no mundo subterrâneo ("reino" para onde os gregos supunham que as almas fossem após a morte física). 
Como a história se repete, Chronos devorou os filhos que teve com Raia, Raia escondeu Zeus numa caverna em Creta, Zeus cresceu e, a pedido da mãe, obrigou o pai a regurgitar seus irmãos. Ao cabo de uma guerra que durou 10 anos, Zeus derrotou Chronos e conquistou a imortalidade.
 
No livro Tempo: O Sonho de Matar Chronos, o físico Guido Tonelli
 explica o fluxo do passado, presente e futuro discorrendo sobre realidades onde as leis da física clássica não se aplicam. Embasado na mecânica quântica e na teoria da relatividade, ele sustenta que o tempo é um elemento material que "ocupa o universo inteiro, que vibra, oscila e se deforma". 
Assim como em sua obra anterior — Gênesis: a história do universo em sete dias, lançada em 2019 —, o autor conduz o leitor pela evolução do entendimento sobre nossa existência, mas "Gênesis" se baseia nos conceitos mais modernos da física para explicar como tudo começou, e "Tempo" discute questões seminais, como "o que é o tempo?", "ele existe, mesmo ou é só uma ilusão?", "conseguiremos um dia derrotá-lo?", e por aí afora. 

Tonelli sustenta que, se dois astronautas viajassem em direção a um buraco negro supermassivo, um deles mantivesse a nave a uma distância segura do fenômeno e o outro cruzasse o "horizonte de eventos",  o tempo pareceria continuar passando normalmente para este último, mas um sinal de rádio que ele enviasse para o colega que ficou fora buraco negro levaria uma eternidade para ser recebida. Em outras palavras, alguns segundos no interior de um buraco negro correspondem a milhares de anos fora dele.

Ainda segundo o físico italiano, o tempo flui diferente em diferentes regiões do Universo, e apenas tecnicidades nos impedem de dobrá-lo a nosso favor. No passado, o ser humano se via como um ser frágil em meio a um cosmo eterno, formado pelo Sol, pelas estrelas, pelos planetas e por divindades imortais. Como não havia ferramentas capazes de medir com precisão distâncias e passagens de tempo pequenas demais ou exageradamente grandes, nossos ancestrais recorriam à mitologia e à religiosidade.

Segundo a Bíblia, a criação do mundo teria se dado em 6 de outubro de 3761 a.C.), mas a ciência têm sólidas evidências para sustentar que a espécie humana surgiu há 300 mil anos, na África, a partir da evolução de outros primatas, que todos habitamos o mesmo Universo criado pelo Big Bang 13,8 bilhões de anos, que a Terra surgiu há 4,5 bilhões de anos e que o espaço-tempo como campo e substância nasceu a reboque do surgimento da massa e da energia no cosmo. 

Tonelli não se aventura por uma definição precisa do que é o tempo, mas o aponta como uma substância e como parte de um campo onipresente, e faz referências a cientistas que exploram as teorias mais modernas da mecânica quântica sobre o tema, como Carlo Rovelli, que é reverenciado por suas pesquisas seminais sobre a existência da "gravidade quântica em loop" (detalhes nesta postagem).
 
Em 2012, Rovelli iniciou uma palestra afirmando que o tempo não existe. Isso não significa que ele não acredite na existência do tempo, mas que, em sua visão, em vez de medida cronológica como a usada nos calendários, o tempo é na verdade uma variável resultante da crescente entropia do cosmo ao longo de seus quase 14 bilhões de anos de existência.
 
Observação: Em A Ordem do Tempo, de 2017, Rovelli explora as concepções que a humanidade já teve acerca desse elemento crucial da realidade, de Newton, que teorizava duas formas de tempo, e Einstein, para quem o espaço-tempo resultaria de deformações do campo gravitacional, ao atual estágio de pesquisas.
 
Voltando a Tonelli, o subtítulo do livro Tempo: O sonho de matar Chronos remete ao desejo de superar a mortalidade, mas apesar de acreditar na possibilidade de dobrar e manipular o campo do espaço-tempo, o autor não vislumbra qualquer possibilidade de nos tornarmos imortais, como Zeus teria se tornado após derrotar o pai. "Nada é eterno, toda estrutura de matéria, seja um humano, uma estrela, uma galáxia, é frágil intrinsecamente, e cedo ou tarde tudo se acaba", pondera Tonelli

Enquanto partículas elementares como o bóson de Higgs têm duração de microssegundos, estrelas, planetas e galáxias permanecem no cosmo por bilhões de anos. No fim, se a estrutura do Universo não mais suportar o espaço-tempo,  será o verdadeiro Apocalipse, mas contado pela Física quântica. 

Com BBC

terça-feira, 23 de abril de 2024

DEU NO QUE ESTÁ DANDO

 

Reza a sabedoria popular que o mal deve ser cortado pela raiz, que esqueletos podem sair dos armários, e que eguns mal despachados voltam a nos assombrar. Ao contrário do que se imaginou a princípio, o impeachment de Dilma não sepultou o PT e a prisão não pôs fim à trajetória política de Lula


Graças a uma decisão teratológica do ministro Edson Fachin, o xamã petista foi exumado da carceragem da PF com o fito de derrotar o pior mandatário que o Brasil amargou desde Tomé de Souza. Mas nem os fins justificam os meios, nem a derrota do sociopata golpista despachou o bolsonarismo de volta para o armário de onde nunca deveria ter saído. E deu no que está dando.

 

O ato convocado para o último domingo reuniu bem menos pessoas que o de fevereiro, mas deixou claro que o "mito" ainda é capaz de encher o asfalto. Entre a Avenida Paulista e Copacabana, ele modulou sua estratégia do bom-mocismo da "pacificação" para o mau-caratismo da desinformação em estado bruto. Para manter seu devotos em pé de guerra, disse que o Brasil está "perto de uma ditadura". Surfando a onda fabricada por Elon Musk, afirmou que "o mundo inteiro toma conhecimento do quanto esta ameaça a nossa liberdade de expressão". 

 

Recheados de cinismo e mesmice, os discursos de Bolsonaro, Michelle e Malafaia comprovam que a união faz a farsa. A bajulação ao dono do X, o "Pai Nosso" da ex-primeira-dama e os coices desferidos pelo "pastor" em "Xandão" não apagam culpas bem esquadrinhadas pela PF, mas levam água ao moinho bolsonarismo. Ficou claro que o chefe do clã da rachadinhas, mansões milionárias e joias sauditas aposta que, com o passar do tempo (periculum in mora), a tentativa de golpe caia no esquecimento, e ao atacar a credibilidade de Moraes, equipa-se para contestar futuras condenações esgrimindo questões processuais como as que levaram à anulação das sentença de Sergio Moro na finada Lava-Jato.

 

Quem padece de TDI (transtorno dissociativo de identidade) costuma ter dupla personalidade, mas Bolsonaro tem três: a que exibe, a que tem de fato e a que imagina ter. Na personalidade da pose, é um perseguido político; na real, um golpista à espera de sentença; na imaginária, um cultor do Estado democrático de Direito. Colocando-se na coqueteleira a máscara, a imagem nua no espelho e a desconexão com a realidade, obtém-se o protótipo de um batedor de carteira ideológico: ao dizer que o Brasil roça uma ditadura e apresentar-se como herói de uma guerra contra o cerceamento à liberdade de expressão, o psicopata se comporta mais ou menos como um punguista de praia que, pilhado numa tentativa de tomar de assalto a democracia, sai gritando "pega ladrão".

 

Bolsonaro abomina a realidade, mas sabe que ela é o único lugar onde um político investigado pode arrumar uma defesa decente. Percebendo-se indefeso, recorre à empulhação. Os quatro anos de sua Presidência caótica revelaram que há sempre duas razões para as estratégias (a declarada e a real), e a concentração de poderes nas mãos de Moraes fornece lenha para a fogueira da confusão. No mundo real, o personagem assemelha-se a um náufrago criminal que se agarra a um jacaré imaginando tratar-se de um tronco.

 

Na composição da fábula do afogado, Bolsonaro e seus operadores escoram-se numa regra importada da propaganda: com um rótulo bem definido, qualquer coisa pode ser vendida. Em três décadas como deputado do baixo-clero, ele aprendeu que o mal, como abstração, é difícil de ser enxergado, mas que basta dar ao mal um tridente e um par de chifres para se ter um inimigo a quem transferir suas culpas. E o demônio do bolsonarismo é "Xandão".

 

O bolsonarismo se esfalfa para colar em Moraes rótulos que o Supremo atribuiu a Moro: um juiz superpoderoso autoconvertido em Xerife-Geral da República que concentra em seu gabinete processos de grande repercussão e instrumentaliza o Direito em busca de resultados. Nessa versão, o togado mimetizaria os métodos de Moro — após obter a delação de Mauro Cid mantendo-o preso por quatro meses, busca produzir um novo delator conservando atrás das grades — desde agosto do ano passado, sem condenação — Silvinei Vasques, o ex-diretor bolsonarista da PF.

 

Na gênese da concentração de poderes nas mãos de Moraes está o inquérito das fake news, aberto em 2019 por Dias Toffoli, então presidente do STF, à revelia da PGR, para o qual "Xandão" foi escolhido relator sem sorteio. Outros inquéritos sobrevieram, como o que investiga os atos antidemocráticos e o que apura as perversões das milícias digitais. Em condições normais, seriam sorteados novos relatores, mas considerou-se que os crimes sob apuração tinham conexão com o inquérito inaugural, e isso abriu uma brecha para que a defesa do capetão esgrima a tese de que o STF subverte duplamente o princípio do juiz natural. Primeiro porque a Corte indeferiu o recurso que pleiteava o envio da encrenca envolvendo um ex-presidente sem foro privilegiado à primeira instância. Segundo porque teria torturado suas próprias regras para manter nas mãos de Moraes todos os inquéritos que aproximam o encrencado da cadeia, da falsificação dos cartões de vacina à comercialização de joias da União, passando pelo da tentativa de golpe que desaguou no 8 de janeiro.

 

Do ponto de vista jurídico, a tática do bolsonarismo é de uma ineficácia hedionda. Não há argumento capaz de eliminar as culpas do ex-presidente. Afora a delação de Mauro Cid, a responsabilidade criminal do dito-cujo está escorada em sólidas provas materiais e testemunhais. Sob o prisma político, eventos como o da Avenida Paulista e o de Copacabana fornecem a um investigado metaforicamente "jurado de morte" a possibilidade de se comportar como se estivesse cheio de vida. 

 

Faltando-lhe uma defesa crível, Bolsonaro apela à mistificação messiânica para hipnotizar seus devotos. A presença da evangélica Michelle e do pastor Malafaia nos palanques não foi à toa: servindo-se da oratória da dupla, o indefensável converte seus seguidores em sectários de uma seita religiosa e os estimula a aceitar todas as presunções da divindade presumida a seu próprio respeito. Em matéria criminal, isso inclui concordar com o dogma segundo o qual ele tem uma missão de inspiração divina e, portanto, indiscutível.

 

Basta ler as entrelinhas para extrair do discursos em Copacabana a narrativa de que Bolsonaro e seus acólitos empunham lanças em defesa da liberdade e da democracia, e que a "rede de solidariedade" da extrema-direita global está incumbida de projetar ao mundo um roteiro de perseguição e silenciamento. Mais difícil é saber até que ponto essa caterva acredita nas próprias mentiras e a partir de que ponto passa a jogar para os verdadeiros defensores da democracia o peso de provar a verdade. 


Observação: Não é mais apenas sobre "como as democracias morrem", mas sobre como a democracia deixa de ser o que é. E não se trata do universo evangélico ou da Bíblia, mas, sim, do uso religião como política e do potencial desse "nacionalismo cristão extremista e fanático" desgraçar a democracia brasileira como o trumpismo vem fazendo nos EUA.

 

Se prevalecer a lógica, é muito provável que Bolsonaro vá para a cadeia. O momento atual não é adequado para decretar sequer sua prisão preventiva, mas Alexandre de Moraes, tão incisivo em suas decisões, já poderia ter tomado outras providências. Ao não fazê-lo, o magistrado converte a Suprema Corte numa espécie de centro terapêutico para tratar as loucuras do investigado, enquanto este segue em campanha para reforçar o número de prefeitos do PL, reforçar a bancada bolsonarista no Congresso em 2026 e, mais à frente, conspirar por uma anistia.

 

Com Josias de Souza

segunda-feira, 22 de abril de 2024

LULA E A MELHOR IDADE

 

Todo ser vivo nasce, cresce e morre. O nascimento dá início a uma viagem pelo tempo rumo a um futuro que nunca chega (o hoje é o amanhã de ontem e o ontem de amanhã). Não se saiba ao certo se o tempo existe ou se é apenas uma invenção criada para facilitar nossa compreensão do mundo, mas sabe-se que a morte é inexorável e constitui a única certeza que temos na vida. 
 
Viver para sempre é um sonho antigo. Os antigos gregos acreditavam a água de um rio que nascia no Monte Olimpo tornava os homens imortais. Em 1513, Ponce de León partiu de Porto Rico em busca da lendária Fonte da Juventude e descobriu a Flórida, mas morreu em 1521 sem jamais ter encontrado a tal fonte.
 
Em 1932, quando a expectativa de vida dos norte-americanos era de 59,7 anos, Walter B. Pitkin publicou seu livro de autoajuda "Life begins at forty" ("A vida começa aos 40"). Entre 1960 e 2014, a expectativa de vida no Brasil aumentou de 48 para 74,6 anos. Aubrey de Grey — co-fundador e CSO da SENS — acredita que é possível viver por séculos sem sofrer os transtornos da velhice, mas nossa conterrânea mais longeva completou 119 anos no dia 10 do mês passado (e está num osso danado).
 
A experiência segue as pegadas da maturidade, mas isso não significa que 
a "reta de chegada" seja a melhor parte da "viagem". Chamar a "terceira idade"  fase da vida que começa aos 60 e termina quando as luzes da ribalta se apagam — de "melhor idade" é ignorar pérolas de sabedoria como "la vecchiaia è bruta". Em resposta à nova expressão, que foi cunhada por um "influencer" infectado pelo vírus da positividade tóxica, borrifada nas redes sociais por seus seguidores "idioters" e replicada pelos meios de comunicação, o jornalista e escritor mineiro Rui Castro publicou a crônica "Melhor idade é a puta que te pariu". 

Atribui-se a Pascal a máxima: "quanto mais conheço o homem, mais gosto do meu cachorro". Trata-se de uma crítica mordas à natureza humana combinada  com uma louvação à lealdade e o amor incondicional dos cães. O filósofo francês sabia das coisas: o ser humano sempre foi um merda, e continuará sendo um merda per omnia saecula saeculorum, até porque quem nasceu pra vintém não chega a tostão. Menos mal se o desinfeliz é capaz de reconhecer as próprias limitações; embora essa "virtude" não o exclua da seleta confraria dos merdas, ao menos passa a impressão de que alguns merdas "são menos merda que os outros". 

Falando em merda, em 2018, visando impedir que país do futuro que nunca chega porque tem um imenso passado pela frente fosse governado pelo bonifrate do então presidiário mas famoso da história desta banânia, o mui esclarecido eleitor tupiniquim despachou para o Planalto um subproduto da escória da humanidade que ressuscitou a extrema-direita radical, que julgávamos sepultada com o fim da ditadura e a volta dos milicos aos quartéis. Como há males que vêm para pior, além de não empurrar o bolsonarismo boçal de volta para armário da História, a derrota do "mito" em 2022 ensejou o retorno do egum mal despachado que julgávamos exorcizado pelo impeachment de Dilma.
 
Lula foi catapultado à política liderando greves históricas que desafiaram a ditadura militar nos anos 1970. Em 2022, ele articulou a falaciosa "frente democrática" que o ajudou a se eleger pela terceira vez com a promessa de pendurar as chuteiras ao final desse mandato. Assim que tomou posse, criou dezenas de novos ministérios para acomodar os aliados de ocasião e nomeou para as pastas já existentes antigos aliados sepultados no julgamento do Mensalão ou quando a saudosa Lava-Jato expôs as entranhas pútridas do Petrolão. E como desgraça pouca é bobagem, voltou a acalentar o sonho de concorrer ao quarto mandato.

Observação: Comenta-se que o imperador da Câmara reclamou da desarticulação do governo e sugeriu a Lula que anunciasse sua candidatura à reeleição em 2026 a fim de acabar com a rivalidade entre seus ministros — principalmente Alexandre Padilha, Rui Costa e Fernando Haddad. O presidente não se fez de rogado, mas, ao contrário do que esperava Lira, essa iniciativa não inibiu as brigas e as sabotagens dentro governo, num sinal claro de que, se a orquestra oficial continua desafinando, a culpa é do regente, e de nada adianta trocar as rodas da carroça quando o problema é o burro.
 
Lula recebeu com pompa e circunstância o ditador venezuelano, presenteou Dilma com a presidência do Banco do Brics e indicou para o STF um amigo e advogado particular e um ministro socialista, comunista e marxistas. Em 15 meses de governo, passou quase 70 dias num périplo turístico por 30 países, demorou a afastar auxiliares envolvidos com corrupção, acusou o presidente do BC de travar o crescimento do país, sabotou a meta de déficit zero de seu ministro da Fazenda e tentou interferir na Petrobras e enfiar Guido Mantega na presidência da Vale. 
 
Além de reeditar erros cometidos nas gestões anteriores, o Sun Tzu de Atibaia abrilhantou sua interminável lista de asnices louvando o Nicolás Maduro, comparando Gaza ao Holocausto, defendendo a ideia de que democracia é um conceito relativo e dizendo que se orgulha de ser chamado de comunista. Seus auxiliares estão preocupados com seus "lapsos de memória", como quando ele acusou Israel de matar 12,3 milhões de crianças — um dado flagrantemente irreal.
 
Lula sempre foi entusiasta da ideia — simplista e errada — de que gasto é vida. Rui Costa, seu mais poderoso assessor no Planalto, vive a argumentar que o ajuste fiscal proposto por Haddad pode prejudicar o novo PAC, assim como o pagamento de dividendos extras pela Petrobras — rejeitado por Costa e defendido por Haddad — poderia, segundo o chefe da Casa Civil, inviabilizar o plano de investimentos da companhia, e desde então a rixa vem ganhando ritmo e temperatura. 
 
Em seu primeiro mandato, Lula assistiu a uma disputa de poder entre José Dirceu e Antonio Palocci. Tanto o então chefe da Casa Civil quanto o então ministro da Fazenda almejavam suceder ao chefe na Presidência, mas ambos foram atingidos por escândalos de corrupção e ficaram pelo caminho. A exemplo de seus antecessores, Costa e Haddad nutrem o desejo de disputar o Planalto em 2026. Lula, como de costume, prefere assistir de camarote à cizânia entre aliados e subordinados. Quando intervém, é para colocar mais lenha na fogueira — como fez quando o plenário da Câmara manteve a prisão do deputado Chiquinho Brazão. 
 
Lira chamou Padilha de "incompetente" e "desafeto pessoal", e o ministro reagiu dizendo que não desceria ao nível de Lira. Lula resolveu participar do tiroteio verbal tomando partido de seu auxiliar: "Só de teimosia, Padilha vai ficar muito tempo nesse ministério". A ideia era mostrar quem manda — o que não é necessário nem condiz com a liturgia do cargo —, mas só conseguiu agravar a situação. O ainda imperador da Câmara tem o poder de atrasar ou destravar projetos, instalar CPIs e até fazer avançar pedidos de impeachment, e deixou a impressão de que retaliará o governo, que até hoje não conseguiu formar maioria na Casa porque depende — e muito — da ajuda dele.
 
Lula demora a perceber, mas seu grande desafio não está fora, mas dentro de sua gestão. Mesmo com a melhora do nível de emprego e a inflação "sob controle", a avaliação positiva de seu governo vem caindo, e o pessimismo da população com a economia, aumentando na mesma medida. Sem falar que o petista ora segue a cartilha ideológica de seu assessor especial, Celso Amorim, ora se baliza pelo profissionalismo da chancelaria comandada pelo ministro Mauro Vieira, afinado com a tradição nacional de conciliação e moderação. 

Esse descompasso levou o governo (entre outras coisas) a demorar para chamar de terroristas os terroristas do Hamas e para cobrar de Nicolás Maduro explicações para o veto a oposicionistas nas eleições presidenciais, marcadas para julho deste ano — vale destacar que a guinada no caso venezuelano não foi motivada por convicção, mas por pressão da opinião pública e pelo desejo de estancar a sangria nas pesquisas.
 
Desde os tempos em que liderava a oposição, Lula é tido e havido como um "animal político", um expert na arte de atrair aliados e superar adversidades. Sua desforra contra a Lava-Jato comprova isso, mas sua atuação no terceiro mandato coloca essa fama em xeque. 
Distante dos problemas da população e dos desafios da máquina pública, o ex-tudo (ex-retirante, ex-metalúrgico, ex-sindicalista, ex-presidiário e ex-corrupto) comanda um governo descoordenado, emite sinais contraditórios e permite que seus principais auxiliares sabotem uns aos outros. 

Para fazer jus à imagem do craque que imagina ser, Lula precisa entrar em campo, colocar a bola embaixo do braço e ditar o rumo da partida — que ainda tem resultado indefinido, mas, segundo os próprios petistas, pode ser perdida se juiz não tomar conta do jogo. Mas quanto mais Lula fala, mais claro fica que já passou da hora de ele encerrar seu ciclo na política. Às vésperas de completar 79 anos, o macróbio é uma usina de ideias retrógradas, ou ruins, ou retrógradas e ruins. Diante da impossibilidade de arejar uma mentalidade como essa, urge arejar o ambiente.

Há décadas que o Brasil é governado como uma usina de processamento de esgoto, onde entra merda por um lado e sai merda pelo outro. E o que mais poderia sair? Entre a porta de entrada, aberta pelas eleições, e a de saída, na troca de comando, a merda muda de aparência e de nome, recebe nova embalagem... mas continua sendo merda.