quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

JOÃO DE DEUS E LULA DO DIABO



Estima-se que haja 726.712 detentos nos presídios tupiniquins. Há quem diga que esse número não expressa a realidade, que a população carcerária é menor. Talvez seja, mas isso não muda o fato de que há muito mais presos do que vagas nos presídios — são 368.049 vagas em 1.449 unidades penais em todo o território nacional. Para alguns juristas renomados, associações de advogados e até ministros supremos da “ala garantista”, a solução é soltar meio mundo. Mas talvez a resposta seja outra. Senão vejamos.

É certo que prender enche prisões, mas é igualmente certo que a punição faz parte do processo de controle da criminalidade. Pode parecer paradoxal, mas, em vez de soltar quem está preso e passar a prender menos, dever-se-ia prender mais e melhor. Claro que isso demanda a construção de mais presídios, e isso custa dinheiro — cerca de R$ 1 bilhão por 20 mil vagas —, mas se R$ 1 bilhão é o custo diário da violência no país, não estamos falando em gasto, e sim em investimento.

Estamos em terceiro lugar no ranking mundial de pessoas presas, mas podemos “nos gabar” de termos entre elas figuras notórias, como o ex-presidente Lula e o médium João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus. O primeiro é réu em oito processos e está cumprindo a pena a que foi condenado na ação envolvendo o célebre tríplex no Guarujá; o segundo é réu por estupro e violação sexual e acusado de tráfico de crianças. Ambos estão presos em salas especiais e recebem tratamento diferenciado do que é dispensado aos demais detentos, como será visto mais adiante.

Lula está preso há nove meses e 11 dias na sede da Superintendência da Polícia Federal no Paraná. Para quem estiver interessado em fazer uma visitinha, ela fica no número 220 da R. Profa. Sandália Monzon, em Curitiba. Em razão da “dignidade do cargo” e para evitar riscos a integridade moral ou física do ex-presidente bandido, foi-lhe destinada uma cela especial, com área de 15 m2, mesa redonda e quatro cadeiras, estante, TV de plasma, esteira ergométrica, frigobar, banheiro com pia, vaso sanitário e chuveiro elétrico. Durante a corrida presidencial, o “digno” ocupante dessa sala não teve o menor constrangimento em convertê-la no seu comitê de campanha — com total conivência das autoridades.

Diferentemente dos demais presidiários, Lula não limpa o banheiro, não varre o chão nem recolhe o lixo de sua suíte — tudo isso fica a cargo de um funcionário da limpeza, que faz a faxina quando o “hóspede” está no banho de sol. Por essas e outras, alguns policiais se referem a ele como “Lula Escobar”, numa alusão ao narcotraficante colombiano Pablo Escobar, que, num acordo com a Justiça, construiu uma mansão-presídio para nela cumprir sua pena.

Além do processo que o mandou para a cadeia, Lula responde a outras sete ações criminais, duas das quais tramitam na 13ª Vara Federal do Paraná e estão conclusas para sentença — isto é, a decisão pode sair a qualquer momento —, mas especula-se que juíza substituta Gabriela Hardt deixará o julgamento por conta do magistrado que vier a ser efetivado na vaga aberta com a exoneração de Sérgio Moro.

João de Deus ainda não foi condenado, mas já se tornou réu por estupro de vulnerável e violação sexual, além de ser acusado de tráfico de crianças. Tudo começou quando o programa "Conversa com Bial" levou ao ar o testemunho de 12 mulheres que teriam sido vítimas do curandeiro mais famoso do Brasil. Dessas, a única a autorizar que seu nome fosse divulgado foi a holandesa Zahira Lieneke, que afirmou ter sido estuprada em 2014, mas foi o suficiente para a abrir as comportas do inferno: desde então, o médium de 77 anos — que ao longo das últimas quatro décadas atendeu mais de 3,5 milhões de pessoas do mundo inteiro — foi acusado de violência sexual por centenas de mulheres de pelo menos dez estados do país, sendo de sua própria filha o relato mais surpreendente (depois da enxurrada de delações, Dalva Teixeira, de 49 anos, alegou ter sido abusada pelo pai desde os 10 anos de idade).

João de Deus está preso desde 16 de dezembro. A exemplo de Lula, ele não fica com os outros 5.000 presos do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. A pretexto de evitar que se tornasse vítima da tácita lei da bandidagem que pune violência sexual com violência sexual, médium foi acomodado numa sala de 50 m2, que compartilha com outros três detentos, todos advogados. No cômodo, que não tem grades nas janelas, há uma TV de 20 polegadas, banheiro com chuveiro elétrico e privada de louça. Nada mau se considerarmos que os demais prisioneiros ficam amontoados em cubículos projetados para acomodar 5 pessoas cada, mas que têm pelo menos o triplo de ocupantes.

Na semana passada, visando garantir que, em caso de condenação de João de Deus, as vítimas sejam indenizadas, a Justiça determinou o bloqueio de R$ 50 milhões do curandeiro, entre imóveis e investimentos bancários. Considerando que ele não cobrava formalmente pelos tratamentos espirituais, e que não poderia atender 10 mil pessoas por mês se não dedicasse tempo integral à caridade, explicar esse patrimônio exige levar ao pé da letra o ditado segundo o qual “quem dá aos pobres empresta a Deus”, e acreditar que a retribuição vem com juros e correção monetária.

Antes de se estabelecer em Abadiânia (GO), na década de 1970, João de Deus peregrinou pelo país como Lula em pré-campanha, só que fazendo cirurgias espirituais. Segundo o MP de Goiás, as denúncias vêm desde 2010; em 2012 o médium ser julgado por abuso sexual, mas foi inocentado por falta de provas; no mesmo ano, após vários relatos de abusos contra mulheres, foi proibido de prestar atendimento pelos frequentadores de uma casa na cidade de Três Coroas (RS), mas as vítimas não registraram queixa por medo de represálias. Consta ainda que ele foi denunciado por exercício ilegal da medicina e acusado de “sedução” de menor, atentado ao pudor, contrabando de minério e assassinato, mas jamais foi condenado.

Tanto Lula quanto João de Deus negam os crimes que lhes são imputados, a exemplo do que fazem políticos, empresários e demais figurões investigados na operação Lava-Jato e congêneres. Todos seguem fielmente a mesma cartilha, afirmando-se surpresos com as acusações, dizendo confiar na Justiça, e blá, blá, blá. Mesmo depois de condenados a mais de 100 anos de prisão, como é o caso do o ex-governador fluminense Sérgio Cabral. Outros bom exemplos são Eduardo Cunha e João Vaccari Netto, que estão na cadeia, respectivamente, desde 2017 e 2015. Ou o guerrilheiro de festim José Dirceu e Paulo Maluf, que ainda não foram mandados de volta para a cadeia porque o Supremo é o Supremo.

Dizem as más-línguas que o Lula aconselhou João de Deus a adotar a mesma estratégia de defesa que ele usou no caso do tríplex, mas é difícil o médium convencer alguém de que o pinto não era dela. Aliás, com Lula não funcionou, como também não funcionaram os mais de 80 recursos interpostos por sua defesa em todas as instâncias do Judiciário. E ao que tudo indica, não vai funcionar tampouco no caso do sítio em Atibaia, que, segundo o petralha, nunca foi dele.

Alex Nader, que divide a defesa do curandeiro molestador com Alberto Zacarias Toron e Antonio Carlos Kakay de Almeida Castro (este último atende nada menos que 17 enrolados na Lava-Jato), contesta a prisão preventiva sustentando que seu cliente não tentou movimentar dinheiro, não ameaçou testemunhas e se apresentou à polícia de forma espontânea. Enfim, talvez seja tudo uma questão de fé.