segunda-feira, 3 de junho de 2019

SOBRE LULA E O PAPA CHICO



COMO NOS PARECEM MARAVILHOSAS AS PESSOAS QUE NÃO CONHECEMOS BEM.

Por que o papa Francisco gosta tanto de políticos como Lula? A frase acima responderia essa pergunta, não fosse o fato de Jorge Mario Bergoglio ter acompanhado os ciclos de populistas dos anos 1950/60 na América Latina, a transição democrática, os governos de centro-direita e novo populismo de esquerda que vieram depois, com Kirchner, Lula, Evo, Chávez e distinta companhia. Peçamos, pois, ajuda aos universitários.

Na opinião de Ricardo Noblat, somente Deus e o próprio papa poderiam dizer o que se passava na cabeça de Francisco quando ele assinou a carta enviada a Lula no dia 3 do mês passado — que os devotos do criminoso de Garanhuns viram como uma expressão de solidariedade política e seus adversários, como prova irrefutável de que sua santidade é comunista. Mas nem tanto ao mar, nem tanto à terra.

Noblat salienta que o pontífice trata Lula por “Estimado Luiz Inácio”, mas pondera que Jesus nunca fez distinção entre pecadores e inocentes. Diz ainda que Francisco até poderia ter escrito que absolvia o petralha, pois é isso que os padres fazem ao ouvir uma confissão, mas a autoproclamada alma viva mais honesta do Brasil não pediu perdão na carta que enviou meses antes ao Vaticano, e o papa, muito sabiamente, se esquivou de absolvê-lo.

Imagine se Francisco tivesse aproveitado o ensejo para criticar “o liberalismo irresponsável, o capitalismo selvagem e patrões desumanos” e dizer que os trabalhadores são “vítimas da cobiça e de uma ganância desenfreada e de leis anticristãs”. Seria o atestado definitivo, a levar-se em conta o ânimo que impera por estas bandas, de que ascendeu ao Trono de Pedro o primeiro papa vermelho em 2000 anos de história da Igreja Católica.

Mas foi no terceiro parágrafo da missiva papal que os devotos da seita do inferno — da qual Lula é o pontífice — se sentiram acolhidos: “Podemos passar da escuridão para a Luz; do pecado que separa Deus para a amizade que nos une a Ele; o bem vencerá o mal; e a verdade vencerá a mentira”, escreveu Francisco. Aos olhos da patuleia, a mensagem nas entrelinhas era de que o papa recomendava paciência a Lula porque restará provado que ele foi vítima de uma injustiça, e que o bem triunfará. Mas uma análise menos apaixonada deixa claro que o pontífice se referia a uma lição extraída do período da Páscoa, e que nada tem a ver, portanto, com Lula preso.

O papa usou os últimos parágrafos da carta para lamentar “as duras provas” que Lulaviveu ultimamente”. Sua santidade citou as mortes da esposa (Marisa), do irmão (Vavá) e do neto (Arthur), pediu que o molusco não desanimasse e que não deixasse de confiar em Deus, além de manifestar sua “proximidade espiritual”. Mas não será desta vez que a patuleia ignara poderá se aproveitar de Francisco para cantar vitória, nem que a direita radical poderá vilipendiá-lo sem se arriscar aos castigos do céu.

Observação: Há cerca de um ano, um post no perfil de Lula no Twitter dava conta de que “o papa Francisco enviou um rosário ao presidente Lula, preso político há 67 dias. O presidente recebeu o terço na sede da Polícia Federal em Curitiba”. O PT surfou na mesma onda: “Papa Francisco envia rosário a Lula, mas emissário é barrado na PF”. E mais: “Funcionário do Vaticano denuncia caráter ‘estritamente político’ de decisão da PF de impedir que ele visitasse Lula e desse recado enviado pelo papa”. Mas mentira tem perna curta, e dias depois o Vaticano desmentiu a potoca. “O advogado argentino Juan Grabois, fundador do Movimento dos trabalhadores excluídos e ex-consultor do Pontifício Conselho Justiça e Paz, deu uma entrevista em sua tentativa de visitar o ex-presidente Lula na prisão de Curitiba, onde está detido há mais de dois meses. Grabois disse que a visita era pessoal e não em nome do Santo Padre. Ele não teve a permissão para se encontrar com Lula”, disse em nota o Vatican News. A Santa Sé salientou que Graboisnunca declarou que foi o papa a enviar o terço, mas simplesmente que se tratava de um terço que tinha sido ‘abençoado’ pelo papa”. Ainda segundo a nota de esclarecimento, “terços como esse são levados, como o Santo Padre deseja, a tantos prisioneiros do mundo sem entrar no mérito de realidades particulares”. E a CNBB disse desconhecer o envio do rosário a Lula.

Mas a opinião de Noblat está longe de ser uma unanimidade. Vejam o que escreveu a jornalista Vilma Gryzinski:

Jorge Bergoglio tem 82 anos e é da geração que viveu todas as fases da história recente na Argentina e na América Latina, onde, em nome do combate às desigualdades sociais, associaram-se aos mais poderosos produtores e banqueiros para tirar dos pobres e dar aos muito ricos. Para compensar, a massa era acalmada com bolsas-tudo, acesso ao consumo através da armadilha do crédito barato e empregos fugazes. O modelo brasileiro de corrupção foi exportado para toda parte, somando-se às já conhecidas práticas locais. A maior diferença era de escala e de concentração: nunca ninguém conseguiu roubar tanto com tão poucos envolvidos.

Bergoglio acompanhou isso tudo passo a passo, foi um dos mais conhecidos críticos a Nestor Kirchner e ganhou fama de direitista na Argentina, agravada pelo episódio dos jesuítas colaboradores de grupos armados de esquerda que foram sequestrados e torturados durante o regime militar. A pecha de delator foi recuperada por ex-montoneros antes que Cristina Kirchner mandasse o pessoal parar com a loucura de falar mal de um argentino eleito papa. Nessa ordem de importância, claro.

Por que o papa recebeu uma política com esse tipo de caráter e boicotou o quanto pode seu substituto, Mauricio Macri? De forma geral, podemos dizer que está no sangue. Bergoglio não consegue se desvincular da ideia do “rouba mas faz”. Influenciado pela opção preferencial pelos pobres, cujas dificuldades acompanhou intensamente como arcebispo, acaba colocando no pacote a preferência opcional pelos corruptos ou seus representantes. Ele poderia ter se esquivado de um encontro como o registrado no ano passado (vide foto), mas escolheu deliberadamente receber os três personagens e falar com eles durante uma hora. O ex-ministro Celso Amorim foi um dos participantes. Saiu de lá com um bilhete escrito a mão pelo papa em agradecimento ao livro enviado por Lula. As cortesias se multiplicaram na recente carta. 

Os outros participantes do encontro foram o ex-senador chileno Carlos Omamani e o ex-ministro da Casa Civil de Nestor Kirchner, Alberto Fernandez — que agora é candidato a presidente com as bênçãos de Cristina Kirchner, que, numa manobra maquiavélica ou mefistofélica, resolveu convocar o homem de confiança do falecido marido e reservar para si um modesto papel de candidata a vice-presidente.

Todo mundo sabe o que Nestor Kirchner fez. E quem tiver alguma dúvida pode consultar os Cadernos das Propinas escritos pelo motorista que transportava os infindáveis sacos e malas cheios de milhões de dólares, enviados por empresários bonzinhos que só queriam ajudar o presidente a pensar no bem do povo e na felicidade da nação. Vários desses empresários estão recolhidos atualmente ao sistema prisional argentino. Políticos também.

Será que o papa acredita que, eleito presidente, Aníbal Fernandez fará um governo responsável? Carlos Omamani — ex-senador chileno e ex-militante, em seus mais verdes anos, do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), grupo armado queria fazer uma revolução à cubana no Chile e ajudou a criar o caos que impulsionou o golpe de estado do general Pinochet — se atolou em doações irregulares feitas por uma grande mineradora, mas o delito já prescreveu, e ele diz que “vai se arrepender para o resto da vida”.

Da mesma forma que escolhe quem vai receber e para quem vai escrever ou mandar rosários, o papa escolhe quem não vai receber. Atualmente, esse é um assunto importante na Itália: se e quando o papa vai se encontrar com Matteo Salvini, o ministro do Interior que está engolindo adversários e aliados. Os dois, obviamente, se detestam. Salvini saiu do campo restrito da Liga Norte, um partido secessionista, para se tornar o político mais importante do país unicamente com base no fechamento dos portos aos migrantes que continuam a chegar, embora em menor número, de países africanos.

Uma das maiores causas abraçadas pelo papa é a abertura irrestrita de fronteiras de todos os países para todos os que queiram entrar, independentemente de restrições econômicas ou de segurança. Francisco acha que os recém-chegados têm direito a bolsa-imigrante, alojamento, celular, importação de familiares e outros benefícios. No último comício antes das eleições para o Parlamento Europeu, das quais saiu fortalecido, Matteo Salvini beijou o crucifixo do terço que sempre leva no bolso (embora se reconheça como “o último da fila dos cristãos”) e invocou a proteção de Nossa Senhora da Imaculada Conceição para si mesmo e para toda a Itália. E trolou o papa, fazendo uma referência em que a simples menção do nome de Francisco provocou vaias.

Vários representantes do Vaticano surtaram. Paolo Parolini, que é a segunda personalidade mais importante, como secretário de Estado, denunciou o “risco de abuso de símbolos religiosos”. O jesuíta Bartolomeo Sorge tuitou que a Itália que vota na Liga “não é mais cristã”. “Olhem o que escreve este teólogo. Só falta que alguém peça minha excomunhão. Avante, com fé, respeito e humildade”, respondeu Salvini, sem nenhum risco de ter, pelo menos, as duas últimas virtudes.

Esta é a situação existente no momento, resultado do envolvimento direto do papa em questões políticas e de dúvidas religiosas que desperta: a direita detesta o papa e a esquerda o exalta; a ala mais conservadora o considera ambíguo ou até herético e a turma da teologia da libertação o recebe como um profeta. Fiéis perdidos ou confusos ficam no meio, sem entender por que Francisco um dia faz o discurso mais forte já vindo de um papa contra o aborto, comparando-o a contratar um pistoleiro de aluguel, e no outro exorta os católicos a abrir as portas a todos os que queiram morar em seus países. 

Numa longa entrevista a uma vaticanista mexicana, o pontífice se descreveu como “conservador”, embora concordando com a tese da jornalista de que vem caminhando para o outro lado desde que foi eleito para a Santa Sé. Terminou falando, com profundo e comovente sentimento, da crueldade do mundo onde tantas mulheres são humilhadas, exploradas, abusadas ou assassinadas. O lado A de Francisco tem uma força enorme, de fé e comprometimento. O lado B ainda acredita, tristemente, no “rouba mas faz”.

Se Francisco achasse justas as sentenças por corrupção ao apenado de Curitiba, certamente não usaria os termos escolhidos. E um católico criminoso que implorasse uma palavra de conforto ao papa deveria, primeiro, pedir perdão pelos pecados cometidos.