COMO NOS
PARECEM MARAVILHOSAS AS PESSOAS QUE NÃO CONHECEMOS BEM.
Por que o papa Francisco
gosta tanto de políticos como Lula? A
frase acima responderia essa pergunta, não fosse o fato de Jorge Mario Bergoglio ter acompanhado os ciclos de populistas dos
anos 1950/60 na América Latina, a transição democrática, os governos de
centro-direita e novo populismo de esquerda que vieram depois, com Kirchner, Lula, Evo, Chávez e distinta companhia. Peçamos,
pois, ajuda aos universitários.
Na opinião de Ricardo
Noblat, somente Deus e o próprio papa poderiam dizer o que se passava na
cabeça de Francisco quando ele assinou
a carta enviada a Lula no dia 3 do
mês passado — que os devotos do criminoso de Garanhuns viram como uma expressão
de solidariedade política e seus adversários, como prova irrefutável de que sua
santidade é comunista. Mas nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
Noblat salienta
que o pontífice trata Lula por “Estimado Luiz Inácio”, mas pondera que Jesus nunca fez distinção entre
pecadores e inocentes. Diz ainda que Francisco
até poderia ter escrito que absolvia o petralha, pois é isso que os padres
fazem ao ouvir uma confissão, mas a autoproclamada alma viva mais honesta do
Brasil não pediu perdão na carta que enviou meses antes ao Vaticano, e o papa, muito
sabiamente, se esquivou de absolvê-lo.
Imagine se Francisco
tivesse aproveitado o ensejo para criticar “o liberalismo irresponsável, o capitalismo selvagem e patrões desumanos”
e dizer que os trabalhadores são “vítimas
da cobiça e de uma ganância desenfreada e de leis anticristãs”. Seria o
atestado definitivo, a levar-se em conta o ânimo que impera por estas bandas,
de que ascendeu ao Trono de Pedro o primeiro papa vermelho em 2000 anos de
história da Igreja Católica.
Mas foi no terceiro parágrafo da missiva papal que os devotos
da seita do inferno — da qual Lula é
o pontífice — se sentiram acolhidos: “Podemos
passar da escuridão para a Luz; do pecado que separa Deus para a amizade que
nos une a Ele; o bem vencerá o mal; e a verdade vencerá a mentira”,
escreveu Francisco. Aos olhos da
patuleia, a mensagem nas entrelinhas era de que o papa recomendava paciência a Lula porque restará provado que ele foi
vítima de uma injustiça, e que o bem triunfará. Mas uma análise menos
apaixonada deixa claro que o pontífice se referia a uma lição extraída do
período da Páscoa, e que nada tem a ver, portanto, com Lula preso.
O papa usou os últimos parágrafos da carta para lamentar “as duras provas” que Lula “viveu ultimamente”. Sua santidade citou as mortes da esposa (Marisa), do irmão (Vavá) e do neto (Arthur),
pediu que o molusco não desanimasse e que não deixasse de confiar em Deus, além
de manifestar sua “proximidade
espiritual”. Mas não será desta vez que a patuleia ignara poderá se
aproveitar de Francisco para cantar
vitória, nem que a direita radical poderá vilipendiá-lo sem se arriscar aos
castigos do céu.
Observação: Há cerca de um ano, um post no perfil de Lula no Twitter dava conta de que “o papa
Francisco enviou um rosário ao presidente Lula, preso político há 67 dias. O
presidente recebeu o terço na sede da Polícia Federal em Curitiba”. O PT surfou na mesma onda: “Papa Francisco envia rosário a Lula, mas
emissário é barrado na PF”. E mais: “Funcionário
do Vaticano denuncia caráter ‘estritamente político’ de decisão da PF de
impedir que ele visitasse Lula e desse recado enviado pelo papa”. Mas
mentira tem perna curta, e dias depois o Vaticano desmentiu a potoca. “O advogado argentino Juan Grabois,
fundador do Movimento dos trabalhadores excluídos e ex-consultor do Pontifício
Conselho Justiça e Paz, deu uma entrevista em sua tentativa de visitar o
ex-presidente Lula na prisão de Curitiba, onde está detido há mais de dois
meses. Grabois disse que a visita era pessoal e não em nome do Santo Padre. Ele
não teve a permissão para se encontrar com Lula”, disse em nota o Vatican News.
A Santa Sé salientou que Grabois “nunca declarou que foi o papa a enviar o
terço, mas simplesmente que se tratava de um terço que tinha sido ‘abençoado’
pelo papa”. Ainda segundo a nota de esclarecimento, “terços como esse são
levados, como o Santo Padre deseja, a tantos prisioneiros do mundo sem entrar
no mérito de realidades particulares”. E a CNBB disse desconhecer o envio
do rosário a Lula.
Mas a opinião de Noblat está longe de ser uma unanimidade.
Vejam o que escreveu a jornalista Vilma
Gryzinski:
Jorge Bergoglio
tem 82 anos e é da geração que viveu todas as fases da história recente na
Argentina e na América Latina, onde, em nome do combate às desigualdades
sociais, associaram-se aos mais poderosos produtores e banqueiros para tirar
dos pobres e dar aos muito ricos. Para compensar, a massa era acalmada com
bolsas-tudo, acesso ao consumo através da armadilha do crédito barato e
empregos fugazes. O modelo brasileiro de corrupção foi exportado para toda
parte, somando-se às já conhecidas práticas locais. A maior diferença era de
escala e de concentração: nunca ninguém conseguiu roubar tanto com tão poucos
envolvidos.
Bergoglio
acompanhou isso tudo passo a passo, foi um dos mais conhecidos críticos a Nestor Kirchner e ganhou fama de
direitista na Argentina, agravada pelo episódio dos jesuítas colaboradores de
grupos armados de esquerda que foram sequestrados e torturados durante o regime
militar. A pecha de delator foi recuperada por ex-montoneros antes que Cristina Kirchner mandasse o pessoal
parar com a loucura de falar mal de um argentino eleito papa. Nessa ordem de
importância, claro.
Por que o papa recebeu uma política com esse tipo de caráter
e boicotou o quanto pode seu substituto, Mauricio
Macri? De forma geral, podemos dizer que está no sangue. Bergoglio não consegue se desvincular
da ideia do “rouba mas faz”. Influenciado pela opção preferencial pelos pobres,
cujas dificuldades acompanhou intensamente como arcebispo, acaba colocando no
pacote a preferência opcional pelos corruptos ou seus representantes. Ele
poderia ter se esquivado de um encontro como o registrado no ano passado (vide
foto), mas escolheu deliberadamente receber os três personagens e falar com
eles durante uma hora. O ex-ministro Celso
Amorim foi um dos participantes. Saiu de lá com um bilhete escrito a mão
pelo papa em agradecimento ao livro enviado por Lula. As cortesias se multiplicaram na recente carta.
Os outros
participantes do encontro foram o ex-senador chileno Carlos Omamani e o ex-ministro da Casa Civil de Nestor Kirchner, Alberto Fernandez — que agora é candidato a presidente com as
bênçãos de Cristina Kirchner, que, numa
manobra maquiavélica ou mefistofélica, resolveu convocar o homem de confiança
do falecido marido e reservar para si um modesto papel de candidata a
vice-presidente.
Todo mundo sabe o que Nestor
Kirchner fez. E quem tiver alguma dúvida pode consultar os Cadernos das
Propinas escritos pelo motorista que transportava os infindáveis sacos e malas
cheios de milhões de dólares, enviados por empresários bonzinhos que só queriam
ajudar o presidente a pensar no bem do povo e na felicidade da nação. Vários
desses empresários estão recolhidos atualmente ao sistema prisional argentino.
Políticos também.
Será que o papa acredita que, eleito presidente, Aníbal Fernandez fará um governo
responsável? Carlos Omamani —
ex-senador chileno e ex-militante, em seus mais verdes anos, do Movimento de Esquerda Revolucionária
(MIR), grupo armado queria fazer uma revolução à cubana no Chile e ajudou a
criar o caos que impulsionou o golpe de estado do general Pinochet — se atolou em doações irregulares feitas por uma grande
mineradora, mas o delito já prescreveu, e ele diz que “vai se arrepender para o resto da vida”.
Da mesma forma que escolhe quem vai receber e para quem vai
escrever ou mandar rosários, o papa escolhe quem não vai receber. Atualmente,
esse é um assunto importante na Itália: se e quando o papa vai se encontrar com
Matteo Salvini, o ministro do
Interior que está engolindo adversários e aliados. Os dois, obviamente, se
detestam. Salvini saiu do campo
restrito da Liga Norte, um partido secessionista, para se tornar o político
mais importante do país unicamente com base no fechamento dos portos aos
migrantes que continuam a chegar, embora em menor número, de países africanos.
Uma das maiores causas abraçadas pelo papa é a
abertura irrestrita de fronteiras de todos os países para todos os que queiram
entrar, independentemente de restrições econômicas ou de segurança. Francisco acha que os recém-chegados têm direito a bolsa-imigrante, alojamento,
celular, importação de familiares e outros benefícios. No último comício antes
das eleições para o Parlamento Europeu, das quais saiu fortalecido, Matteo Salvini beijou o crucifixo do
terço que sempre leva no bolso (embora se reconheça como “o último da fila dos
cristãos”) e invocou a proteção de Nossa Senhora da Imaculada Conceição para si
mesmo e para toda a Itália. E trolou o papa, fazendo uma referência em que a
simples menção do nome de Francisco
provocou vaias.
Vários representantes do Vaticano surtaram. Paolo Parolini, que é a segunda
personalidade mais importante, como secretário de Estado, denunciou o “risco de
abuso de símbolos religiosos”. O jesuíta Bartolomeo
Sorge tuitou que a Itália que vota na Liga “não é mais cristã”. “Olhem o que escreve este teólogo. Só falta
que alguém peça minha excomunhão. Avante, com fé, respeito e humildade”,
respondeu Salvini, sem nenhum risco
de ter, pelo menos, as duas últimas virtudes.
Esta é a situação existente no momento, resultado do
envolvimento direto do papa em questões políticas e de dúvidas religiosas que
desperta: a direita detesta o papa e a esquerda o exalta; a ala mais
conservadora o considera ambíguo ou até herético e a turma da teologia da
libertação o recebe como um profeta. Fiéis perdidos ou confusos ficam no meio,
sem entender por que Francisco um
dia faz o discurso mais forte já vindo de um papa contra o aborto, comparando-o
a contratar um pistoleiro de aluguel, e no outro exorta os católicos a abrir as
portas a todos os que queiram morar em seus países.
Numa longa entrevista a uma
vaticanista mexicana, o pontífice se descreveu como “conservador”, embora
concordando com a tese da jornalista de que vem caminhando para o outro lado
desde que foi eleito para a Santa Sé. Terminou falando, com profundo e
comovente sentimento, da crueldade do mundo onde tantas mulheres são
humilhadas, exploradas, abusadas ou assassinadas. O lado A de Francisco tem uma força enorme, de fé e
comprometimento. O lado B ainda
acredita, tristemente, no “rouba mas faz”.
Se Francisco
achasse justas as sentenças por corrupção ao apenado de Curitiba, certamente
não usaria os termos escolhidos. E um católico criminoso que implorasse uma
palavra de conforto ao papa deveria, primeiro, pedir perdão pelos pecados
cometidos.