segunda-feira, 14 de outubro de 2019

VALHALA FICA LÁ EM CIMA, MAS O BURACO É MAIS EMBAIXO



Asgard é o correspondente nórdico do Monte Olimpo da mitologia grega; Valhala, um majestoso e enorme salão com 540 portas, dominado pelo deus Odin; Loki, o deus da trapaça e da travessura. Isso me veio à mente junto com um versinho infantil "Caguri cagou, caiu na merda e se afogou   quando li um texto de Josias de Souza,  Vamos aos porquês.

O supremo togado que preside todos os togados supremos foi buscar lã e saiu tosquiado. A pretexto de resguardar a imagem do STF e proteger os seus membros, abriu em março uma investigação para apurar fake news e ameaças contra as togas. Decorridos sete meses, o processo revela-se uma gambiarra jurídica com potencial para eletrocutar a supremacia da Corte.

Escolhido pelo Odin de toga para atuar como relator do caso, Loki de Moraes decidiu fatiar o inquérito. Procuradores e juízes que operam na primeira instância trataram o processo de Valhala contra fake news como uma espécie de fake inquérito, e pelo menos três dessas fatias foram arquivadas.

Dois arquivamentos ocorreram em São Paulo. Em nota, o Ministério Público disse ter identificado "vício de origem e de forma" na iniciativa do monarca de Asgard. A investigação não poderia ter nascido no Judiciário, sem requisição da polícia e sem a participação da Procuradoria. De resto, as pessoas investigadas não dispunham do foro privilegiado, e que o Supremo não só acumulou os papéis de vítima, investigador e julgador, como contrariou o devido processo legal ao instaurar a investigação ex officio e descrever o objeto da apuração de forma ampla e genérica.

O terceiro arquivamento se deu na cidade mineira de Pouso Alegre, onde a Justiça Federal acatou pedido do Ministério Público que apontava aberrações jurídicas em séria: violação do princípio do juiz natural, violação do sistema acusatório, alijamento da Procuradoria da investigação e a escolha sem sorteio do deus da trapaça como relator do caso.

As anomalias já haviam sido apontadas pela ex-procuradora-geral Raquel Dodge, mas Odin ignorou se pedido de arquivamento do inquérito secreto. Na época, Loki reagiu às críticas como se alguma coisa lhe tivesse subido à calva pelo elevador de serviço: "Pode espernear à vontade, pode criticar à vontade", disse. "Quem interpreta o regimento do Supremo é o Supremo. O presidente abriu, o regimento autoriza, o regimento foi recepcionado com força de lei, e nós vamos prosseguir". Deu no que está dando.

A divindade poderia ter requisitado na origem, à PGR, a abertura de inquéritos. Preferiu agir por conta própria. Escorou-se no artigo 43 do regimento interno do STF, que atribui poderes para defender a Corte contra "infrações à lei penal ocorridas na sede ou dependência do tribunal", tratando todo o mapa do Brasil como uma versão hipertrofiada da sede da Suprema Corte. Aos pouquinhos, a investigação secreta foi ganhando características de um inquérito multiuso. Serviu para censurar uma notícia da revista eletrônica Crusoé (pressionado, o calvo teve de recuar, liberando a veiculação. Incluíram-se também no rol de investigados auditores do Fisco e procuradores da Lava-Jato.

O ministro Marco Aurélio estrilou: "O que ocorre quando nos vem um contexto que sinaliza prática criminosa? Nós oficiamos o procurador-geral da República, nós oficiamos o estado-acusador. Somos estado-julgador. E devemos manter a necessária equidistância quanto a alguma coisa que surja em termos de persecução criminal".

Relator de ações protocoladas no Supremo contra o inquérito secreto, o ministro Edson Fachin pede desde maio a inclusão do tema na pauta de julgamentos do plenário. Dono da pauta, o presidente togado dos togados presididos se abstém de marcar a data. Embevecido por um sentimento de supremacia que exclui o componente da dúvida, parece cultivar o mito da excepcionalidade. Mas mesmo na suprema Valhala, apinhada de semideuses, é inédita essa pretensão de ser uma potência moral que só deve contas a sua própria noção de superioridade.

Igualmente inédita é a fidelidade com que Loki se dispõe a ceder sua mão de obra e seu gênio jurídico à onipotência do chefe. Mais um pouco e ele terá de converter a si próprio e ao grande Odin em alvos do inquérito sigiloso. No momento, nenhum outro brasileiro ofende mais o Supremo do que os responsáveis pelo inquérito que apura ataques ao Tribunal.

Com Josias de Souza.