Rabisquei estas linhas no domingo, 5, com a intenção de publicá-las nesta quinta. De lá para cá, muita coisa
pode ter mudado. Se até a BandNews mudou seu slogan — de “em vinte minutos tudo pode mudar” para “em dois minutos tudo pode mudar”, e,
mais recentemente, para “em um segundo tudo pode mudar” —, só mesmo com
bola de cristal para prever o que pode acontecer em quatro dias, sobretudo num país onde até o passado é imprevisível.
Começando pela palhaçada encenada pelo congresso, que tem grandes chances de ser avalizada pelo togado supremo plantonista Dias Toffoli, a novela da implantação do “juiz
de garantias” — mais um jabuti colocado na árvore pela mão do gato, ou dos gatunos,
considerando a quantidade de políticos corruptos que dão expediente no Congresso — ainda
deve render novos e emocionantes capítulos.
Depois de muita embromação, o projeto anticrime do ministro Sérgio
Moro foi aprovado na Câmara, mas, antes, suas excelências, certamente
preocupadas com o “efeito Orloff” da punição de políticos corruptos,
tomaram o cuidado de desidratar e desfigurar: o texto foi adulterado pela
comissão de trabalho antes de ser levado a votação e avalizado por 408 votos a
favor, 9 contra, e 2 abstenções, deixando de fora o excludente de ilicitude, a
prisão em segunda instância e outros temas caros a Moro e aos cidadãos
de bem deste arremedo de país.
Observação: Mais cedo, os deputados aprovaram um
pedido de tramitação em regime de urgência do PL, que foi aprovado por 359
votos a 9, e o substitutivo do deputado Lafayette de Andrada, que seguiu
o texto do relator do grupo de trabalho responsável por analisar as propostas
do ministro, deputado Capitão Augusto. A matéria só foi analisada devido
à forte pressão popular, mas não manteve a proposta original de Moro,
que vinha fazendo campanha pela aprovação do pacote.
Difícil será convencer a parcela pensante da população de que
a implementação de um juiz de instrução dividindo os processos criminais com um
juiz de julgamento não é uma estratégia para procrastinar a decisão final das
ações criminais — coisa que os nobres parlamentares também conseguiram fazer
retirando do texto a prisão após condenação em segunda instância, complementando,
assim, mais um desserviço prestado pela banda podre do STF, que,
subserviente ao crápula de Garanhuns, mudou novamente a jurisprudência acerca
dessa questão — nem é preciso lembrar que se trata de uma questão determinante
para a efetiva punição da bandidagem travestida de empresários de alto coturno
e congressistas de má índole, sem um pingo de vergonha na cara.
Propostas de alteração na legislação vigente tramitam tanto
na Câmara quanto no Senado, mas os deputados fingem querer garantir a eficácia
da modificação promovendo-a mediante uma PEC, que tem tramitação mais
morosa do que a simples mudança no Código de Processo Penal proposta
pelo Senado. A questão é que o diabo mora nos detalhes, e é disso que tratam os
membros do grupo de trabalho do CNJ, convocados por José Antonio
“Maquiavel” Dias Toffoli para emplacar o tal “juiz de instrução”. Tanto
Toffoli quanto seu colega Gilmar Mendes afirmam que se
está fazendo muito barulho por nada, que a implantação do sistema é
“perfeitamente factível”. Só que a prudência recomenta receber com reservas tudo
que vem da banda podre suprema, a exemplo de qualquer coisa que Lula, o PT
e os sectários dessa seita diabólica proponham, seja lá sobre o que for. Se interessa
a essa caterva, boa coisa não é.
Mas não é só: por mal de nossos pecados, o indômito Capitão
Caverna virou a casaca para blindar seu primogênito das investigações do MP-RJ
no “Caso Queiroz”, enfiando sabe Deus onde a bandeira anticorrupção (com
mastro e tudo) que empunhou durante toda a campanha presidencial. Quem se elege
posando de de inimigo figadal da corrupção e dos corruptos, e com esse
estandarte empala a nação tão logo galga a rampa do Palácio do Planalto merece repúdio,
ainda que se possa dizer em sua defesa que Bolsonaro está mentalmente
perturbado, que é um paranoico de quatro costados, que combinaria melhor com
uma sala acolchoada num manicômio do que com o gabinete mais cobiçado do
serviço público tupiniquim.
Ironicamente, esta republiqueta de bananas costuma seguir
adiante apesar de seus governantes — haja vista que a PEC da
Previdência foi aprovada a despeito de todos esforços em contrário
envidados por Jair Messias Bolsonaro, que fez das tripas coração
para atrapalhar a tramitação da proposta visando desvincular sua subida imagem
de uma medida necessária, mas altamente impopular. E são favas contadas que irá
usar a economia que resultará da mudança na legislação previdenciária com
trunfo eleitoreiro, pois o sujeito pode até ser doido de pedra, mas não come
merda nem rasga dinheiro — ou seja, de bobo, Bolsonaro não tem nada.
Ao sancionar a
criação do juiz de garantias no pacote anticrime desfigurado pela Câmara, o presidente potencializou seu distanciamento
do ministro Sérgio Moro, dando sequência a uma estratégia
confusa, que vem de longe. Em dezembro de 2018, dias antes de assumir a pasta
da Justiça e Segurança Pública, o ex-juiz da Lava-Jato declarou numa
entrevista: "Eu não assumiria um papel de ministro da Justiça com o
risco de comprometer a minha biografia, o meu histórico." Dois
meses mais tarde, Bolsonaro determinou que ele anulasse a nomeação da
cientista política Ilona Szabó, que acabara de assumir uma cadeira de
suplente num conselho reles da pasta da Justiça. Desde então, o ministro
coleciona no governo revezes que comprometem a biografia que ele dizia não
estar disposto a comprometer (embora aos olhos da nação ele continue sendo o
inquilino mais popular da Esplanada dos Ministérios).
Quando seu pacote
anticrime e anticorrupção foi enviado para os escaninhos da pauta do
Legislativo, Moro se desentendeu não com o presidente da República, mas
com o todo-poderoso presidente da Câmara, que disse naquela oportunidade:
"Ele conversa com o presidente Bolsonaro e, se o presidente
Bolsonaro quiser, conversa comigo." Pelo que se depreende do
comentário, Botafogo sentiu-se à vontade para ironizar o ministro,
afirmando que seu pacote não passava de um “copia-e-cola” da proposta elaborada
pelo dono da calva mais luzidia entre os togados supremos. E em vez de reagir, Moro
se curvou, sujeitando-se a transferir a criminalização do caixa dois do pacote principal
para um projeto anexo — ora devidamente esquecido —, na esteira da perda do Coaf,
do convívio com aliados indiciados do presidente, do silêncio do capitão diante
do fim da prisão na segunda instância e da aprovação de um pacote anticrime
desfigurado, sem o pedaço anticorrupção.
Quando se imaginava que o encolhimento de Moro atingira
o limite, Bolsonaro brindou seu ministro, na véspera do Natal, com a
sanção do artigo que cria o famigerado e despropositado “juiz de garantias”.
Atingiu-se aí o ápice da ironia: o pacote prioritário do ministro ganhou uma “ferramenta
antimoro” graças ao objetivo prioritário do capitão, que é proteger Zero Um
e a si próprio. Moro, que não escondeu sua decepção com mais essa palhaçada
bolsonariana, serviu-se do Twitter para ironizar: "Leio
na lei de criação do juiz de garantias que, nas comarcas com um juiz apenas (40
por cento do total), será feito um 'rodízio de magistrados' para resolver a
necessidade de outro juiz. Para mim é um mistério o que esse 'rodízio'
significa. Tenho dúvidas se alguém sabe a resposta".
Em se tratando dos membros do STF, não há consenso sobre coisa
alguma, e o alcance de mais essa barbaridade não é exceção. Como bem pontuou o vice
decano — a prova provada de que mesmo um relógio parado dá a hora certa duas vezes por dia —, Toffoli
acha que a aplicação do instituto do juiz de garantias não vale para os
processos em curso e, portanto, não atinge os abertos contra o ex-presidente Lula
e o senador Flavio Bolsonaro. Já Celso de Mello e Alexandre de
Moraes pensam o contrário. Já se vislumbra no horizonte mais um supremo
furdunço, pois os criminalistas estrelados que defendem criminosos bem aquinhoados financeiramente, capazes de bancar seus astronômicos honorários, certamente reivindicarão à Corte um
tratamento isonômico, pois no artigo está dito expressamente que juízes que
tiverem acesso às investigações terão de se considerar impedidos de julgar o
caso, o que seria uma causa de nulidade da decisão.
Toffoli e Gilmar entendem (ou fingem entender)
que a decisão só vale para a primeira instância, não havendo, segundo eles,
necessidade para os tribunais regionais e muito menos para os tribunais
superiores, como o STJ e o STF. Enfim, quem viver verá.
Enquanto isso, Moro chega a 2020 como um ministro que transforma sua
passagem pelo governo num processo de autocombustão, e agora já divulga notas
para expressar sua contrariedade. Mas a dúvida permanece: a que temperatura
ferve o político Sergio Moro?