domingo, 12 de janeiro de 2020

DOIS PAPAS



Desde meados do mês passado que o filme DOIS PAPAS, de Fernando Meirelles e do roteirista Anthony McCarten — vencedor do Globo de Ouro, se não me engano — está disponível na NETFLIX. Aliás, pela primeira vez o Brasil tem chances reais de abocanhar um Oscar, ou bem mais chances que nas vezes anteriores em que chegou a ser indicado para concorrer à ambicionada estatueta. Vale a pena assistir, mas recomendo não fazê-lo depois do almoço de domingo, pois não se trata de um filme de ação, e um cochilo será inevitável se você estiver com a pança cheia de picanha e cerveja.

O enredo tem como ponto central os diálogos entre o cardeal Jorge Bergoglio, que mais adiante se tornaria o papa Francisco, e o papa efetivo Bento XVI, durante visita do argentino a Roma. Os diálogos são inventados, assim como a visita, lembra Roberto Pompeu de Toledo em sua coluna na edição de Veja da semana passada. Mas resta que, se não são verdadeiros, são verossímeis, e mostram a grandeza que pode permear a relação entre altos dirigentes com princípios opostos.

As discordâncias entre os dois são enfatizadas no filme — Bergoglio a favor de reformas na Igreja, Bento XVI aferrado à tradição. “Deus muda”, diz Bergoglio. “Não muda. Se muda, onde encontrá-lo?”, protesta Bento XVI. “Durante a caminhada”, responde Bergoglio. Os dois estão caminhando pelos jardins de Castel Gandolfo, o palácio papal de verão. “Talvez o encontremos então ali em frente”, provoca Bento XVI. “E eu o apresentarei a você.”

Aos poucos, o embate cede a uma troca de ideias. Bento XVI (na magistral interpretação de Anthony Hopkins) está cansado, só e angustiado, notadamente com o escândalo da pedofilia no clero. No ponto culminante da conversa, confidencia que pensa em renunciar. Eles estão agora na Capela Sistina, só os dois, apequenados sob o assombroso céu de Michelangelo. “Como renunciar?!”, protesta Bergoglio (na não menos magistral interpretação de Jonathan Pryce).

Papas não renunciam. E renunciar por quê? “Não consigo mais ouvir a voz de Deus”, diz Bento XVI. Ele suspeita não ser o comandante adequado para os desafios da Igreja no momento histórico em que vive. No passo seguinte, já imersos ambos numa relação de afetuosa camaradagem, ele especula que Bergoglio pode ser a pessoa adequada para vencer as dificuldades que não foi capaz de enfrentar.

Na história vaticana, nas palavras do roteirista McCarten, “um liberal e um conservador, engajados numa luta de boxe intelectual, acabam descobrindo que não ouvir um ao outro não leva a nada, apenas os afunda em seus próprios preconceitos”. O Bento XVI do filme até sacrifica seus princípios ao suspeitá-los em dissintonia com a história.

Alguns políticos deveriam não só assistir a esse filme, mas tomá-lo como exemplo. Talvez assim nos livrássemos de uma parcela significativa dos imprestáveis que se abancaram no Congresso (e em outras esferas do poder público). Enfim, para sonhar não se paga imposto. Por enquanto.