Diante de tudo que foi dito sobre o governo Bolsonaro nas últimas postagens, o texto a seguir pode parecer paradoxal. Mas numa democracia deve-se dar espaço ao contraditório, até porque, como dizia Nelson Rodrigues, o genial autor das mais contundentes tiradas da crônica tupiniquim, "toda unanimidade é burra" (o escritor tem razão, embora nem sempre, pois há casos em que a unanimidade não é burra, ou talvez não seja unânime, mas isso já é conversa para outra hora). Sem mais delongas, passemos ao que interessa:
O questionário publicado a seguir talvez ajude o leitor a verificar se a democracia está ou não está sendo ameaçada pelo governo neste momento no Brasil, como tanto se diz — e, se estiver, onde, precisamente, estariam as ameaças. Não há escolhas múltiplas, nem um sistema de pontos para aferir os resultados. Há apenas perguntas. Conforme as respostas, é possível que o presente debate sobre a questão fique um pouco mais claro.
O governo
apresentou, neste seu primeiro ano de trabalho, algum projeto de lei, medida
provisória ou emenda constitucional que desrespeite, diminua ou ponha em risco
alguma liberdade pública ou privada?
Foi cometido, de
janeiro de 2019 para cá, algum ato de censura contra algum veículo de
comunicação por alguma autoridade do Poder Executivo? (A única ação de censura
praticada pelo poder público em 2019 foi uma decisão do ministro Alexandre
Moraes, do STF, contra a revista Crusoé.)
O governo federal,
segundo foi divulgado, cortou 14 mil assinaturas de órgãos de imprensa que
pagava para seus funcionários — a partir de agora cada um terá de pagar do seu
próprio bolso os exemplares do veículo que quiser ler. Esta decisão pode ser
considerada um ataque à liberdade de imprensa?
Algum cidadão foi
preso de maneira ilegal, sem respeito ao processo judicial previsto em lei, por
ordem de uma autoridade do governo? Ou: há algum preso político no Brasil?
Foi proibida alguma
manifestação pública, em local aberto ou fechado, por parte da polícia ou das
Forças Armadas?
Alguém está sendo
processado sem assistência de advogados ou sem o devido respeito ao direito de
defesa?
Os ataques
verbais do presidente da República a órgãos de comunicação e a jornalistas
resultaram em algum cerceamento ao trabalho da imprensa?
Há alguma restrição
à atuação política da oposição, no Congresso Nacional ou em qualquer outro
cenário público ou privado?
O governo deixou de
executar alguma decisão da Justiça?
O governo deixou de
executar alguma lei aprovada pelo Congresso?
O governo praticou
algum ato de violação à independência dos Poderes ou cerceou a atuação do
Ministério Público?
Foi praticado por
parte do governo algum ato de desrespeito à Constituição? O governo utilizou
alguma vez as forças, organizações ou partidos que o apoiam para montar
manifestações de massa contra os seus adversários?
Agentes do governo
praticaram atos de violência, discriminação ou alguma forma de perseguição
contra homossexuais,
índios, negros, grupos religiosos ou quaisquer outras comunidades
descritas como minorias? Foram estimulados indiretamente a agir dessa maneira?
Houve tolerância em relação a episódios de violação de algum direito dos
cidadãos citados acima?
Que represálias
concretas o governo adotou contra críticas e ataques que recebe da oposição,
dos órgãos de comunicação ou de quem quer que esteja em desacordo com as suas
posições?
Ninguém, nem mesmo
um jornalista, é bobo a ponto de dizer que essa curta coleção de perguntas
“esgota o assunto” da democracia no Brasil. Nada, aliás, esgota assunto nenhum.
É apenas uma tentativa de separar fatos de impressões. Todo mundo, é claro, tem
direito às suas próprias opiniões — e de ver no presidente, além de diversos
integrantes do seu governo, intenções autoritárias não confessadas, ou um
desprezo oculto pelas praxes da democracia. Mas ninguém tem direito aos seus
próprios fatos.
Os fatos, puros e
simples, muitas vezes não são simples, e muito menos puros. Mas não podem ser
deletados da realidade.
Publicado
originalmente por J.R. Guzzo no ESTADÃO.